Por Sergio Jaguaribe, o Jaguar
Conheci Henfil numa tarde em que eu estava com o Fortuna, numa sala no Castelo onde ele trabalhava como diagramador da Enciclopédia Britânica, se não me falha a memória.
Alguém tinha dado o endereço do Fortuna e o Henfil telefonou marcando uma hora para se encontrar conosco.
Chegou com a mulher, a Gilda – eles estavam sempre grudados – e disse que tinha vindo de Minas especialmente para falar conosco.
– Tudo bem – eu disse. – Então, fala.
– É o seguinte: soube que vocês vão lançar um livro chamado Guerra é guerra.
– É verdade – confirmou o Fortuna.
A gente, depois de muita pesquisa, tinha selecionado as melhores charges antimilitaristas do mundo. Mestre Otto Maria Carpeaux tinha acabado de entregar o prefácio, o livro já estava diagramado, só faltava imprimir. Se não me engano, Lúcio de Abreu editaria.
– Pois é – disparou o Henfil. – É que vou lançar em Belo Horizonte um livro com o mesmo título, queria que vocês mudassem o nome do seu.
O guri era audacioso. Fortuna e eu já éramos conhecidos, eu fazia charges na Última Hora e Fortuna fazia parte da constelação de desenhistas de humor da Cigarra e do Cruzeiro.
– Bom – eu disse – vamos fazer o seguinte: a gente lança o nosso Guerra é guerra aqui no Rio e você lança o seu em Belo Horizonte. Como é mesmo o seu nome?
– Henfil.
– Henfil, parece um assovio. Henfil, fil – brinquei.
Foi embora contrariado. Anos depois, quando os Fradinhos estrearam no Pasquim e ficamos amigos, ele me contou que ficou tão furioso que ficou andando pra cá e pra lá no calçadão de Ipanema, debaixo de um sol de rachar, e teve um começo de insolação.
O livro dele, acho, acabou saindo, uma vez que o nosso, depois do golpe militar, se fosse lançado, seria cadeia certa para os compiladores. Acabei esquecendo os originais num táxi, inclusive o prefácio, do qual não tinha cópia.
Henfil tinha pressa de viver, como seus irmãos Betinho e Chico, todos hipertalentosos, ceifados tão prematuramente, no auge da criatividade.
Teve várias fases, a de São Paulo, a de Natal, a de Nova York. Nos Esteites bateu de frente com o sistema, comeu o pão que o diabo amassou. Não houve como se adaptar ao american way of life.
Me mandava cartas, pelos menos duas por semana, de várias páginas. Eu, que detesto escrever em geral e missivas em particular, respondia com bilhetes lacônicos, só para acusar o recebimento da correspondência.
Quando voltou, pediu as cartas para incluir no seu livro Diário de um cucaracha.
– Ih – eu disse. – Joguei fora.
– O quê? – indignou-se. – Jogou fora? Que absurdo!!!
– Pois é, cara – tentei explicar. – Pensei que você estava escrevendo para mim e não para a posteridade. Eu jogo tudo fora, inclusive meus desenhos.
Realmente, foi uma idiotice. Henfil tinha um texto magnífico, as cartas que me escreveu dariam pelo menos um quinto do livro.
Fui visitá-lo em Natal, na casa linda em que morava – “o local no Brasil (tirando Fernando de Noronha, é claro) mais próximo da África” – jactava-se.
Me levava para conhecer a cidade, para jantar com seus amigos, inclusive o governador, depois íamos para casa, nunca depois das dez. Me deixava tomar umas cervejas e me mandava dormir.
Era bem mais moço que eu, mas me tratava como um pai preocupado com o filho desmiolado e dispersivo. Eu esperava as luzes da casa apagarem, pulava a janela e fugia para a esbórnia, só voltava de madrugada.
Às sete da manhã batia na minha porta para tomar café e caminhar na praia, eu mais morto que vivo.
As lembranças deixam uma certeza. Idiotas, já conheci milhares. Talentos, muitos. Grandes talentos, poucos. Gênios, só dois: Garrincha e Henfil. Por mais que a gente olhasse sem piscar o olho vermelho para não perder o mínimo detalhe, não dava pra entender como eles chegavam lá.
Sendo do mesmo ramo, eu vi o sacana do Henfil fazer uma charge num passe de mágica. Como Salieri, ouvindo Mozart, morrendo de inveja.