Boemia

Revista nunca enguiça. É só não encher linguiça

Postado por Simão Pessoa

Por Ronaldo Bressane

Logo após a morte de Umberto Eco um vídeo viralizou nas redes. Não era uma entrevista com suas frases irônicas e seus raciocínios espertos, ao mesmo tempo refinados e acessíveis: tratava-se só de um vídeo silencioso, em preto e branco, em que o intelectual italiano passeia por sua vasta biblioteca.

O vertiginoso vídeo, sonho para qualquer tarado/a por papel, nos coloca no ombro do autor de Obra Aberta percorrendo elegantes estantes e mais estantes brancas: sem pressa, dobra à direita, à esquerda, entra, sai de salas, anda, anda, anda…

Minutos depois afinal pára em frente a uma prateleira e sua mão vai direto buscar o livro que caçava: pega-o, abre-o numa página específica, assente de modo sutil e volta seu passeio pelo labirinto, desaparecendo em meio aos livros — e sua imagem some na rede infinita de bibliotecas que é a internet.

Em Apocalípticos e Integrados Eco explicou o mundo entre os que crêem que o fim está próximo (mandam pro inferno a comunicação em massa) e os que descobrem atalhos para driblar o juízo final (e a veneram). Distante desse FlaFlu, Eco sabia que o caminho do excesso leva ao palácio da sabedoria, como sussurrava Rimbaud: os meios de comunicação de massa podem, por que não?, serem caminhos em que a massa largue uma cultura mequetrefe pra cair de boca no biscoito fino que fabricamos.

Seu romance O Nome da Rosa era uma síntese de opostos: escrito em prosa clara, estruturado sobre o romance policial, gênero de massa, é também um tratado sobre o conhecimento que tripudia em cima do obscurantismo, com referências como Santo Agostinho a Jorge Luis Borges, passando por Dante, Shakespeare, Cervantes e James Joyce. Vendeu milhões e levou os textos dos nomes aí de cima a muita gente que mal tinha passado da Playboy.

Morto Eco, sua mais notória entrevista, As Redes Sociais Deram Voz aos Imbecis, foi postada milhares de vezes… e citada por comentários igualmente imbecis. A morte de Eco produziu o eco do que ele mesmo criticava — o que não deixa de ser irônico, e talvez o velho mestre semiólogo rachasse o bico com os posts. Tentou-se até transformar Eco em um conservador que detestava internet ou livros eletrônicos ou redes sociais.

Pô.

Eco curtia Super-Homem e ao mesmo tempo entendia a fundo a Cabala. “Não é que eu seja um fundamentalista que prega não haver diferença entre Homero e Walt Disney“, disse para o Guardian. “Mas Mickey Mouse pode ser perfeito no mesmo sentido que um haikai japonês.”

Ecco: Eco curtia revistas.

Tinha pilhas e mais pilhas delas entre os 30 mil exemplares de sua biblioteca em Milão (somados a outros 20 mil numa casa de campo). Do pop ao medieval, era um leitor onívoro, mas também um colecionador de coisas estranhas e criador de listas de todos os tipos. Era sobretudo um editor criativo, que lamentava a edição burra e sem charme que a legião de imbecis faz do mundo — um lugar do caralho que é, até última prova, o único de que dispomos no momento. Já que estamos aqui, vamos gozar com as mais loucas combinações de informação, em vez de punhetar a mesmice de sempre: eis o que Eco pede.

É pedir muito?

É pedir tudo.

Claro, podemos nos divertir editando a internet ou explorando imagens estáticas e signos em meios eletrônicos. Só que, como falava outro multiescritor foderoso, Millôr Fernandes, criador de jornais e revistas, livro não enguiça. Está aí a cinco séculos e vai ficar: uma ponte entre mundo manual e mundo tecnológico, real e virtual. Não precisamos é arrasar florestas pra multiplicar a estupidez. Descemos das árvores foi para editar o mel do melhor. A memória é uma ilha de edição, dizia Waly Salomão. Revista também nunca enguiça: é só não encher linguiça. E todo mundo merece uma revista foda.

Uma revista foda é uma mensagem encapsulada para outros mundos; um labirinto em um bonsai. De tempos em tempos precisamos criar revistas para engaiolar o zeitgeist e mostrá-lo a outros universos como éramos foda pra caralho. É uma cartografia do tempo no tempo.

Precisamos de revistas.

Somos tarados por revistas.

Gostamos de cobiçá-las nas livrarias, nos cafés, nas mãos das pessoas por aí; gostamos do sol ofuscando suas capas nas bancas e nos enchendo de alegria e preguiça. Gostamos de comprá-las, de emprestá-las, de ganhá-las, de roubá-las.

O strip-tease no plástico, o strip-tease logo depois da capa.

“Capa / Um biombo / entre o mundo / e o livro”, diz Ana Martins Marques, n’O Livro das Semelhanças.

Vale para a capa de uma revista: uma promessa de felicidade. O entorpecente cheiro do papel, da tinta no papel, e do papel e da tinta nas nossas mãos: o vício nesse cheiro. O verniz, o fosco, o brilhante, o opaco. O balé de índices, títulos, entretítulos, legendas, créditos, lombadas, fichas técnicas. A mancha gráfica das palavras como o convite à viagem, a textura gráfica dos corpos de papel, o tesão gráfico no mutante papel dos corpos ali expostos ou ocultos. Uma fotografia que o conecta a uma lembrança antiga, uma frase que te dá nó na ideia pra inventar uma futura saudade.

Se Disney pode ser perfeito no mesmo sentido que Bashô, como sugeria Eco, um ensaio de moda pode ter tanta informação quanto um quadro de Michelangelo ou um som do Public Enemy, um artigo pode transportá-lo como um conto de Roberto Bolaño ou Clarice Lispector — outros que frequentaram e adoraram revistas.

Gostamos de ser surpreendidos por revistas, gostamos de criar uma rotina, um caso de amor com elas. Gostamos de colecioná-las, amassá-las, escrever sobre elas, colar post-its nelas, amassá-las, rasgá-las. A depender da imaginação de seu/sua leitor/a, podem virar calço de mesa, WC do cachorro, arranhador pro gato; há quem use como dildo. São conhecimento com corpo. Gostamos de comê-las.

Pintá-las com batom, com café, com azeite, com sorvete, com ketchup, com perfume, com suor, com saliva, com lágrimas, com porra e com aquela seiva feminina tão maravilhosa de que jamais se soube o preciso nome.

A mudança sutil de seu aroma, ao longo de anos guardada, debaixo da cama, no criado-mudo, na estante, no banheiro, na cozinha, no carro, no cabeleireiro, na sala de espera do dentista — e naquela gaveta que você quase nunca abre.

Vê-la só, vê-la com outros, escondê-la dos outros, esconder uma mensagem secreta dentro dela: esconder-se dos outros dentro dela.

Achtung: não tem crise que nos faça desaparecer; há séculos somos tarados/as em nos meter em um monte de papéis coloridos que nos desfolham janelas para o caos.

“Do papel viemos e ao papel voltaremos”, escreveu o colaborador JR Duran quando lançou a sua, a Rev Nacional. Nascemos nas revistas, vamos morrer e ressuscitar nelas. Uma revista é barco de papel, ilha de edição, tábua de salvação; enrolada, ainda serve pra matar mosquitos… Ou pra sumir com a zica da imbecilidade, como pedia Eco.

Isso aqui é ao mesmo tempo o cardápio e o rango e a fome, baby.

What you get is what you see.

E uma revista foda é também o que você não vê.

Boa viagem ao mundo das coisas visíveis e invisíveis.

[editorial do #2 da Mais55Mag]

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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