Boca do Inferno

Da exploração à irrelevância

Postado por Simão Pessoa

Por Yuval Noah Harari

As soluções potenciais cabem em três categorias principais: o que fazer para impedir a perda de empregos; o que fazer para criar empregos novos; e o que fazer se, apesar de nossos melhores esforços, a perda de empregos superar consideravelmente a criação de empregos.

Impedir por completo a perda de empregos é uma estratégia pouco atraente e provavelmente indefensável, porque significa abrir mão do imenso potencial positivo da IA e da robótica. No entanto, os governos podem decidir retardar o ritmo da automação para reduzir seu impacto e dar tempo para reajustes.

A tecnologia nunca é determinista, e o fato de que algo pode ser feito não quer dizer que deva ser feito. A legislação pode bloquear com sucesso novas tecnologias mesmo se forem comercialmente viáveis e economicamente lucrativas.

Por exemplo, durante muitas décadas tivemos tecnologia para criar um mercado de órgãos humanos completo, com “fazendas de corpos” humanos em países subdesenvolvidos e uma demanda quase insaciável de compradores abastados.

Essas fazendas de corpos poderiam valer centenas de bilhões de dólares. Mas a lei proíbe o livre comércio de partes do corpo humano, e, embora exista um mercado negro de órgãos, é muito menor e circunscrito do que se poderia esperar.

Retardar o ritmo das mudanças pode nos dar tempo para a criação de novos empregos capazes de substituir a maior parte das perdas. Porém, como já observado, o empreendedorismo econômico terá de ser acompanhado por uma revolução na educação e na psicologia.

Pressupondo que os novos empregos não serão apenas sinecuras públicas, provavelmente exigirão altos níveis de especialização, e, à medida que a IA continua a se aperfeiçoar, os empregados humanos terão de adquirir constantemente novas habilidades e mudar de profissão.

Governos terão de intervir, tanto no subsídio a um setor de educação vitalício quanto na garantia de uma rede de proteção para os inevitáveis períodos de transição.

Se um ex-piloto de drone de 41 anos de idade leva três anos para se reinventar como designer de mundos virtuais, provavelmente vai precisar de muita ajuda do governo para sustentar a si e a sua família durante esse período. (Esse tipo de esquema está sendo implantado pioneiramente na Escandinávia, cujos governos seguem o lema “proteger trabalhadores, não empregos”.)

Porém, mesmo que a ajuda do governo seja suficiente, não sabemos se bilhões de pessoas serão capazes de se reinventar repetidamente sem perder o equilíbrio mental.

Portanto, se apesar de todos os nossos esforços um percentual significativo do gênero humano for excluído do mercado de trabalho, teremos de explorar novos modelos de sociedades pós-trabalho, de economias pós-trabalho e de política pós-trabalho.

O primeiro passo é reconhecer que os modelos sociais, econômicos e políticos que herdamos do passado são inadequados para lidar com tal desafio.

Tome, por exemplo, o comunismo. Quando a automação ameaça abalar os fundamentos do sistema capitalista, pode-se supor que o comunismo seja capaz de retornar.

Mas o comunismo não foi feito para explorar esse tipo de crise.

O comunismo do século XX supôs que a classe trabalhadora fosse vital para a economia, e os pensadores comunistas tentaram ensinar ao proletariado como traduzir seu imenso poder econômico em poder político.

O plano político comunista conclamava a uma revolução da classe trabalhadora.

Que relevância teriam esses ensinamentos se as massas perdessem seu valor econômico e precisassem lutar contra a sua irrelevância, mais do que contra a exploração?

Como se começa uma revolução da classe trabalhadora se não há classe trabalhadora?

Alguém poderá alegar que humanos nunca se tornarão economicamente irrelevantes, porque, mesmo que não consigam competir com a IA no mercado de trabalho, sempre serão necessários como consumidores.

No entanto, não temos certeza se a economia do futuro vai precisar de nós, mesmo como consumidores. Máquinas e computadores poderiam fazer isso também.

Em teoria, pode-se ter uma economia na qual uma corporação de mineração produz e vende ferro para uma corporação de robótica, a corporação de robótica produz e vende robôs para a corporação de mineração, que extrai mais ferro, que é usado para produzir mais robôs, e assim por diante.

Essas corporações podem crescer e se expandir até os pontos mais distantes da galáxia e todas precisam de robôs e computadores – não precisam de humanos nem mesmo para comprar seus produtos.

Hoje computadores e algoritmos já são clientes, além de produtores.

Na bolsa de valores, por exemplo, algoritmos estão se tornando os mais importantes compradores de títulos, ações e commodities.

Da mesma forma, na publicidade, o cliente mais importante de todos é um algoritmo: o mecanismo de busca do Google.

Quando as pessoas projetam páginas da internet, frequentemente procuram agradar mais ao algoritmo de busca do Google do que a qualquer ser humano.

Algoritmos obviamente não têm consciência, assim, ao contrário de consumidores humanos, não são capazes de usufruir daquilo que compram, e suas decisões não são modeladas por sensações e emoções.

O algoritmo de busca do Google não é capaz de experimentar um sorvete. No entanto, algoritmos selecionam coisas com base em seus cálculos internos e preferências integradas, e essas preferências cada vez mais modelam nosso mundo.

O algoritmo de busca do Google tem um gosto muito sofisticado no que concerne a classificar as páginas de vendedores de sorvete na internet, e os vendedores de sorvete mais bem-sucedidos do mundo são aqueles que o algoritmo do Google coloca no topo da lista – não os que produzem o sorvete mais gostoso.

Sei disso por experiência pessoal. Quando publico um livro, os editores pedem-me que escreva uma descrição curta, que usam para publicidade on-line.

Mas eles têm um especialista que adapta o que escrevi ao gosto do algoritmo do Google.

O especialista lê o meu texto e diz: “Não use esta palavra – use aquela”.

Sabemos que se conseguirmos atrair a atenção do algoritmo, é certo que atrairemos a dos humanos.

Assim, se humanos não são necessários nem como produtores nem como consumidores, o que vai salvaguardar sua sobrevivência física e seu bem-estar psicológico?

Não podemos esperar que a crise irrompa com toda a força antes de começarmos a buscar as respostas. Será tarde demais.

Para lidar com as rupturas tecnológicas e econômicas inéditas do século XXI, precisamos desenvolver novos modelos sociais e econômicos o quanto antes. Esses modelos deveriam ser orientados pelo princípio de que é preciso proteger os humanos e não os empregos.

Muitos empregos são uma faina pouco recompensadora, que não vale a pena salvar. Ser caixa não é o sonho de vida de ninguém. Deveríamos nos focar em prover as necessidades básicas das pessoas e em proteger seu status social e sua autoestima.

Um modelo novo que atrai cada vez mais atenção é o da renda básica universal (RBU).

A RBU propõe que os governos tributem os bilionários e as corporações que controlam os algoritmos e robôs, e usem o dinheiro para prover cada pessoa com um generoso estipêndio que cubra suas necessidades básicas.

Isso protegerá os pobres da perda de emprego e da exclusão econômica, enquanto protege os ricos da ira populista.

Uma ideia relacionada a isso propõe ampliar o âmbito de atividades humanas consideradas “empregos”.

Atualmente, bilhões de mães e pais cuidam de seus filhos, vizinhos cuidam uns dos outros e cidadãos organizam comunidades sem que qualquer dessas valiosas atividades seja reconhecida como emprego.

Talvez precisemos mudar uma chave em nossa mente, e nos dar conta de que cuidar de uma criança é sem dúvida o emprego mais importante e desafiador do mundo.

Assim, não haverá escassez de trabalho mesmo que computadores e robôs substituam todos os motoristas, gerentes de banco e advogados.

A questão, é claro, é quem vai avaliar e pagar por esses empregos recém-reconhecidos? Supondo que bebês de seis meses não pagarão salários a suas mães, o governo provavelmente terá de se responsabilizar por isso.

Supondo também que vamos querer que esses salários cubram as necessidades básicas de uma família, o resultado final será algo não muito diferente da renda básica universal.

Uma outra opção é o subsídio público de serviços básicos universais, no lugar da renda.

Em vez de dar dinheiro às pessoas, que então poderiam comprar o que quisessem, o governo poderia subsidiar educação, saúde e transporte gratuitos, entre outros serviços.

Essa é, na verdade, a visão utópica do comunismo.

O plano comunista de promover a revolução proletária talvez esteja obsoleto, mas quem sabe ainda deveríamos visar a realizar o objetivo comunista por outros meios?

Pode-se discutir se é melhor fornecer às pessoas uma renda básica universal (o paraíso capitalista) ou serviços básicos universais (o paraíso comunista).

Ambas as opções têm vantagens e desvantagens.

Mas não importa qual paraíso você escolha, o problema real está em definir o que “universal” e “básico” realmente significam.

(Do livro “21 lições para o século 21”. Lição 2: “Trabalho”)

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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