Programa Rouanet Norte

CAPÍTULO 5 – A Segunda Dentição do Reggae Manauara (Parte 1)

Postado por Simão Pessoa

As vanguardas europeias – futurismo, cubismo, dadaísmo, expressionismo e surrealismo – foram movimentos artísticos ocorridos no início do século 20, na Europa, cada um com características específicas, mas com algo em comum: a ruptura com os valores da arte tradicional. O dadaísmo foi um desses movimentos. Seu principal idealizador foi o poeta romeno Samuel Rosenstock, que ficou conhecido como Tristan Tzara, pseudônimo que significa “triste em meu país”.

Entre os nomes mais proeminentes dessa turma estavam Hugo Ball, Hans Arp, Marcel Duchamp, Francis Picabia, André Breton, Max Ernst, Hannah Höch, Man Ray e Raoul Hausmann. A orientação irônica, provocadora, e até mesmo absurda do dadaísmo gerou obras orientadas pelo caos e por elementos de pouco valor. Grande exemplo disso é a famosa “Fonte”, de 1917, do francês Marcel Duchamp, que consiste em um mictório, sem encanamento, de porcelana branca – hoje um ícone que marca a passagem do modernismo para a arte contemporânea.

Tudo começou em 5 de fevereiro de 1916. Poucos dias antes da Batalha de Verdun, na França, considerada a mais longa e cruenta da 1ª Guerra Mundial, o poeta, escritor, anarquista e místico alemão Hugo Ball promoveu a noite de estreia de seu Cabaret Voltaire, localizado na parte antiga de Zurique, na Suíça. Ele queria realizar lá o que chamou de “coisas bonitas”.

O local passou a abrigar outros artistas expatriados, os quais, cansados de tudo que tinham visto nos últimos tempos, poderiam extravasar seus sentimentos de fúria em relação à guerra, considerada por eles sem sentido. Eles tinham raiva da sociedade europeia, que, na opinião deles, permitiu que a guerra aflorasse, e, por conta disso, se divertiam em desafiar o nacionalismo, o racionalismo, o materialismo, o capitalismo, o consumismo e qualquer outro “ísmo”.

O próprio Hugo Ball redigiu o primeiro manifesto do movimento, que começava desse jeito: “Dada é uma nova tendência da arte. Percebe-se que o é porque, sendo até agora desconhecido, amanhã toda a Zurique vai falar dele. Dada vem do dicionário. É genialmente simples. Em francês quer dizer “cavalo de pau”. Em alemão: “Não me chateies, faz favor, adeus, até à próxima!”. Em romeno: “Certamente, claro, tem toda a razão, assim é. Sim, senhor, realmente. Já tratamos disso.” E assim por diante. Uma palavra internacional. Apenas uma palavra e uma palavra como movimento. É simplesmente genial. Ao fazer dela uma tendência da arte, é claro que vamos arranjar complicações. Psicologia Dada, literatura Dada, burguesia Dada e vós, excelentíssimo poeta, que sempre poetastes com palavras, mas nunca a palavra propriamente dita. Guerra mundial Dada que nunca mais acaba, revolução Dada que nunca mais começa. Dada, vós, amigos e também poetas, queridíssimos Evangelistas. Dada Tzara, Dada Huelsenbeck, Dada m’Dada, Dada mhm’Dada, Dada Hue, Dada Tza. (…)”

Nessas definições, já se pode perceber que o movimento era pautado pela ironia. No final das contas, a palavra “dada”, para os dadaístas, não tinha nenhum significado ou tinha todos os significados. Ball pediu a artistas plásticos, como Hans Arp, que contribuíssem com objetos de arte, e a poetas, como Tristan Tzara ou Huelsenbeck, que colaborassem com palavras poéticas. Assim, nasceram composições como as três variações sobre um motivo dada, em três línguas distintas. Tratava-se do primeiro poema simultâneo dadaísta com o título: “O Almirante Tenta Alugar Uma Casa”. A crítica à guerra estava embutida naquela falação em três idiomas porque representava homens de nacionalidades distintas morrendo ao mesmo tempo, no mesmo lugar, sem nenhum objetivo. Humor e nonsense tinham um pano de fundo sério.

Dentre as vanguardas, o dadaísmo era o mais crítico. A catástrofe experimentada no continente era, para os membros do movimento, resultado da própria civilização. Seu propósito, por extensão, era rejeitá-la e criar uma “antiarte”. A negação dos valores, da tradição e da lógica eram as características principais do dadaísmo. Com a mesma determinação com que foi iniciado, o movimento vanguardista teve sua morte proclamada poucos anos depois, em 22 de maio de 1922.

Em um festival que acontecia na escola de arte Bauhaus, em Weimar, na Alemanha, artistas e escritores dadaístas encenaram um funeral que decretou o fim da tendência. Meses antes do fatídico funeral, o escritor francês André Breton, um dos pais do movimento surrealista e antes associado ao dadaísmo, entrou em conflito com o amigo Tristan Tzara. Ele declarou guerra ao movimento e, com uma declaração pública intitulada “Depois do Dadaísmo”, deu os primeiros passos na criação dessa nova tendência, que tomaria forma em 1924 com o Manifesto Surrealista. O desencanado Tzara se aliou a Breton.

Como poeta, Tristan Tzara advertia que seus únicos instrumentos de luta eram as palavras e que o campo de ação no qual exercitava sua proposta revolucionária era a linguagem. Sua poesia juvenil buscava a decomposição da sintaxe, a associação de termos incompatíveis dentro do pensamento lógico, o acúmulo de ritmos caóticos que acentuavam a sensação de ruptura e, definitivamente, a essência de uma nova poesia derivada da fragmentação e da desconstrução do poema tradicional.

Em virtude do clima político de intolerância na Alemanha, que prenunciava a 2ª Guerra Mundial, o poeta se une ao Partido Comunista em 1936 e luta na Resistência Francesa, depois da ocupação da França pelos nazistas. Produz uma poesia lírica, após essa fase, que revela preocupação com a angústia e a tragédia da condição humana. Tzara morreu em Paris e foi enterrado no cemitério de Montparnasse. Mais rock’n roll é impossível.

Em maio de 1994, as principais bandas de rock de Manaus experimentaram o gostinho de participar conjuntamente de um festival. A festa, com a participação de 16 bandas de todas as tendências, cerca de 2 mil pessoas na plateia e batizada de “1º Rock Unificado”, rolou no anfiteatro da Praça da Saudade, no centro histórico da cidade. A praça foi construída sobre um cemitério indígena. Do rock tradicional ao blues, do punk rock ao hardcore, todas as correntes dos headbangers estavam ali representadas: Harvester, Jack & Daniel’s Inc., Insistência, Scarecrow, Atecubanos, Os Sórdidos, Mentes Poluídas, Cielo Norte, Lectus, Self Defense, Elemento Neutro, Epidemia, Anti-Corpos Sociais, Diabo da Tasmânia, Agony Stages e Homicide.

Apesar do sucesso do festival mostrando que o rock amazonense estava mais vivo do que nunca, o jornalista Fred Novaes, vocalista, baixista e compositor da banda Insanus, de metal extremo, parecia não andar muito satisfeito com a performance do seu próprio grupo e resolveu radicalizar: dissolveu a banda, reuniu novos integrantes e criou a banda Dada Mao. Sim, o dadaísmo iria renascer em Manaus nem que fosse preciso ser extraído a fórceps. O nome da banda, que não queria dizer nada ou que simplesmente dizia tudo, caiu no gosto dos amigos do baixista. O projeto musical rolou por alguns meses, mas acabou não vingando. Fred Novaes desfez-se da banda e foi cuidar de sua carreira jornalística.

Na mesma época, o cantor e guitarrista Daniel Dazu, o “Dan”, oriundo da banda Wause! Wause!, também estava fazendo planos para montar sua própria banda de rock. Para isso, havia arregimentado Miguel Rates (baixo e vocal), Airton Dantas (guitarra solo e vocal) e Erick Aguiar (bateria). O quarteto estava ensaiando pra valer, mas ainda não havia definido o nome do grupo.

– O Fred tinha um bom nome, mas não tinha banda. Eu tinha uma boa banda, mas não tinha nome. Aí, eu meio que peguei esse nome emprestado sem avisar pro Fred – recorda Dan, morrendo de rir.

Em meados de 1995, nasceu oficialmente a banda Dada Mao. O poeta Tristan Tzara concordaria que essa apropriação do nome foi uma ação legítima do mais puro dadaísmo.

– A nossa ideia, desde o começo, era fazer música autoral – explica Dan, principal compositor da banda. – Nós começamos a ensaiar as nossas composições e já estávamos com um bom set list pronto, quando o Erick resolveu sair. Aí, convidei o Afrânio Girão para substitui-lo. Foi com essa formação que começamos a nos apresentar em alguns bares e casas noturnas da cidade.

Alguns anos depois, Afrânio Girão deixou a banda e foi substituído por Voulner Sá. Com a adição do backing vocal Carlos Jones, vocalista principal nos “covers” de música gringa, a formação clássica da Dada Mao estava completa. Além de shows no Ecos Bar, Bananas Beer, Marques Rock Café e Planeta Rock, também se apresentaram em Barcelos e Manacapuru.

Os músicos Miguel Rates, Ayrton Dantas e Daniel Dezu, da banda Dada Mao

Em 2000, a banda Dada Mao conquistou o 1º lugar no Festival Universitário de Manaus (FUM), com a música “1/4 de Século”, composta por Dan, Evaldo Jr. e Marcio Morrison, e, a convite de Cileno Conceição, participaram de um tributo a Bob Marley, no Coração Blue.

– A gente tinha uma pegada meio rock, meio reggae, tipo Paralamas e Skank, porque nos identificávamos com os dois ritmos – relembra o vocalista. – Mas, nas nossas letras, falávamos sobre coisas do dia-a-dia. Sexo, política, miséria, sofrimento, tudo o que está ao nosso redor. Não usamos o tradicional discurso rastafari, aquelas coisas de volta à África. Isso não tinha muito a ver conosco.

A banda ainda participou das duas primeiras edições do Fronteira Norte, considerado o maior festival de rock da Amazônia, quando, em 2001, o guitarrista Airton Dantas deixou a banda por razões pessoais. Ele não teve substituto e a banda se transformou num “power trio”, com alguns convidados especiais sendo chamados para engrossar a couraça do bicho.

Em 2002, a banda Dada Mao fez seu único registro em CD, pelo projeto “Valores da Terra”, promovido pela Fundação Municipal Villas-Lobo. O disco tinha 11 músicas, quase todas de autoria de Dan, algumas parcerias dele com Miguel Rates e a célebre “1/4 de Século”, que havia conquistado o FUM. O set list é esse aqui: “Quase Estado Irreversível”, “Tá No Sangue”, “Cabo de Guerra”, Dois Mundos (Luz do Sagrado)”, Capitulou”, “Mocidade Antiga”, “Se O Muro Fosse Mais Baixo”, “Punñetero Desalmado”, “1/4 de Século”, “Edmundo Vai à Luta” e “Triste Dia Tão Feliz Pra Alguém”.

No mesmo ano, o baixista Miguel Rates saiu da banda e a Dada Mao fez uma pequena pausa até 2003, voltando com outra formação: Daniel Dezu (voz e guitarra), Ido (guitarra solo), Rodrigo Cuia (baixo e vocais), Marcão (teclados), Everton Almeida (percussão) e Voulner Sá (bateria). Bendito seja, Jah nosso que está no céu, porque foi com essa formação que a Dada Mao embiocou de vez no ritmo jamaicano, fazendo bastante shows em bares importantes como Safari, Coração Blues, onde rolou o lançamento do CD da banda, Jack in Blues e Allegro.

A Dada Mao também participou de outras edições do Fronteira Norte, tocou na Festa do Pescador, em Tapauá, e fez várias apresentações no Reggae Fest, do Ao Mirante Music Bar, que era produzido por Marcelo Ipanema, da banda Deskarados.

Em 2005, depois de se apresentar esporadicamente com diversas formações, a banda pendurou definitivamente as chuteiras e Dan foi desenvolver outras atividades profissionais.

Miguel Rates (baixo e vocais), Dan (voz e guitarra), Cláudio Caju (percussão), Ayrton Dantas (guitarra solo e vocais) e sentado no chão o Afrânio (bateria)

Tempos depois, Dan foi convidado por Everton Almeida para ser vocalista e guitarrista do projeto “Batuque S. A.”, da ONG Associação Batukada. Formada por um grupo de 20 a 30 adolescentes, a ONG mantinha uma parceria com o GRES Vitória Régia e visava formar novos instrumentistas para a escola de samba. Entre os professores da ONG estavam o tecladista Tiozinho Solano e o percussionista venezuelano Carlos Valdez, que coordenava o projeto.

– Apesar de o trabalho ser focado nas várias vertentes do samba, a gente também tocava rock, reggae e MPB – recorda Dan. – Acabamos criando uma banda de apoio para shows e apresentações na TV. Esse foi um dos projetos que eu mais gostei de participar em toda a minha trajetória como músico.

O projeto durou pouco mais de um ano. Na sequência, Dan foi convidado pelo empresário Roberto Carvalho para se apresentar aos domingos no tradicional Bar do Armando, no Largo de São Sebastião. O desafio ali seria tocar rock e reggae num dos bares mais tradicionais de Manaus, reduto da banda carnavalesca mais escrachada da cidade, a famigerada BICA, e cuja ambiência musical era voltada exclusivamente para chorinho, samba, bossa nova e clássicos da MPB.

Inicialmente apenas com voz e violão, Dan foi conquistando os boêmios tradicionais com sua voz melodiosa, metendo um rock aqui, um reggae ali, em meio à sequência de clássicos da MPB. As apresentações do músico foram tão bem-sucedidas, que ele já está no Bar do Armando há mais de uma década. E aquilo que no início era apenas voz e violão se transformou, com o passar dos anos, em um grupo musical da melhor qualidade, que a galera passou a chamar de Rivotrio. É o próprio Dan que relembra essa história:

– A Rivotrio é uma banda que eu nunca fiz e nunca pensei em fazer. Ela foi se formando durante esses 13 anos que eu toco lá no Armando. Primeiro chegou o Sandro, que eu nunca tinha visto na vida. Ele trouxe a percuteria dele e a gente virou uma dupla. Depois veio o Denilson Bentes, o nosso “Dutty”, que eu também nunca tinha visto. Ele tava com o baixo no carro e começou a tocar com a gente… Aí, viramos um “power trio”, mas temos um 4⁰, 5⁰ e 6⁰ elementos que também participam das nossas apresentações: Alexandre Pizzano, Gustavo Cereja e Darcio Pinheiro, respectivamente. Por isso a banda na verdade se chama Rivotrio+. Aliás, essa banda nem tem nome. Rivotrio é só um apelido que a gente mesmo colocou pra tirar onda. Enfim, durante esse período todo eu já toquei em vários bares e festas na cidade… Sozinho ou em dupla com o Sandro, com a Rivotrio e até com outros músicos. Mas é o Bar do Armando que eu considero a minha casa!

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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