Manaus-Babilônia Extended

CAPÍTULO 6 – Lucinha Cabral

A artista plástica, cantora e compositora Lucinha Cabral
Postado por Simão Pessoa

Cantora, compositora e artista plástica, Lucia Maria Soares Cabral, mais conhecida como Lucinha Cabral, é a filha do meio do desembargador Luiz Francisco de Oliveira Cabral e da escritora Cacilda Barbosa Soares Cabral. Seu irmão mais velho se chama Luiz Furtado e o mais novo, Ciro Luiz.

Além de desembargador, Luiz Cabral era professor de Desenho nos ensinos médio e universitário, entalhador de respeito, artista plástico, ator teatral da trupe de Vovô Branco e um excelente violonista, participante fiel da turma de seresteiros da Manaus de outrora. Ele começou sua carreira profissional como promotor público em Barcelos e Carauari, tendo sido depois juiz designado para a comarca de Parintins.

Lucinha Cabral não recorda muitos de sua infância nos dois primeiros municípios, porque tinha entre oito meses e cinco anos durante esse período. Mas lembra que sua mãe dizia que eles conviveram muito com índios aculturados das etnias Tukano e Baniwa. A infância de verdade, diz ela, foi aquela passada em Parintins.

– Eu era meio “moleque de rua”! – recorda ela, morrendo de rir. – Eu brincava de bolinha de gude, que na verdade eram caroços de tucumã… Brincava de papagaio, jogava futebol, ia pra porrada com os moleques, mas o que gostava mesmo era de brincar de boneca. Brinquei até meus 14 anos. Mas não era aquele papo de “papai e mamãe”, não. Eu inventava histórias mirabolantes para as minhas bonecas. Acho que sempre fui meio teatral, meio circense, desde aquela época. Lembro que no colégio fiz o papel de diabo no Auto das Pastorinhas exatamente porque era muito danada e espevitada. Também dancei muito twist nas festinhas que aconteciam na minha casa. E foi conversando com os moradores mais velhos do lugar, como o seu Dário, um poço de sabedoria intuitiva aos 70 anos e grande contador de causos e lendas, que fui absorvendo a alma cabocla dos povos da floresta.

Como seu pai era a maior autoridade municipal depois do prefeito, era natural terem algumas regalias. Durante o período junino, por exemplo, os bois Caprichoso e Garantido iam se apresentar no terreiro da residência. O mesmo ocorria no período natalino, com os grupos de Pastorinhas apresentando suas jornadas épicas no presépio montado na sala de visitas da família.

Ainda criança, com pouco mais de nove anos, Lucinha Cabral veio passar as férias escolares em Manaus, na casa de parentes, e, como era muito traquina, levou uma queda da escada da residência que resultou em múltiplas fraturas. Foi levada às pressas para o Rio de Janeiro, onde permaneceu por cinco anos praticamente morando nos hospitais da cidade, presa em um desconfortável macacão de gesso. Como companhia, apenas sua mãe Cacilda e sua tia Lolita. E foi sua tia que, para minorar o sofrimento da infante, começou a lhe dar aulas de violão.

– Eu dormi em Parintins e acordei no Rio de Janeiro, quer dizer, minha infância foi interrompida abruptamente – diz Lucinha, sem nenhuma mágoa. – Aí, convivendo apenas com adultos comecei a amadurecer antes do tempo. Também perdi minhas raízes musicais amazônidas porque o que a gente ouvia nas emissoras cariocas era Djavan, Caetano, Milton Nascimento, Chico Buarque, Paulinho da Viola, João Bosco. Mas eu sempre fui muito livre, mesmo presa a uma cama. E acho que foi por conta disso que comecei a me voltar para o mundo artístico.

Quando retornou a Manaus, Lucinha Cabral já era uma adolescente rebelde e foi estudar no Colégio Batista Ida Nelson, onde começou a mostrar seus dotes vocais para os colegas de classe. Nessa época, seu pai havia se transformado em desembargador e presidia o Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas (TJAM). Percebendo a habilidade da filha para criar composições autorais e cantar sem desafinar, ele contratou o renomado violonista Domingos Lima para ser professor de violão da guria.

– Tudo que sei de violão, agradeço ao mestre Domingos Lima – se diverte. – E se não aprendi mais, a culpa não foi dele. É que sempre fui muito bagunceira e não levava muito a sério as aulas recebidas.

No início dos anos 80, Lucinha Cabral começou a se apresentar nos principais barzinhos da cidade (Opção, Consciente, Porão da Bossa, Galvez Botequim, Xorimã, Paulo’s Bar), mostrando suas próprias composições e a de outros cantoras e cantores que ela admira, como Gilberto Gil, Marisa Monte, Belchior e Elis Regina.

Simultaneamente, começou a desenvolver suas habilidades em artes plásticas, tendo sido contratada pela Fundação Cultural do Amazonas para ilustrar vários livros de autores amazonenses e uma série de pôsteres das três edições do “Concurso de Poesia Falada no Amazonas”, realizados no Teatro Amazonas, na mesma época em que começou a realizar suas primeiras exposições individuais nas galerias manauaras.

– O legal de cantar na noite é que você precisa agradar a plateia e acabam acontecendo coisas deliciosas – se diverte. – Uma noite, durante uma de minhas apresentações, uma mocinha se aproximou de mim timidamente e pediu para que eu cantasse “Fogão de Lenha”, do Torrinho. Eu achei o título lindo, mas o que ela queria mesmo ouvir era “Porto de Lenha”, de Torrinho e Aldisio Filgueiras. Cantei a música e a menina ficou superfeliz.

Convidada insistentemente para participar dos festivais de música que aconteciam na cidade, Lucinha sempre recusou os convites.

– Eu era muito medrosa e achava que se perdesse a competição também iria perder meu pique para continuar cantando na noite, o que era impensável porque aquilo era o meu ganha-pão – confessa. – Só que um dia, depois de muita insistência do cantor e compositor Jaime Pereira, resolvi participar do Festival Universitário de Música (FUM), defendendo uma música dele chamada “Canto Geral”. Foi uma surpresa porque ganhamos todos os prêmios: melhor intérprete, melhor letra, melhor arranjo, melhor música. Achei muito legal porque aquilo deu uma alavancada na minha carreira.

Já estabelecida como uma das grandes cantoras manauaras, com um repertório que ia do reggae ao rock, da MPB ao pop, do regionalismo dos beiradões ao cancioneiro universal, Lucinha Cabral ainda sentiu na pele o machismo inerente ao meio musical da taba. Premiada como “Melhor Cantora da Noite”, ao lado de outras personalidades como Anibal Beça (“Melhor Poeta”), Moacir Andrade (“Melhor Artista Plástico”) e outros, ela foi receber o seu prêmio no Teatro Amazonas, que teria como ponto alto um concerto musical do violonista Baden Powell.

– O apresentador, que não vou citar o nome, chamava os premiados, falava uma lambança a respeito do vencedor e entregava o microfone ao mesmo para que este falasse alguma coisa para a plateia – recorda. – Mas comigo, talvez por ser a única mulher premiada, não aconteceu isso. Ele fez a peroração, mas não me deu o microfone. Não contei conversa! Avancei em cima dele, tomei o microfone de suas mãos e disse uma frase que virou parte do folclore da cidade: “Eu nunca disse que era um uirapuru ou que tinha a voz mais maviosa da floresta, o que sempre falei e repito aqui de novo é que faço parte da passarada”. A plateia aplaudiu de pé e o apresentador não sabia onde enfiar a cara. Foi hilário!

Com mais de trinta anos na estrada, a cantora tem um repertório autoral muito interessante onde se destacam “Curupira”, um trabalho feito em parceria com o poeta Anibal Beça, “Brasileira”, música e letra de Lucinha, considerado um dos clássicos da música popular amazonense, “Molecagem”, um sambinha, como ela própria afirma, bem safadinho e malicioso, “Acauã”, primeira composição de sua autoria, ainda nos anos 80, “Love Tupiniquim”, que conta a história de uma gringa apaixonada por um caboclo, e “KD”, música que faz uma espécie de homenagem aos artistas de rua.

– A música KD fala desses artistas que ficam jogando bolinhas nos sinais de trânsito, numa espécie de malabarismo pela sobrevivência. É uma história que ficou no estilo Chico Buarque, mas sem querer ser pretensiosa – diz Lucinha.

A letra de “Brasileira” teve como inspiração a leitura do livro “Pátria das Águas”, do poeta Thiago de Mello, e a necessidade de homenagear seus companheiros de trincheira no meio artístico: “Sou Brasileira / Sou caboquinha / Da pátria d´água / com muito orgulho e farinha / Sou poesia / cunhantãbim / Disse o poeta maluco / Olho d’água, pedaço de mim… / Sou Tainã, igarapé / Balanço da rede, viola no peito, / Leseira baré / Sou curupira, sou caboquinha / Antônio Pereira, Aníbal Beça / Mariazinha… / Sou brasileira, sou brasileira / Porto de lenha / Sou boi-bumbá / Vila Santa Rita, Chico da Silva / Sou moronguetá / Meu som também dá / Pra se dançar / Disse o Raízes / São dois pra lá, dois pra cá… / Sou brasileira / Sou brasileira, caboquinha… / Brasileira… / Sou brasileira!”.

Tendo como parceiros de palco os músicos Marinho Simões, João Paulo Ribeiro e Marcelo Picanço Nunes, Lucinha Cabral também costuma mostrar nos seus shows as músicas mais conhecidas de compositores nortistas, entre eles Eliakin Rufino, Célio Cruz, Neuber Uchôa e Nilson Chaves.

– Sou uma cantora com uma voz meio jazzística, apesar de ser amazonense-raiz nas composições, de ser uma cantora caboquinha do Amazonas, mas trago uma linha que as pessoas gostam muito, que é essa minha mania de fazer scat singing quando estou empolgada. Tenho também um pezinho na senzala, gosto de swing, batuque, tambor, percussão. São essas coisas que procuro mostrar durante as minhas apresentações.

O scat singing é uma técnica de canto que consiste em improvisar palavras e sílabas sem sentido durante uma performance. O objetivo é criar um som similar ao de um solo instrumental, improvisando com a melodia e o ritmo. A técnica foi criada por Louis Armstrong e é muito utilizada por cantores de jazz. Ela consiste em fazer imitação de instrumentos como piano, saxofone ou trompete, criação de onomatopeias, improvisação de melodias usando apenas sons vocais e exploração de sílabas sem significado literal, como “doo-wah” e “ba-da-da”. Ella Fitzgerald é considerada uma das maiores cantoras de scat da história. O grito primal de Little Richards, “a wop bop a loo bop a wop bam boom!”, depois celebrizado por Elvis Presley, é um dos scats mais conhecidos do planeta.

Uma das músicas favoritas de Lucinha Cabral é o reggae “Pimenta Com Sal”, de Eliakin Rufino, cuja letra diz o seguinte: “Quem viu / Uma preta, uma branca / De mãos dadas na praia / Provocando frisson / Quem viu, quem viu… / O que a preta tem de redondo / A branca tem de delgado / O que a preta tem de pimenta / A branca tem de salgado / Pimenta com sal / Sal com pimenta / Uma branca, uma preta / Sal com malagueta / Provocando frisson”. A música foi gravada por Lucinha Cabral e fez tanto sucesso, que foi regravada pelas cantoras Euterpe, de Roraima, e Lucinha Bastos e Gaby Amarantos, do Pará, sendo que nessa segunda gravação teve a participação da mineira Fernanda Takai. Tudo índio, tudo parente.

No livro “Ave Maria”, de 1998, lançado pelo Coletivo Gens da Selva em homenagem à cantora, a escritora Cacilda Barbosa, mãe da homenageada, assim se manifestou:

Abusada: ela nasceu não chorando, mas com veludo no gogó. Nasceu afinada e cresceu sapeca, incontrolável danada. Cigarra da noite – bacurau dos barrancos, sempre quieta durante o dia – terrível, incrível quando a noite encobre as ruas. Mãos pequenas, porém enormes ao apertar a amizade. Sorriso fácil e sincero. Cantou nos pequenos bares, nos lares dos amigos, no coro de igrejas. Camaleoa sempre mudando de cor para enganar os percalços da vida ou a proibição que tentei impor de não deixá-la cantar na noite.

Lucinha: estrela que mesmo calada canta e encanta. Aprendeu os primeiros acordes no violão dentro das enfermarias do Rio de Janeiro, calando o pranto dos quais sofria. Lucinha: falar nela ou dela é falar de algo pra mim tão sublime como a vida. Quem é seu amigo é privilegiado pelo uirapuru encantado. Eu, sua mãe, sou privilegiada, porque realmente dei à luz uma estrela que já nasceu com luz própria e um coração acoplado eternamente ao meu.

Ela nasceu com veludo no gogó. Seu primeiro grito veio em uma escala musical. Muito cedo soube distinguir sons musicais. Cresceu pouco fisicamente, em espírito agigantou-se. Ao ver o primeiro violão, apaixonou-se. Virou cigarra cantante nos pequenos bares, entre amigos – onde dividia o beber e o sorrir.

Durante o dia sempre se comportou como uma estrela dorminhoca. Ao anoitecer sua voz acordava em acordes arrancados do violão e cantando encantava corações, embalava o amor pela arte de cantar. Sem a noite, sem o violão, sem amigos, por certo fenecerá como a flor sem água. Cantando ela vive e revive, alegra e ilumina. Até hoje: Lucinha canta, encanta, canta e caminha sem reclamar, sem uma queixa ou lamento, apenas vive para cantar.

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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