Boca do Inferno

Da matança de mosquitos à matança de ideias

Postado por Simão Pessoa

Por Yuval Noah Harari

A sensação de desorientação e catástrofe iminente é exacerbada pelo ritmo acelerado da disrupção tecnológica. O sistema político liberal tomou forma durante a era industrial para gerir um mundo de máquinas a vapor, refinarias de petróleo e aparelhos de televisão. Agora, tem encontrado dificuldade para lidar com as revoluções em curso na tecnologia da informação e na biotecnologia.

Políticos e eleitores mal conseguem compreender as novas tecnologias, que dirá regular seu potencial explosivo. A partir da década de 1990 a internet mudou o mundo, provavelmente mais do que qualquer outro fator, mas a revolução da internet foi dirigida mais por engenheiros que por partidos políticos. Você alguma vez votou em qualquer coisa que concerne à internet? O sistema democrático ainda está se esforçando por entender o que o atingiu, e está mal equipado para lidar com os choques seguintes, como o advento da inteligência artificial (IA) e a revolução da tecnologia de blockchain.

Os computadores já tornaram o sistema financeiro tão complicado que poucos humanos são capazes de entendê-lo. Com a evolução da IA talvez logo cheguemos a um ponto em que as finanças não farão sentido nenhum para os humanos. E o que isso fará com o processo político? Dá para imaginar um governo que aguarda humildemente que um algoritmo aprove seu orçamento ou sua nova reforma fiscal? Enquanto isso redes peer-to-peer de blockchain e criptomoedas como o bitcoin poderão renovar completamente o sistema monetário, de modo que reformas fiscais radicais serão inevitáveis.

Por exemplo, a cobrança de imposto sobre o dólar pode se tornar impossível ou irrelevante, porque a maior parte das transações não vai envolver um valor de câmbio claro e definido para a moeda nacional, ou qualquer moeda em geral. Portanto, os governos talvez tenham de inventar impostos totalmente novos – talvez um imposto sobre informação (que será o ativo mais importante na economia, e também a única coisa trocada em numerosas transações). Será que o sistema político conseguirá lidar com a crise antes de ficar sem dinheiro?

Ainda mais importante, as revoluções gêmeas da tecnologia da informação e da biotecnologia poderiam reestruturar não apenas economias e sociedades mas também nossos corpos e mentes. No passado, nós humanos aprendemos a controlar o mundo exterior, mas tínhamos pouco controle sobre o mundo interior. Sabíamos construir uma represa e interromper o fluxo de um rio, mas não sabíamos interromper o envelhecimento do corpo. Sabíamos projetar um sistema de irrigação, mas não tínhamos ideia de como projetar um cérebro. Se mosquitos zumbiam em nossos ouvidos e perturbavam nosso sono, sabíamos matar mosquitos; mas, se um pensamento zumbia em nossa mente e nos mantinha despertos à noite, a maioria de nós não sabia matar o pensamento.

As revoluções na biotecnologia e na tecnologia da informação nos darão controle sobre o mundo interior, e nos permitirão arquitetar e fabricar vida. Vamos aprender a projetar cérebros, a estender a duração da vida e a eliminar pensamentos segundo nosso critério. E ninguém sabe quais serão as consequências disso. Humanos sempre foram muito melhores em inventar ferramentas do que em usá-las sabiamente. É mais fácil manipular um rio construindo uma represa do que prever todas as complexas consequências que isso trará para o sistema ecológico mais amplo. Da mesma forma, será mais fácil redirecionar o fluxo de nossa mente do que predizer o que isso fará a nossa psicologia pessoal ou nosso sistema social.

No passado, adquirimos o poder de manipular o mundo a nossa volta e de remodelar o planeta inteiro, mas, como não compreendemos a complexidade da ecologia global, as mudanças que fizemos inadvertidamente comprometeram todo o sistema ecológico e agora enfrentamos um colapso ecológico. No século que vem a biotecnologia e a tecnologia da informação nos darão o poder de manipular o mundo dentro de nós e de nos remodelar, mas porque não compreendemos a complexidade de nossa própria mente as mudanças que faremos podem afetar nosso sistema mental de tal modo que ele também vai quebrar.

As revoluções em biotecnologia e tecnologia da informação são feitas por engenheiros, empresários e cientistas que têm pouca consciência das implicações políticas de suas decisões, e que certamente não representam ninguém. Parlamentares e partidos serão capazes de assumir essas questões? No momento, parece que não.

O poder disruptivo da tecnologia nem chega a ser prioridade na agenda política. Assim, durante a corrida presidencial de 2016 nos Estados Unidos, a principal referência a uma tecnologia disruptiva foi relativa ao escândalo dos e-mails de Hillary Clinton, e, apesar de tudo que se disse sobre o fechamento de postos de trabalho, nenhum candidato mencionou o impacto potencial da automação.

Donald Trump avisou aos eleitores que mexicanos e chineses iriam tomar seus empregos, e que, portanto, eles deveriam construir um muro na fronteira mexicana. Ele nunca avisou aos eleitores que algoritmos iriam roubar seu trabalho, nem sugeriu que se construísse um sistema de proteção cibernético na fronteira com a Califórnia.

Esse pode ser um dos motivos (embora não o único) pelo qual até mesmo eleitores no coração do Ocidente liberal estão perdendo a fé na narrativa liberal e no processo democrático. As pessoas comuns talvez não compreendam a inteligência artificial e a biotecnologia, mas percebem que o futuro as está deixando para trás.

A condição de vida de uma pessoa comum na União Soviética, na Alemanha ou nos Estados Unidos em 1938 talvez fosse sombria, mas sempre lhes diziam que ela era a coisa mais importante do mundo, que ela era o futuro (contanto, é claro que fosse uma “pessoa normal” e não judia ou africana). Ela olhava os pôsteres de propaganda – que, tipicamente, mostravam mineradores, operários siderúrgicos e donas de casa em poses heroicas – e ali se via: “Eu estou naquele pôster! Sou o herói do futuro!”.

Em 2018 a pessoa comum sente-se cada vez mais irrelevante. Um monte de palavras misteriosas são despejadas freneticamente em TED Talks, think tanks governamentais e conferências de alta tecnologia – globalização, blockchain, engenharia genética, inteligência artificial, aprendizado de máquina –, e as pessoas comuns bem podem suspeitar que nenhuma dessas palavras tem a ver com elas. A narrativa liberal era sobre pessoas comuns. Como ela pode continuar a ser relevante num mundo de ciborgues e algoritmos em rede?

No século XX, as massas se revoltaram contra a exploração, e buscaram traduzir seu papel vital na economia em poder político. Agora as massas temem a irrelevância, e querem freneticamente usar seu poder político restante antes que seja tarde. O Brexit e a ascensão de Trump poderiam, assim, demonstrar uma trajetória contrária à das revoluções socialistas tradicionais.

As revoluções russa, chinesa e cubana foram feitas por pessoas que eram vitais para a economia, mas às quais faltava poder político; em 2016, Trump e Brexit foram apoiados por muita gente que ainda usufruía de poder político, mas que temia estar perdendo seu valor na economia.

Talvez no século XXI as revoltas populares sejam dirigidas não contra uma elite econômica que explora pessoas, mas contra a elite econômica que já não precisa delas. Talvez seja uma batalha perdida. É muito mais difícil lutar contra a irrelevância do que contra a exploração.

(Do livro “21 lições para o século 21”. Lição 1: “Desilusão”)

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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