Manaus-Babilônia Extended

A descoberta do reggae na Periferia Zion

Bob Marley e os Wailers durante a excursão para divulgação do álbum Live!
Postado por Simão Pessoa

Por Simão Pessoa

De qualquer forma, o último disco que comprei de Bob Marley foi “Talkin’ Blues”, lançado em 1991, para lembrar os dez anos de morte do cantor. É um disco clássico por excelência. Traz um show dos Wailers numa estação de rádio – o veterano Joe Higgs está nos vocais e na percussão, substituindo Bunny Wailer, que preferiu ser fazendeiro na Jamaica a levar o reggae para o resto do mundo.

As versões sem verniz de “Kinky Reggae” e “Get Up, Stand Up” são maravilhosas. Inclui também Marley explicando, numa entrevista ao jornalista jamaicano Dermott Hussey, os principais fundamentos da filosofia rastafári, e apresenta ainda outra versão de “I Shot The Sheriff”, gravada na segunda noite dos Wailers no Teatro Lyceum (onde foi gravado o disco “Live!”, em 1975).

Parei de comprar discos de reggae (como já havia parado de comprar discos de rock), mas continuei curtindo o gênero à distância e gostando muito das bandas brasileiras que abraçaram a causa (Paralamas de Sucesso, Cidade Negra, Skank, etc).

Naquele mesmo ano de 1991, durante uma das noitadas etílicas no Bar Calígula, na Aparecida, dos escritores Rui Sá Chaves e Dori Carvalho, conheci o engenheiro industrial José Luiz Marques, que era fã da banda cyberpunk Sigue Sigue Sputnik e de Bob Marley. Foi ele que me falou pela primeira vez da existência de uma nascente cena reggae nos novos bairros da periferia de Manaus. Segundo ele, eram apenas bandas “covers”, mas muito talentosas e interessantes do ponto de vista musical.

O cantor guianense Eddy Grant

Na companhia do Zé Luiz, fui conferir de perto três dessas bandas e confesso que fiquei bastante empolgado. A primeira delas, Rampage (“Tumulto”), se apresentava no Bar do Militão, no São José II, nas noites de quinta-feira. Era apenas um trio de moleques na faixa dos 18 anos: Maurinho Barreto (vocal e guitarra), Pedro Lemos (baixo) e Nilton Caetano (bateria), todos operários do Distrito Industrial.

O que eles faziam de interessante? Reproduziam todas as faixas do dois primeiros discos do guianense Eddy Grant, com a massa regueira indo à loucura quando começavam os primeiros acordes de “I Don’t Wanna Dance”, incluída na trilha sonora internacional da novela “Sol de Verão”, exibida pela TV Globo entre 1982 e 1983.

Durante o intervalo do show, Zé Luiz levou os integrantes da banda para conversar comigo. Não resisti e fiz uma provocação:

– Porra, moleques, vocês tocam muito bem! E reggae da melhor qualidade! Mas eu pensei que a onda aqui do bairro fosse música brega e forró…

Maurinho caiu na risada e mandou um papo reto:

– Na verdade, a gente só toca reggae aqui, nas noites de quinta-feira, por pura diversão. De sexta a domingo, a gente participa de bandas de forró, que é o que ainda rende um cachê meio magro, mas que dá para ajudar nas contas do mês. A cidade de Manaus está dominada pelo forró, todo mês abre uma nova casa do gênero e aqui não seria diferente. É Casa do Forró, Consulado do Forró, Companhia do Forró, Balneário do Forró, Forró da Cabrita, Forró do Alopra, Forró do Coronel, Riacho Ecológico, Ponto do Forró… Parece uma praga!

– O que mais me deixou empolgado foi que você tem o timbre vocal do Eddy Grant e canta exatamente como ele! – insisti. – Se a gente fechar os olhos, pensa que está ouvindo o disco original. Você morou nos Estados Unidos para ter um inglês tão perfeito?…

– Porra nenhuma! – devolveu Maurinho, rindo de novo. – Nem sei para onde vai a língua inglesa ou o que o cantor está dizendo. Apenas decorei a pronúncia de cada música ouvindo os discos… Acho que dá pro gasto…

Deixamos o Bar do Militão por volta da meia-noite, logo após a apresentação da banda. Eu estava empolgado:

– Caceta, Zé Luiz, mas da próxima vez vamos trazer um gravador, que esses moleques tem futuro. São muito bons! Encontrando um produtor legal, eles vão deslanchar!

A banda humorística Casseta & Planeta

Dois meses depois, Zé Luiz me levou para ver uma nova banda, no bairro da Redenção. Dessa vez era um quarteto, chamado Kozmuz, também de moleques na faixa dos 18 anos: Beto Fontes (vocal e guitarra), Getúlio Cardoso (vocal e baixo), Virgílio Prado (vocal e teclados) e Ernesto Cordeiro (bateria). Dois deles eram comerciários, os outros dois, operários do Distrito Industrial.

O repertório deles era bem eclético: tocavam pedras do Steel Pulse e Black Uhuru, intercaladas com hits de Gilberto Gil e Djavan, mas também se permitiam algumas molecagens, como tocar “Vital E Sua Moto”, dos Paralamas do Sucesso, e emendar no reggae bem-humorado “Vê Se Vai Pra Jamaica”, do grupo Casseta & Planeta, que praticamente desanca o gênero.

A apresentação da Kozmuz durou apenas uns 50 minutos, mas o suficiente para deixar minha alma mais leve. Pela segunda vez, havíamos esquecido de levar um gravador para registrar a história. Também a minha conversa com eles foi apenas protocolar. O tecladista e o baterista tinham que correr pra casa porque o ônibus da empresa passava no bairro 5h da manhã e já era quase meia-noite.

Como o Zé Luiz era engenheiro industrial da Semp-Toshiba e eu era engenheiro de qualidade da Philco-Hitachi, combinamos de nos encontrar uma vez por mês, depois do expediente, em um dos barzinhos existentes no Cecomiz, ali mesmo no Distrito Industrial. Num desses encontros, acho que em setembro, ele me convidou para ver mais uma banda de reggae que estava fazendo o maior sucesso no bairro Zumbi dos Palmares. Nos mandamos pra lá.

Não me recordo do nome do bar, mas o lugar estava colocando gente pelo ladrão, de tão cheio. Ficamos em pé, do outro lado da rua, junto à barraca de um vendedor ambulante, bebendo cerveja em lata. Não dava pra ver a banda, mas dava pra perceber que eles tocavam muito bem. No repertório, bastante diversificado, rolou UB-40 (“Red Red Wine”), Yellowman (“Strong Me Strong”), Peter Tosh (“Legalize It”), Inner Circle (“Bad Boys”) e Bob Marley (“Natural Mystic”), entre outras.

Uma festa de reggae na periferia de São Luís

Ao perceber que éramos “forasteiros”, o vendedor ambulante, seu Marcelino, resolveu puxar conversa. Foi um bate-papo proveitoso e amistoso. Primeiro, ele quis saber o que nos levara até ali. Ficou espantado ao saber que só queríamos ouvir a cantoria daquele pessoal, que sequer conhecíamos direito. Após nos apresentarmos e ele sentir que éramos “sangue bom”, resolveu abrir o coração, sem esconder uma ponta de orgulho. Sim, ele conhecia a banda inteira, eram todos garotos do bairro, operários, comerciários, feirantes, estudantes, pedreiros. Aí, foi nomeando um por um:

– O vocalista é o Jorginho, trabalha na Evadin. O baixista é o Fernando, trabalha na Sanyo. O guitarrista é o Paulo, trabalha na TV Lar. O baterista é o Xavier, trabalha como ajudante de pedreiro. O percussionista é o Gregório, trabalha na Ceasa. O tecladista é o Raimundinho, o mais novo da turma. É estudante do Colégio Agrícola. O nome da banda é Black Star, mas não sei o que quer dizer, não! Outra coisa: eles não tocam só essas músicas tristes, não! Também tocam carimbó, música brega e lambada…

– Só por curiosidade, seu Marcelino – interrompeu Zé Luiz. – Mas como aqui não tem escola de música, como foi que eles aprenderam a tocar desse jeito?…

– Meu sinhô, não faço a menor ideia! – respondeu o vendedor. – Mas como a molecada daqui assiste muito aquela tal de MTV, acho que foi de lá, vendo aqueles filmes de cantores que passam o dia inteiro…

A banda Black Star encerrou sua apresentação por volta da meia-noite. Pagamos nossa despesa, agradecemos as informações, prometemos voltar outro dia e fomos embora. Na época, eu estava casado com a professora universitária Jane Jatobá, ex-vocalista da banda Tariri, e morávamos no Conjunto Rio Xingu, no bairro da Compensa, do outro lado da cidade.

Esse escriba e Jane Jatobá no Bar do Armando

Naquela solitária viagem pra casa, de madrugada, eu ia matutando sobre a enorme quantidade de talentos que a Babilônia devora, deglute e devolve em forma de estrume social, sem dar a menor importância para eles. O sentimento de impotência diante daquilo era simplesmente tenebroso.

Mas nem foi preciso ficar agoniado por muito tempo: em novembro, a Itautec, que acabara de comprar a Philco e desfizera a parceria com a Hitachi, resolveu acabar com a Engenharia de Qualidade e eu fui demitido sem justa causa, depois de 11 anos de bons serviços prestados.

Resolvi que era hora de me reinventar. Estava trabalhando no Distrito Industrial desde os 17 anos, contabilizando cinco anos de Sharp do Brasil, dois anos de Electra Industrial e 11 anos de Philco. Estava com 35 anos. Não pretendia passar o resto da vida acordando às 6h da manhã para voltar pra casa às 19h. O mundo real estava acontecendo fora daquele gigantesco galpão de zinco. Decidi dar adeus à minha profissão e fui ser redator publicitário na G&F Comunicações. Nunca mais entrei numa fábrica. Acontece. Fazer o que?

Só lamento ter perdido contato com o Zé Luiz e termos interrompido nossas expedições à cena reggae da Periferia Zion. Mas, a partir daí, comecei a usar o mantra que Bob Marley cantava na clássica “Three Little Birds”: “Don’t worry about a thing / ‘Cause every little thing / Gonna be all right” (“Não se preocupe com nada / Porque tudo vai ficar bem”).

Tem dado certo até agora. Irie, man!

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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