Boemia

Do que ainda me lembro sobre o Bar do Armando

Armando e Dona Lourdes na faina diária do boteco mais charmoso de Manaus
Postado por Simão Pessoa

Por Simão Pessoa (*)

Como todo adolescente manauara do início dos anos 70, eu comecei a descobrir os prazeres dionisíacos do álcool nas chamadas “brincadeiras”, as festinhas domésticas da época, onde se ia para dançar, conversar e paquerar.

Em regime de boca livre total, as “brincadeiras” ofereciam aos “brincantes”, inevitavelmente, dois tipos de canapés (palitos de dente contendo minúsculos pedaços de queijo coalho, salsicha e azeitona, e mini sanduiches triangulares feitos de miolo de pão de forma com patê de fígado ou de carne) e três tipos de “batidas”: “calcinha de seda” (ki-suco de morango ou groselha, com cachaça e açúcar), “leite de tigre” (chocolate, cachaça e leite condensado) e “leite de onça” (cachaça, leite condensado e leite de coco).

Passar das “batidas” artesanais das festinhas domésticas para as “batidas” profissionais de gente do ramo, como Selmo Nogueira (“Caxuxa Drinks e Lanches”) e Marcelo Maia (“Rei das Batidas”), foi conta de multiplicar. Aí, não parei mais.

De 1973 em diante, eu trabalhando na Sharp do Brasil como técnico do Controle de Qualidade e ganhando uma merreca razoável (U$ 1 mil, nos dias de hoje), tendo como companheiros de labuta biriteiros incorrigíveis – Ivaldo Barros, Nego Alexandre, Augusto César Gato, João Carlos D’Antona, Edmilson Papagaio, Zé Magro e Augusto Salgado –, comecei a encarar todo botequim que vendesse destilados: “Toca do Barão”, “Top Bar”, “Pequeno Príncipe”, “Vento Norte”, “Bar do Brasa”, “Planície Verde”, “Senzala”, “Terraço do Maca”, “Farol das Batidas”, “Sucata Drinks”, “Casarão”, “Bar do Alfredo”, “Munhanguara”, “Xorimã”, “Porta Aberta”, “Telhadão”, “Barravento”, “Orvalho da Noite”, “Delírio’s”, “Laguna Azul” e outros que a memória não guardou.

O fato de ter iniciado minha vida alcóolica com destilados (cachaça, vodca, uísque e gim), imagino, me deixou com uma resistência sobrenatural aos fermentados (cerveja, chope e vinho). Eu não bebia fermentados nem para pagar promessa porque tinha uma implicância feroz com o gosto meio amargo da cerveja e do chope. Encarava vinho tinto, uma vez ou outra, desde que tivesse sido batizado antes com frutas e açúcar nas manjadas “sangrias”, causadoras de ressacas inesquecíveis no período natalino.

O cantor Nunes Filho e o Coronel Benfica no Bar do Armando

Foi então que, no início dos anos 80, eu ainda no Distrito Industrial, agora trabalhando como Chefe de Engenharia de Fábrica da Philco da Amazônia e ganhando US$ 3 mil, o jornalista Mário Adolfo me levou pela primeira vez ao Bar do Armando, que ele já frequentava desde 1976, e tudo mudou da água Perrier pro vinho do Porto.

Foi a minha descoberta pessoal de um admirável mundo novo. Aquilo não era um bar. Aquilo era o Conselho dos Sábios de Sião em assembleia permanente.

Nunca, antes, na história desse país, um boteco foi capaz de reunir o creme do creme das pessoas mais interessantes, cultas e divertidas que existiam na Manaus daquela época.

Havia conversas para todos os gostos. Queria falar sobre psicanálise? Rogélio Casado, Silvério Tundis e Manuel Galvão estavam ali.

Poesia? Anísio Mello, Ernesto Penafort, Padre Nonato Pinheiro, Aldisio Filgueiras, Zemaria Pinto, Anibal Beça, Marco Gomes, Engels Medeiros, Arnaldo Garcez, Carlos Araújo, André Gatti, Narciso Lobo, Almir Graça, Jorge Tufic, João Bosco Ladislau, Dori Carvalho, Marcileudo Barros, Jorge Bandeira, Sergio Pereira, Marcos Figueira, Benayas Inácio e Marco Castro estavam ali.

Jornalismo? Mário Adolfo, Deocleciano Souza, Orlando Farias, Chico Pacífico, Eduardo Gomes, Jersey Nazareno, Inácio Oliveira, Cláudio Barbosa, Gerson Aranha, Sabá Raposo, Sebastião Assante, Rui Cravo, José Nogueira, Wilson Reis, Hiel Levy, Sérgio Bártholo e Wilson Nogueira estavam ali.

Teatro? Chico Cardoso, Nonato Tavares, Jorge Kennedy, Wagner Mello, Luiz Vitalli e Alberto Penkauskas estavam ali.

Assuntos variados? Wagner Cristiano, Edmilson e Walter Salgado, Zé Cury, Joaquim Marinho, Paulo Mamulengo, J. Rosha, Edson Ramos, Mário Buriti, Cacá Bonates, Dr. Santana, José Rochinha, Leandro Vinil, Jorge Palheta, Cláudio Salignac, Crisanto Jobim, Zequinha da Capri, Arnaldo Botelho, Orlando Carioca, Dr. Trindade, Julinho da Receita, Renato Pitanga, Inácio Castro, Jorge Laborda, Euros Barbosa, Geraldo Caraíba, Carlos Lamego, Otávio Polícia, Chico da Baia, Dadá da Miguel Lemos, Pedro Paulo, Coronel Benfica, Ventilari da Civil e Saleh El Kebe estavam ali.

Pedro Paulo, Ari de Castro Filho, Otávio e Ventilari

A diversidade cultural dos frequentadores não possuía limites conhecidos. O papo era sobre literatura? Havia Antonio Paulo Graça, Rosendo Lima, Renan Freitas Pinto, Marcos Frederico Krüger, Amecy Souza, Paulo Monte, Carlos Gomes, Tenório Telles, Rui Sá Chaves, Aloisio Braga, José Ribamar Mitoso, Marino Baima, Armandinho Loureiro, Ricardo Maia, Omar Gusmão, Rogério Pina, Álvaro Bandeira, Guilherme Gil, Jeferson Garrafa, Lucio Meireles e Luís Cláudio Tinoco.

Música? Afonso Toscano, Celito, Carlos Castro, Roberto Dibo, Guto Rodrigues, Davi Almeida, Adal de Paris, Paulo Peruka, Rinaldo Buzaglo, George Jucá, Rubelmar Filho, Beto Blue Bird, Edgard Lippo, Celdo Braga, Adalberto Holanda, Eliberto Barroncas, Mário Toledo, Dedé Carminé, Pedrinho Ribeiro, Carlos Peruka, Manuel Batera, Américo Madrugada, Edu do Banjo, José Roberto Pinheiro, Lúcio Bahia, Uézelis Macca, Armandinho de Paula, Torrinho e Célio Cruz.

Alguém interessado em política? Lá estavam Teodoro Botinelly, Félix Valois, Lino Chíxaro, Paulo Figueiredo, Durango Duarte, Jorge Machado, Lúcio Carril, Everaldo Gonzalez, Laerte Aguiar, Nestor Nascimento, Ademir Ramos, Nego Henrique, Serafim Corrêa, João Pedro Gonçalves, Ricardo Parente, Adalberto de Melo Franco, José Dantas Cyrino Júnior, Jaques Castro, Vicente Filizzola, Adenilton Pinto, Norberto Anzol, Edmilson Pai da Mata, Chico Fera, José Carlos Marinho, Alberto Gordo, Francisco Sávio, Públio Caio, Francisco Praciano, Lizardo, Nonatinho Trotskista, Francisco “Bill” Soares e Stones Machado.

Fotografia? Carlos Dias, Isaac Amorim, Zezinho Fotógrafo, Beto Balanço, Augusto Fotógrafo, Pinduca, Raimundo Valentin, Normando Litaiff, Ricardo Oliveira, Alberto Araújo e Cleomir Santos.

O invocado Dadá da Miguel Lemos, meu compadre, pai da Fabíola, amigo de fé e irmão camarada

Juridisquês? Chicão Cruz, Jomar Fernandes, Alberto Simonetti Filho, Anselmo Chíxaro, Ari de Castro Filho, Sérgio Litaiff, Jorge Álvaro, José Luiz Klein, José de Anchieta, Eliezer Gonzales, Jackson Andrade, Pedro Paulo, Mariolino Brito e Domingos Chalub.

Artes plásticas? Manoel Borges, Jorge Palheta, Sergio Cardoso, Ademar Brito, Arnaldo Garcez, Otony Mesquita, Rui Machado, Jair Jackmont, João Rodrigues, Jorge Marques, Eli Bacelar, Edgard Alecrim e Roberto Cravo.

Diferente da fama atribuída erroneamente ao bar de “reduto machista”, o plantel feminino que pontificava no pedaço, formado em sua grande maioria por mulheres genuinamente femininas, feministas e empoderadas, também era de cair o queixo, discutindo qualquer assunto com qualquer um, de igual para igual: Heloísa Chaves, Magela Andrade, Kádia Eneida, Socorro Papoula, Elaine Ramos, Lucinha Cabral, Neidinha e Leidinha Fernandes, Celeste Pereira, Selma e Nelma Martins, Jô Almeida, Gracionei Medeiros, Darcy Cristina, Koya Refkalefsky, Cássia Mié, Jane Jatobá, Ana Cláudia Jatahy, Dulce Gusmão, Nêga Cleide, Rosângela Alanis, Astrid Lima, Regina Melo, Shirley Anne, Mazé Chaves, Patrícia Marques, Terezinha de Jesus, Dora Tupinambá, Lúcia Antony, Núbia Linhares, Cândida Alves, Juliana Belota, Irina Moss, Ana Maria Ramos, Yara Dias, Dinari Guimarães, Carol Apurinã, Mona Andrade, Alice Alecrim, Veremity Pereira, Ana Domingos, Graça Barreto, Nereide Coelho, Maria Altamira, Joana D’Antona, Helen Rossy, Débora Oliveira, Trícia Cabral, Shirley Cerquinho, Marluce Accioly, Lúcia Pardo, Joana Meirelles, Liliane Maia, Solange Elias, Fátima Oliveira, Socorro Andrade, Leyla Leong, Darlene Fernandes, Betsy Bell, Elaize Farias, Olga Santos, Valdenyra Thomé, Amélia Loureiro, Selma Bustamante, Georgina Andrade, Rosângela Barbosa (“Rô”), Elaine Maia, Iris Carvalho, Maristela Lima, Tina Petillo, Neuma Castelo, Waldenice Barreto (“Dena”), Ruberli Oliveira, Nelci Leão, Gleice Oliveira, Susana Cláudia, Silvia Pimenta, Erika Folhadela, Ingrid Macedo, Luiza Nery, Celeste Matos, Eridan Miranda-Bahia e Marta Albuquerque, entre outras que a memória não recorda mais. Sim, sei, sabemos: o álcool nunca nutriu muita simpatia por neurônios. Fazer o que?

A estilosa Petronila, primeira e única Rainha da BICA

É evidente que nem sempre essa gente toda estava no bar ao mesmo tempo – até porque não ia caber todo mundo dentro. Havia quem fosse todo santo dia, havia quem fosse uma vez por semana, havia quem fosse uma vez por mês e havia quem fosse esporadicamente, uma vez ou outra. Mas todo mundo se conhecia pelo nome, o que reforçava em nosotros o sentimento de pertencimento a uma comunidade diferenciada – para o bem ou para o mal.

A nossa identidade tribal tinha na mais alta conta a capacidade de comunicar-se e comunicar entre si mundo díspares. Para chegar a tanto, era preciso saber separar o joio do trigo de todas as diferenças, transitar no campo do inimigo, fazer um ostensivo contrabando de sinais afetivos e, sobretudo, abrir clareiras de bem querer. Conseguimos? Só o tempo irá mostrar.

Mas o que tornava esse botequim do português algo tão especial? Ninguém sabe. As pessoas iam lá simplesmente para beber, conversar e criar “aprontos”, a versão pré-internet do flash mob. Em uma noite qualquer de 1982, por exemplo, você poderia ver três desses “aprontos” ocorrendo simultaneamente.

Em uma mesa, Jaques Castro, Chico Fera e Alberto Gordo discutiam o nome ideal para um novo boletim informativo da Oposição Sindical Metalúrgica (OSM), que acabou se chamando “Puxirum”. Em outra mesa, Nestor Nascimento, Eduardo Gomes e Cacá Bonates discutiam novas formas de militância para o Movimento Alma Negra (MOAN). E em outra mesa, Ricardo Parente, Paulo Monte e Ademir Ramos discutiam como o Grupo Kukuro de Defesa da Causa Indígena poderia ter uma maior capilaridade no movimento estudantil.

Na esteira desses “aprontos”, surgiu uma quantidade infindável de artigos, crônicas, poemas, músicas, livros, peças teatrais e sketches de humor. O consumo de álcool em quantidade industrial era a argamassa que balizava tudo.

Magela Andrade, Armando e Chicão Cruz

Para muitos estudiosos, os consagrados escritores da chamada geração beat, como Williams Burroughs, Gregory Corso, Jack Kerouac e Allen Ginsberg, entre outros, escreveram a partir da experiência do consumo de álcool e drogas, como uma afronta ao puritanismo prepotente da sociedade americana.

O hedonismo desses escritores era uma reação inconformada e niilista ao cotidiano opressivo da metrópole, cujo escape possível aparece na metáfora da “estrada”, esta via que leva a algum lugar imponderável e além da lógica racional do sistema. Mais do que tudo, a estrada nutre a ideia de um caminho possível.

Nesse sentido, o discurso beat se volta de certo modo para o futuro. É lá, no fim da estrada – que, de resto, nunca chega –, onde reside a redenção possível.

Já os boêmios do Bar do Armando, como bem disse o poeta Aldisio Filgueiras, encararam a reafirmação da amizade e da solidariedade recorrendo ao lirismo contido na sensação de saudade, que se afoga dramaticamente no copo de bebida, no espaço do bar, nos acordes melancólicos de uma canção. Ou seja, tudo são perdas e danos na cidade em mutação, o que muda é a forma de se viver e expressar o luto pelo que não existe mais.

Daí esse estranhamento escancarado, essa razão selvagem, esses sentimentos advindos da memória de algo que se perdeu, marcando a sua escrita com um tom melancólico, mas sem excessos, pois igualmente caracterizado por pitadas de humor e autoironia.

O jornalista e ex-boêmio Jersey Nazareno

Falar do bar do português, sob essa ótica, seria recordar acontecimentos como esse, de setembro de 1998, presenciado por esse vosso escriba:

No início da tarde de um sábado, meia dúzia de pessoas estão aboletadas no Bar do Armando observando uma animada partida de dominó entre Marco Gomes-Jersey Nazareno e Zezinho Fotógrafo-Norberto Anzol.

Um gringo vermelho que nem um pimentão entra no bar, compra uma cerveja em lata, puxa uma cadeira e se senta ao lado da mesa de dominó, apreciando a esculhambação generalizada de uma verdadeira partida sem regras ou papas na língua. Ele olhava para as pedras sendo sentadas aos gritos (“Vinte desse palhaço e quinze na mesa! Vamos encapotar esses baitolas!”), sem entender nada.

Num inglês macarrônico, o gringo tentou me explicar o que estava fazendo ali. Disse que se chamava Gerhard Wöhler, era estudante de Antropologia em Colônia, na Alemanha, e estava há duas semanas no Brasil. Havia desembarcado em Salvador (BA), ido de ônibus até Belém (PA) e descido de barco até Manaus. Pretendia continuar a viagem de ônibus até Boa Vista (RR), de lá iria até Caracas, na Venezuela, de onde voltaria para a Alemanha.

Gerhard se queixou que enfrentava um sério problema de comunicação: como não dominava bem o inglês, ele estava deixando de absorver com maior intensidade os conhecimentos da cultura nativa. Aliás, ele já estava há 14 dias no Brasil e não encontrara ninguém que falasse alemão.

Nesse momento apareceu no bar o advogado José Klein, um paranaense sangue-bom e neto de alemães. Inteirado do problema do gringo, José Klein começou a conversar com ele. Em alemão. Gerhard ficou tão alegre que resolveu patrocinar uma grade de cervejas para os presentes.

Como o calor dentro do boteco estava ficando insuportável, a mesa de dominó foi transferida para a Praça São Sebastião. Gerhard não arredou o pé da mesa, principalmente porque poderia continuar conversando animadamente com José Klein na sua língua nativa. Duas horas depois, Klein se despediu do gringo e foi embora.

Cinco minutos depois, surge no pedaço o advogado Everaldo Fernandez, casado com uma alemã, pai de filhos alemães e que havia morado dois anos em Berlim. Inteirado do problema do gringo, Everaldo começou a conversar com ele. Também em alemão. Gerhard ficou tão radiante com a nova surpresa, que patrocinou mais uma grade de cervejas.

Os “biqueiros” agradeceram. O gringo foi embora por volta das oito da noite, completamente bêbado, mas feliz.

De volta à Alemanha, provavelmente relatando suas peripécias na terra brasilis para seus homeboys de Colônia, é muito provável que Gerhard tenha dado um conselho definitivo:

– Se um dia vocês forem ao Brasil, deem um jeito de passar no Bar do Armando, em Manaus. Lá, todo mundo fala alemão!

Assim nascem as lendas.

(*) Simão Pessoa é um contador de causos que não inventa histórias, apenas enfeita o maracá

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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