Por Simão Pessoa
Nascido e criado no bairro da Cachoeirinha, em Manaus, não lembro exatamente o dia em que fui fisgado pelo tal de rock’n’roll, mas parece que foi ontem. O que lembro, com absoluta certeza, é que minhas duas irmãs mais velhas, Simone e Silene, compravam muitos compactos (“singles”) da Jovem Guarda e dos Beatles, no final dos anos 60. Era esse tipo de som que eu curtia nas festinhas (“brincadeiras”) dadas em casa ou na vizinhança.
No início dos anos 70, aos 14 anos, comecei a gostar da santíssima trindade do heavy metal (Led Zeppelin, Deep Purple e Black Sabath). A voz esganiçada de Ian Gillan em “Speed King” me converteu, definitivamente, para a nova seita. Aliás, o primeiro disco que comprei na vida foi “In The Rock”, do Deep Purple, graças a um emprego de feirante que arranjei com meu amigo Wilson Fernandes (aka “Simona”), quando tinha 16 anos.
Todo sábado, eu ajudava o simpático Simona numa banca de verduras na Feira Livre da Cachoeirinha. Hoje pode até soar romântico, mas na época era uma pedreira. De manhã cedo, eu ajudava a montar a banca, descarregava verduras e legumes e colocava os preços (com giz) nas tabuletas de compensado.
Depois, ia pegar água para “aguar” as verduras. Aí, passava o dia inteiro vendendo as hortaliças, recebendo e dando troco (existe confiança maior?), até que por volta das 10 da noite, quase um zumbi, ajudava a desmontar o circo. Além dos trocados que ganhava, levava pra casa um bom sortimento de verduras e legumes, que ajudavam no apertado orçamento doméstico dos velhos. Tenho orgulho daquela época.

Mário Adolfo, Dona Inês, mãe do Mário, e esse vosso escriba nos anos 80
O jornalista Mário Adolfo, meu melhor amigo desde os dez anos de idade e uma espécie de irmão mais velho, nunca se interessou pelo rock. Sua praia era (e ainda deve ser) a MPB, de Lupicínio Rodrigues a Caetano Veloso. No máximo, ele se empolgou com os Beatles e a Jovem Guarda. Nunca entendi porque ele não fez a sagrada transição e atravessou o portal do heavy metal, já que compartilhávamos o mesmo amor por gibis, contracultura, humorismo, rebeldia e literatura afins. Choses.
O certo é que dos 16 aos 20 anos ficamos muito afastados um do outro por conta de nossos gostos musicais – apesar de continuarmos “blood brothers” (“irmãos de sangue”). Ele e sua galera (Sidão Ribeiro, Armandinho Pascarelli, Carlinhos Macabra, Felisberto Pascarelli, Ruizinho Assunção, Serginho Mubarak, Ricardo Pinheiro, Carlos Barriga, Galúcio, etc.) eram da turma da serenata, banquinho e violão. Ganhavam as minas da Cachoeirinha com poesia.
A minha turma (Luiz Lobão, Paulo César Pixoreca, Airton Caju, Gilson Cabocão, Áureo Petita, Heraldo Cacau, Marcos Chulapa, Nonato Índio, etc.) era da pá virada: rock e funk na veia. Nossa praia eram as Cohabs (da Raiz e do Parque Dez) e os cafundós de São Francisco. Ganhávamos as minas na mão grande. Nunca nenhuma delas reclamou. Tenho saudade daquela época.
Minha devoção pelo rock começou, verdadeiramente, a partir de 1973, quando comecei a trabalhar na Sharp do Brasil, como técnico do Controle de Qualidade. Ganhando cerca de mil dólares por mês, com apenas 17 anos e morando na casa dos meus pais, aquilo foi tipo acertar na megasena acumulada. Eu dava metade do salário para minha mãe, separava 200 dólares para a vagabundagem (birita, cigarros, cinema e mulheres) e torrava o resto na compra de discos.
Comprando uma média de 30 discos por mês, em pouco tempo eu já possuía uma das melhores coleções de rock da Cachoeirinha. Confesso que eu não era o melhor colecionador do mundo. Tratava direitinho dos discos, mas foi muita festa em casa, muita gente tacando o dedão gorduroso no sensível vinil, um ou outro usando até mesmo para botar o copo de caipirinha em cima. Mas os danados resistiram.

César Abu, Jaques Castro e esse escriba durante uma canavial neste novo milênio
Quando, aos 20 anos, fui morar com Jaques Castro, César Rodrigues e Rui Johnny Mathis num “apertamento” no bairro da Glória, a coleção passava de mil LPs. Tudo coisa fina. Apesar de ser um comprador compulsivo, eu sabia exatamente o que estava querendo ou procurando. As três principais lojas de disco de Manaus (“Disco de Ouro”, de Sara e José Simones, “Ponto”, de Joaquim Marinho, e “Transa”, nos altos da loja “Jaú, o Camiseiro”, ali na Sete de Setembro) eram minhas velhas conhecidas. Eu passava horas e horas escarafunchando os estoques, selecionando discos e testando as “bolachas” nas cabines de audição. Descobria coisas que nem os proprietários sabiam que tinham. Pré-história tem disso.
Do heavy metal, eu fui de Led Zeppelin a Bad Company. Do glam metal, de T. Rex a Gary Glitter. Do progressivo, de Jethro Tull a Pink Floyd. Do rock industrial, de Kraftwerk a Tangerine Dream. Isso, sem contar os – para mim – clássicos: Rare Earth, Creedence, J. Geils Band, Slade, Grand Funk Railroad, Procol Harum, Leon Russell, Edgar Winter Group e outros metaleiros que ninguém gostava ou sequer conhecia.
Meus sets de discotecagem nas boates Danilo’s, na Rua Silva Ramos, no Centro, e na Privé, na Rua Delfim de Souza, no bairro da Raiz, eram verdadeiros laboratórios. Se determinada música fizesse sucesso, eu a repetiria exaustivamente nas “brincadeiras” do bairro. Caso contrário, eu continuaria curtindo em casa, mas isolado do populacho por um potente headphone Sansui SS-40.
Para começar a comprar discos de funk e de reggae, que funcionavam melhores nas pistas de dança, foi um pulo. Na década de 80, quando começou minha fase de casa-separa-mora-com-amigos-casa-separa-mora-com-amigos, meus discos de vinil foram sumindo, esquecidos em trocentas casas e apartamentos diferentes.
Envolvido com o sindicalismo até a medula, logo me afastei do rock, apesar de continuar acompanhando sua trajetória de uma distância razoável. Mas parei de comprar discos. Limitei-me a ler sobre os lançamentos em revistas especializadas.
Penso que depois da morte do baterista John Bonham, do Led Zeppelin, em 1980, o tipo de rock que eu curtia ficou sem a menor graça. Em compensação, o funk acabou gerando o hip hop e o electro, e o reggae deu origem ao dancehall e ao raggamuffin. Acabei me envolvendo muito mais com esses dois gêneros.
O que causou essa minha mudança de rumo foram dois acontecimentos que não guardavam qualquer relação entre si, ambos acontecidos em 1976. Vamos ao primeiro deles, que li a respeito pela primeira vez em uma pequena notinha de dez linhas publicada no jornal Versus, editado pelo jornalista Marcos Faerman. Na época, eu era assinante do jornal, estudava no 4º período de Engenharia Eletrônica na UTAM e trabalhava como Chefe de Assistência Técnica da Sharp do Brasil. O trotskista Jaques Castro era meu funcionário e César Abu trabalhava no Setor de Pessoal.

O pianista Tenório Jr;
Na madrugada de 18 de março de 1976, o pianista carioca Francisco Tenório Jr. saiu do Hotel Normandie, na esquina da avenida Corrientes com a rua Rodrigues Peña, em Buenos Aires, para comer um sanduíche e comprar um remédio. Tenório Jr. estava em Buenos Aires como acompanhante de Vinicius de Moraes e Toquinho, que faziam uma temporada no Teatro Gran Rex, também na Corrientes. Ao sair para a rua, deixara um bilhete na portaria dizendo o que fora fazer e avisando: “Volto logo”. Mas Tenório não voltou, nem aquela noite nem nunca. Na verdade, nunca mais foi visto por seus amigos. E seu corpo até hoje não foi encontrado. O músico tinha 33 anos.
O “desaparecimento” de Tenório ocorreu na véspera do golpe militar comandado pelo general Jorge Videla contra a presidenta Isabelita Peron. Nos anos seguintes, a Argentina viveria sob uma ditadura militar responsável por 30 mil casos como o dele. Mas, na verdade, os “desaparecimentos” começaram antes do golpe e o de Tenório foi um dos primeiros. Tenório era inocente, nada tinha a ver com política. Aliás, não se interessava por nenhum assunto que não fosse música. Mas, com seu cavanhaque, jeans e, possivelmente, botas, foi confundido com militantes Montoneros, um dos grupos armados de guerrilha urbana ligada ao peronismo, que teriam um ponto de encontro perto do hotel àquela hora.
De 1976 para cá, muita coisa foi esclarecida. O que, desde o primeiro dia, eram suspeitas difíceis de apurar, já está agora mais do que confirmado. Desde 1986, sabe-se que ele foi preso, torturado e morto pela Marinha argentina, com a conivência de elementos da embaixada brasileira em Buenos Aires ligados à repressão nos dois países. A fonte dessas denúncias foi um ex-oficial da Marinha argentina, Claudio Vallejos, que teria testemunhado tudo e, em maio de 1986, contou a história ao repórter Maurício Dias, da revista Senhor. A matéria saiu, mas a Justiça dos dois países omitiu-se de comentar o assunto.
Tenório foi preso perto do hotel por gente da Marinha argentina e, por mera comodidade, levado para uma delegacia a três quarteirões dali. Identificou-se como brasileiro, apresentou seu passaporte e sua carteira do Sindicato dos Músicos de Rio, disse onde estava hospedado e pediu a seu interrogador, o tenente da Marinha Alfredo Astiz, que fosse ao Hotel Normandie para checar. Mas Astiz precisava mostrar serviço. Seu grande alvo naquela noite, o montonero Ricardo Caño, escapara-lhe debaixo do nariz. E, se não tinha Caño, tinha aquele brasileiro suspeito. Tenório foi levado de capuz e debaixo de murros para o camburão que o transportou para a Escola Mecânica da Armada (Esmar).

Desenho de Tenório Jr., Toquinho e Vinicius de Moraes em Buenos Aires
Antes do nascer do sol, os colegas de Tenório no hotel deram pela sua falta: Vinicius, Toquinho, o contrabaixista Azeitona, o baterista Mutinho. De manhã, a preocupação virou pânico e saíram a bater hospitais, delegacias e necrotérios. Mas Buenos Aires tornara-se uma cidade conflagrada e sem informações. O embaixador brasileiro Rodolfo Souza Dantas fora, no passado, cunhado de Vinicius. Este impetrou um habeas-corpus, que pode ter parado na gaveta do ministro-conselheiro da embaixada, Marcos Torres, ligado à linha-dura no Brasil. O que se passou a partir daí foi monstruoso: os funcionários brasileiros que deveriam procurar Tenório para protegê-lo fizeram o contrário. Eles o acharam, mas juntaram-se aos seus algozes para matá-lo.
Na Esmar, os argentinos concluíram que o já muito machucado Tenório não lhes interessava. Mas, segundo o depoimento de Vallejos à Senhor, “interessava ao SNI brasileiro” – referindo-se ao braço do SNI em Buenos Aires, nas figuras do major Souza Batista e do capitão Visconti. Eles passaram a “interrogar” Tenório, que, como músico, devia conhecer “subversivos” no Brasil. Tenório foi torturado durante nove dias, sendo submetido à “churrasqueira” (uma cama de molas para choques elétricos) e afogamentos de cabeça para baixo. E no que, a ser verdade, é uma página negra na história da diplomacia brasileira, o ministro-conselheiro teria falado com Tenório durante a tortura e sido conivente com a selvageria.
Quando chegou de Brasília a informação de que nada havia contra Tenório, ele já não estava em condições de ser devolvido à rua ou mesmo mandado para um hospital militar argentino. Tornara-se um arquivo: vira seus torturadores, sabia que eram brasileiros. O SNI não podia deixá-lo voltar ao Brasil e os argentinos não queriam mantê-lo preso. Então, com a autorização dos brasileiros, o argentino Astiz cobriu Tenório com um capuz e deu-lhe um tiro na cabeça. O corpo foi enterrado numa cova rasa no cemitério de La Chacarita – onde, com certeza, não ficou por muito tempo. Era costume da repressão “sumir” com os corpos dos dissidentes.
Pois foi exatamente na manhã de um sábado, em março de 1976, que depois de escarafunchar o estoque de disco da loja Disco de Ouro, localizada na rua Marechal Deodoro, no centro de Manaus, descobri o primeiro disco de Bob Marley, o festejado “Catch A Fire”. Na época, como já disse, meu interesse era por funk e heavy metal, ou seja, James Brown e Led Zeppelin, Funkadelic e Black Sabbath, Earth, Wind & Fire e Deep Purple.
Quando vi aquela capa estranha, achei logo que era uma nova banda de funk. “Que grupo é esse?”, perguntei da proprietária da loja, Sara Cury. Ela não sabia. Seu marido e sócio, o comendador José Simones, também não possuía nenhuma informação a respeito. Fiquei escutando a bolacha de vinil em uma das cabines de audição existentes na loja. Devo ter passado a manhã inteira naquela atividade febril. Quando retornei pra casa, por volta do meio-dia, com o disco debaixo do braço, já era um cristão-novo da causa do reggae.
Para ser sincero, eu conhecia o reggae (só não sabia que ele tinha esse nome) há pelo menos dois anos. As músicas “I Shot The Sheriff”, gravada por Eric Clapton no álbum “Houses Of Holly”, faziam parte dos meus sets de discotecagem, tanto nas “brincadeiras” do bairro, como nas boates Privé e Danilo’s, onde, volta e meia, eu era convidado para dar uma canja.
Além disso, um amigo do bairro, Luiz Lobão, havia comprado um disco do Gregory Isaacs (provavelmente supondo tratar-se do novo nome do soul brother Isaac Hayes), que ouvíamos de vez em quando, tentando descobrir em que linha da “black beat” o sujeito se encaixava. Nada do funk feito na época tinha aquele balanço meio devagar-quase-parando. Quer dizer, eu já havia esbarrado no reggae, mas fora incapaz de associar o nome à criatura.
Do citado “Catch A Fire”, eu havia gostado de “Slave Driver”, um retrato doloroso e sincero sobre a escravidão, do balanço malemolente de “Stir It Up” e de “Kinky Reggae”, onde brilham o baixo de Aston “Family Man” Barret e a segunda voz, feita de certa maneira preguiçosa, por Peter Tosh. Mas a canção que me pegou na boca do estômago, como um potente uppercut, foi mesmo “Concrete Jungle”, uma das primeiras músicas de Bob Marley a falar da realidade das favelas. No caso, a de Concrete Jungle, bairro de lata que concorria com Trenchtown no quesito marginalidade barra-pesada. O balanço da música, a voz lamurienta de Marley e o sincopado de baixo e bateria eram verdadeiramente indescritíveis. Como é que se dançava aquela “coisa”, eu ainda levaria muitos anos de estrada para descobrir.
O segundo disco dos Wailers que me caiu nas mãos mostrava uma desbundante e selvagem apresentação da banda ao vivo (“Live!”), gravado quando os jamaicanos se apresentaram no Teatro Lyceum, em Londres. Entre os destaques desta verdadeira obra-prima estavam “Trenchtown Rock”, “Them Belly Full” e “I Shot The Sheriff”. A versão ao vivo de “Get Up, Stand Up” tem aquele indefectível iô-iô-iô que seria imitado pelo Police e pelo Iron Maiden – o cantor Paul Di’Anno caprichava na versão de “Drifter”. Hit do verão jamaicano de 1971, “Trenchtown Rock” tem um dos melhores versos de Bob Marley: “Uma coisa boa a respeito da música / É que quando ela bate, você não sente dor”.
A música, cuja letra fala da vida dura no gueto mais famoso da ilha, não foi registrada em nenhum LP de estúdio que o rei do reggae gravou pela Island. Marcia Griffiths, ex-vocalista das I-Threes, também a coverizou brilhantemente no seu disco, “Marcia”, de 1989. Resumo da ópera: a audição desse disco pauleira gravado ao vivo quase me fez mandar o heavy metal e o funk irem comprar batatas chips na esquina. O diabo é que o disco não funcionava nas pistas de dança, já que ninguém sabia qual o gingado necessário para acompanhar aqueles acordes malucos.
Meu próximo passo foi adquirir “Kaya”, uma obra em que o jamaicano pega leve, mas nem por isso deve ser considerada menos fundamental. As mensagens estão entre as melhores proferidas pelo rastaman. Bob questiona seu exílio em Londres (“Running Away”), manda um recado para a amada Cindy Breakspeare (“Is This Love”), detona canções canábicas (“Easy Skanking”, “Kaya”) e reflete certo desapontamento com o estado de sua terra natal (“Time Will Tell”, “Misty Morning”). Na época de seu lançamento o governo brasileiro encrencou com a capa do disco, que mostrava um belo espécime da erva preferida de Marcelo D2. Graças à Zona Franca, em Manaus a gente teve acesso ao disco original importado.
O disco seguinte, “Babylon By Bus”, era uma coletânea das melhores apresentações dos Wailers em históricos shows registrados em Paris, Amsterdã, Copenhague e Londres. O disco se diferencia do “Live!” por apresentar sucessos de Bob em versões mais aceleradas e ecos do movimento punk, que foi devidamente homenageado pelo cantor em “Punk Reggae Party”, parceria de Bob com o maluco-beleza Lee Perry, o sujeito que praticamente inventou o reggae psicodélico.
Os destaques do disco ficam por conta dos solos envenenados do guitarrista Junior Marvin em “Heathen” e “War” – que ele considera seu melhor trabalho –, a bateria e o baixo dos irmãos Carlton e Aston Barret (especialmente na belíssima “Positive Vibration”, que abre o disco), a versão definitiva de “War/No More Trouble”, o fôlego redobrado de “Is This Love” e “Exodus”, o canto afinadinho das divas I-Threes em “Punk Reggae Party” e a vibração do público em “Lively Up Yourself”. É um dos melhores discos ao vivo de todos os tempos e presença obrigatória nas discotecas dos reggaemen de responsa.
Em 1981, o herbsman resolveu morrer um dia depois que completei 25 anos. Tomei um porre federal escutando sem parar “Survival”, que havia comprado ao início do ano (o disco é de 1979). Ao contrário de “Kaya”, “Survival” era um trabalho raivoso. Depois de uma excursão pela África, Bob Marley começou a duvidar da divindade de Haile Selassie e não deixa por menos: manda recados para o seu povo (“Africa Unite”, “Wake Up And Live”), disseca o atentado contra sua vida, ocorrido três anos antes (“Ambush In The Night”), escreve um dos hinos da libertação do Zimbábue, uma antiga colônia inglesa chamada Rodésia (“Zimbabwe”), e mostra pessimismo em relação ao mundo (“So Much Trouble In The World”). Uma das canções do álbum, “One Drop”, chegou a tocar, ainda que timidamente, nas rádios e pistas de dança de Manaus.
Salvo engano, Gilberto Gil introduziu Bob Marley na MPB em 1979, quatro anos depois de “No Woman No Cry” ter alcançado o primeiro lugar na parada da Inglaterra. Na versão do baiano cintilavam os versos “amigos presos, amigos sumindo assim, pra nunca mais…” Não dava pra esquecer o pianista Tenório Jr., né não? A mesma música foi regravada pelo grupo japonês The Nenes e pelo trio de rap americano Fugees, atestando que o jamaicano continua uma influência forte para as novas gerações de todo mundo.
O certo é que vinte e um anos após sua morte, o status de Bob Marley ultrapassava fronteiras e gêneros musicais. Tanto que Gilberto Gil escolheu a dedo o dia de lançamento do CD, “Kaya N’gan Daya”, no qual presta homenagem a Bob Marley: 13 de maio, Dia da Abolição da Escravatura “A data tem tudo a ver. Apesar de ser comemorada no Brasil, a luta do negro, na verdade, é uma só em todo o mundo. E isso o Marley soube traduzir muito bem em suas músicas”, explicou Gilberto Gil à agência de notícias Reuters.
Fã de carteirinha do cantor jamaicano, Gil foi à terra natal de Bob Marley para reunir informações sobre Marley e registrar as imagens que fazem parte de um DVD dirigido por Lula Buarque. Para ele, uma das cenas mais emocionantes é o reencontro de Gil com a viúva de Bob, Rita Marley. O cantor baiano disse ainda que parte do “Kaya N’gan Daya”, lançado em 2002, foi gravado na Jamaica.

Gilberto Gil na Jamaica
Sua admiração por Marley vem de longa data, desde os anos 70, quando os baianos estavam exilados em Londres. “Fico feliz de poder homenagear um amigo”, afirmou Gil. “Além disso, o trabalho feito com carinho fica muito melhor. Fui à Jamaica algumas vezes por conta desse trabalho e tenho certeza que o CD vai ter grande repercussão no Brasil. Na Bahia ele já é sucesso certo por conta da interação que temos com as ilhas caribenhas e, principalmente, com o reggae de Marley”, garantiu.
Bom, mas não custa nada ressaltar que Bob Marley não inventou o reggae – façanha que muitos creditam a Lee “Scratch” Perry, produtor de Marley nos anos 70, e ao baixista Aston “Family Man” Barrett, mais tarde incorporado aos Wailers. Claro que há controvérsias a respeito. Em compensação, Bob Marley foi o maior divulgador da música e cultura jamaicanas, permanecendo fiel ao “roots reggae” até o fim de sua vida.
Mais que isso: Bob Marley foi o primeiro e único superstar do Terceiro Mundo a conquistar o planeta. Suas gravações com os Wailers influenciaram Bob Dylan, Eric Clapton, U2, Keith Richards, KRS-One, Carlos Santana e The Clash, entre outros, além de estar na base do surgimento de uma nova sonoridade africana, por meio de artistas como Remmy Ongala (Zaire), Lucky Dube (África do Sul), Fela Anikolapu-Kuti (Nigéria) e Alpha Blondy (Costa do Marfim).
Sua história é uma fábula de menino pobre, saído do modelo jamaicano de favela, que começou cantando para delinquentes (“rude boys”) e terminou como ícone máximo de seu país. Se quisesse, poderia ter governado a Jamaica. Bem que os políticos tentaram manipulá-lo. Sua resposta foi uma demonstração de poder inquestionável, ao reunir os líderes do governo e da oposição no palco durante um de seus shows, num apelo à paz. Quando lançou seu primeiro hit, “Simmer Down”, em 1963, ele não tinha onde cair morto. O sucesso permitiu que morasse de favor num quartinho do estúdio em que gravava, o hoje lendário Studio One, em troca de serviços de produção.

Bob Marley e sua fiel escudeira Rita Marley
Num de seus primeiros trabalhos, com o trio Soulettes, conheceu sua futura mulher, Rita Anderson. A carreira demorou a pagar suas contas. Em 1969, já bastante conhecido na Jamaica, Bob Marley tentou a sorte nos Estados Unidos. O melhor que conseguiu foi um emprego de operário numa fábrica da Chrysler. Mas, quando conheceu fama e fortuna, passou a distribuir dinheiro para os menos afortunados. Filas imensas de pedintes costumavam formar-se na frente da sua casa, no número 56 da Hope Road, a “estrada da esperança”, em Kingston. Todos tinham uma história triste para contar. Em certas ocasiões, o cantor chegava a distribuir entre US$ 20 mil e US$ 40 mil para mães comprarem comida e uniformes escolares para seus filhos. Não é à toa que o viam como um santo.
Seguidor da crença rastafári, ele sempre se engajou contra a Babilônia (versão rasta para o “sistema” do ideário yuppie muito em voga nos anos 80, que idolatrava o consumismo exacerbado dos novos milionários de Wall Street), alinhando-se na tradição da música de protesto. A influência rasta também se aproximava muito do lema “paz & amor” dos hippies, como demonstra a composição “One Love”, de 1965. Mas, embora sua celebração de reggae e ganja tenha virado binômio de surfistas dourados e neo-hippies, Marley foi, na verdade, aliado do movimento punk, tendo gravado, após ouvir The Clash, em Londres, em 1977, o hino “Punky Reggae Party”.
Ele sobreviveu a um atentado, em 1976, mas não ao câncer, que o levou em 1981, quando estava no auge. Sua última turnês foi a que teve mais público entre todos os artistas que se apresentaram na Europa em 1980. Os motivos para a permanência de Bob Marley na música pop, vários anos após o fim do ciclo do reggae (substituído por dancehall e raggamufin na década de 90), inclui tudo o que já foi mencionado aqui, mas também uma razão singela: sempre há uma música de Bob Marley perfeita para cantar durante uma situação de crise. Seu reggae tinha uma qualidade redentora que poucos conseguiam igualar.

Aníbal Beça e o pajé tukano Gabriel Gentil durante uma pajelança antes do Sabaníbal
Eu, entretanto, só fui descobrir que havia outras pessoas que gostavam de reggae em Manaus no final dos anos 80, quando comecei a frequentar as tertúlias musicais que aconteciam aos sábados na casa do poeta Anibal Beça.
Batizadas de “Sabaníbal”, nessas reuniões informais, que começavam ao meio-dia e entravam pela madrugada, os compositores, cantores, escritores e poetas da aldeia trocavam informações, mostravam seus trabalhos, discutiam a cena cultural da cidade e, claro, bebiam pra cacete.
Dessas reuniões, saíram alguns bons reggaes feitos pela dupla Armando de Paula-Anibal Beça, que foram mostrados pela primeira vez nos festivais de música de Manaus e Itacoatiara. Algum tempo depois, conheci o trabalho de Cileno Conceição e de Eliakin Rufino, ambos inspirados no ritmo jamaicano, e passei a não me considerar tão outsider assim.
Bem ou mal, eu agora tinha uma turma para incensar os Wailers. Sem contar que foi no “Sabaníbal” que conheci minha futura companheira Jane Jatobá, ex-vocalista do Grupo Tariri. Mas isso é uma outra história. Choses.