Balangandãs de Parintins

A guerra de desinfetante no quintal do Lancha

Postado por Simão Pessoa

Por Simão Pessoa

Ao contrário do bumbá Garantido, que sempre teve seu curral na “baixa” do São José, em Parintins, o bumbá Caprichoso sempre foi meio nômade, mudando de curral ao sabor das circunstâncias.

Em meados dos anos 70, por exemplo, seu curral funcionava na Travessa Cordovil, mais precisamente no quintal do “seu” Luizinho Pereira. Os ensaios ocorriam nos finais de semana (sexta, sábado e domingo).

Havia um inconveniente. O quintal do “seu” Luizinho era limitado pelo quintal da família Lancha, torcedores fanáticos do Garantido. Estava na cara que eles não iam dar moleza para os ensaios do “boi contrário”.

Como na maioria das casas da época, a sentina – também conhecida como retrete, privada ou WC – da família Lancha ficava no fundo do quintal, encostada na cerca que dividia as duas propriedades, e era do estilo “fossa turca”: um cercado de madeira a céu aberto, com soalho de azimbre e um pequeno retângulo no meio, onde as pessoas se agachavam e deixavam a natureza falar.

Nas noites de ensaio, assim que ouvia os primeiros acordes da Marujada de Guerra no quintal do vizinho, “seu” Lancha abandonava seus afazeres domésticos, armava-se com uma estaca, entrava na sentina e começava a revolver o fundo da fossa.

Depois de cinco minutos, a catinga morfética envolvia o quintal do “boi contrário”. O mau cheiro era verdadeiramente insuportável. Era como se o bumbá Caprichoso estivesse fazendo seu ensaio em um aterro sanitário, com aquele odor nauseabundo do chorume penetrando nos poros dos brincantes. O quintal do “seu” Luizinho Pereira tinha de ser evacuado às pressas.

Diretores de Harmonia do Caprichoso, Ancinelson Vieira, Irineu Bomba e Geraldo Alípio armaram o contra-ataque. A primeira tentativa de enfrentamento da “catinga” morfética (lenço ensopado em éter, que era como os estudantes enfrentavam o gás lacrimogêneo da polícia nos distúrbios de rua, durante a ditadura militar), infelizmente, não deu certo.

Depois de quinze minutos cheirando éter, os brincantes ficavam pra lá de Marrakesh e, em vez do “dois-pra-lá, dois-pra-cá” tradicional, começavam a dançar funk tipo James Brown ou disco music no estilo John Travolta. Uma zorra.

A solução final foi dada por Ancinelson: entupir a sentina do “seu” Lancha com desinfetante Salsar. Era aquilo, ou o Caprichoso não desfilava naquele ano. Irineu Bomba e Geraldo Alípio concordaram, apesar do alto custo financeiro da empreitada.

Foi quando começou uma brincadeira de gato e rato. “Seu” Lancha revolvia o fundo da fossa e se trancava em casa (senão também seria engolfado pela catinga). O ensaio do Caprichoso parava.

A um apito de Ancinelson, uma brigada de dez curumins, cada um com uma lata de Salsar na mão, pulava a cerca do quintal ao lado, invadia a sentina e descarregava o conteúdo das latas. O ensaio do Caprichoso recomeçava.

Desconfiado de que alguma coisa estava fora de ordem, “seu” Lancha saía de casa, armava-se da estaca e voltava a revolver o fundo da fossa. O ensaio parava.

Quando ele entrava em casa, a brigada de curumins entrava em ação. O ensaio recomeçava. A quizomba continuava nessa toada até o final do ensaio, já altas horas da noite, e se repetia em cada fim de semana.

O Caprichoso conseguiu desfilar naquele ano, mas gastou 1.714 latas de Salsar na sentina do “seu” Lancha. Que, aliás, se tornou a mais higiênica e perfumada da ilha de Parintins.

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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