Por Luiz Carlos Miele
Num voo da ponte aérea, sentei-me ao lado de Telê Santana, um dos mais vitoriosos técnicos do futebol brasileiro. Como torcedor do São Paulo, vibrei muito com os títulos que ele conquistou com o bravo esquadrão tricolor do Morumbi.
Numa decisão que acredito inédita no futebol brasileiro, pelo menos nos últimos 30 anos, os dirigentes são-paulinos mantiveram o Telê como técnico durante cinco anos. Os resultados confirmaram o sucesso. O São Paulo foi bicampeão da taça Libertadores da América, e depois, bicampeão mundial interclubes. Foram as vitórias mais importantes de um clube brasileiro nessa competição, pois foram conquistadas sobre Milan e Barcelona, duas das equipes de maior prestígio no mundo do futebol.
Como todo brasileiro, eu sou uma das maiores autoridades do mundo em matéria de futebol, perfeitamente habilitado a escalar a melhor seleção brasileira, portanto, sentado ali ao lado de Telê, até maneire um pouquinho e, para evitar um constrangimento maior por parte dele, limitei-me a externar alguns conceitos definitivos sobre o popular esporte bretão.
Por exemplo: perguntei se ele fazia alguma distinção entre os jogadores que jogam futebol e os jogadores que jogam bola. Enquanto ele considerava a possibilidade de pedir à aeromoça para trocar de lugar, eu comecei a explicar:
– Olha, Telê, o Mario Sergio jogou muito mais bola do que o Platini. Mas Platini jogava o dobro do futebol do Mario Sergio. Denilson, o ponta brasileiro que está no Bétis, da Espanha, joga um bolão, mas não está nem aí para o futebol. Zico jogava bola e futebol, ao mesmo tempo (como Zizinho). Pelé não vale, pois jogava futebol, bola e mais uma outra coisa que só ele conhecia.
Para surpresa minha, Telê reconsiderou a mudança de poltrona, continuou ali ao meu lado e até fez novas sugestões, comparando jogadores da mesma posição:
Laterais: Leandro (Flamengo) e Marinho Chagas: bola.
Carlos Alberto Torres e Junior: bola e futebol.
Maioria dos laterais atuais: nem uma coisa, nem outra.
Depois desse encontro, fiquei absolutamente convencido da minha sapiência futebolística, autoconceito que aumentou consideravelmente, quando o mestre Armando Nogueira, num dos últimos programas da Sport News comentou e endossou a minha teoria.
Percebi, então, que não foi em vão minha trajetória pelo universo das peladas que pratiquei durante toda a minha vida, até a carreira subitamente interrompida.
Sofri uma fratura na rótula, justamente quando me preparava para concorrer a uma vaga numa seleção sub-setenta. Foi pena. Só me restaram as lembranças dos jogos. Muitos deles nos campos dos Vasco, Flamengo e até mesmo no Mineirão e Maracanã, claro que sempre em jogos preliminares, em equipes formadas por artistas.
Sem fazer uma análise técnica deste ou daquele jogador, entre os atores, cantores e compositores, eis aqui uma divertida escalação de alguns craques, com quem dividi uma carreira de glórias:
Zeca do Trombone
Carlinhos Vergueiro – Miltinho (MPB 4) – Silvio César – Jair Rodrigues
Paulinho da Viola – Chico Buarque – Fagner – Evandro Mesquita
Jorge Benjor – Fagner – Toquinho
Um antigo quatro-três-três. Não são os melhores (nem os piores) jogadores do mundo artístico, mas formam com certeza um time bem afinado. De todos, o mais divertido, pelos comentários e reclamações, é sem dúvida Silvio César.
Num fim de partida, o empate dramático. Ele driblou o goleiro, perdeu o ângulo, mas da linha de fundo, tocou rasteira e limpinha, para Rito Luiz, meu maravilhoso amigo e secretário, que nos deixou prematuramente. Sozinho, na cara do gol, Rito isolou a bola, por cima do travessão.
Indignado com o não aproveitamento do passe que o consagraria, Silvio deu início a um rebuscado repertório de elogios referentes ao Rito e seus parentes mais próximos. Não querendo admitir o erro flagrante, Rito respondeu:
– Porra, Silvio, eu fiz o certo. A bola é que bateu no montinho e subiu.
E o Silvio, implacável:
– Ah, preferes a mentira? Boa bola.
Chico Anísio também marcou época com a construção de um verdadeiro estádio para o futebol de peladas. Tinha arquibancadas, banheiras térmicas nos vestiários. Ele mesmo um dos maiores humoristas do mundo, prestou homenagem aos colegas que admirava.
Cada uniforme completo (camisa, meia e calção) levava nome de um grande craque do humor. E, assim, em lugar de Lubrax ou Bombril, os jogadores carregavam orgulhosos no peito os nomes de Carlitos, Cantinflas, Oscarito, Fernandel etc.
No Rio de Janeiro, o Politheama, de Chico Buarque, pelo talento e prestígio de seu patrono, é um dos times mais famosos do Brasil, mesmo sem pertencer a nenhuma divisão.
Durante algum tempo, seu adversário tradicional era o time paulista Namorados da Noite, que tinha Toquinho como um dos líderes de uma sofisticada equipe que usava uniformes desenhados por Elifas Andreato, um dos designers mais famosos de país, titular da camisa número 2, que ele mesmo desenhara.
Na preliminar de um São Paulo versus Corinthians, os times de Chico e Toquinho fariam a preliminar. Depois do jogo, os cantores e músicos que faziam parte das equipes deveriam apresentar um show no Palace, grande casa de espetáculos de São Paulo.
Chico Buarque chegou à Paulicéia com o elenco tradicional do Politheama, mas Toquinho havia reservado uma surpresa desagradável para Buarque de Holanda. Deixando na reserva seus companheiros de palco e canção, adentrou ao gramado com vários juvenis e reservas de grandes clubes paulistas.
Os gols dos Namorados da Noite vieram rapidamente, é claro, e, antes do fim do primeiro tempo, a goleada foi inevitável. Ao término, dando inúmeras entrevistas às emissoras de São Paulo, Toquinho afirmou que seu time era imbatível, “atuando em seus domínios”.
Chico engoliu em seco. Bem, propriamente em seco, não, que ninguém é de ferro. Mas guardou a vingança para a noite, antes do show:
– OK, Toquinho, você venceu. Venceu o jogo, que era para ser um jogo de artistas. Do meu time, o pianista, o baterista e o MPB 4 voltaram humilhados para o Rio. Agora, ou você faz o show sozinho, ou chama aqueles dois zagueiros, o meio-de-campo e o centroavante que você escalou para fazer o acompanhamento e os vocais.
Foi um custo para Chico entrar no palco e Toquinho teve que suar para segurar a platéia durante 45 minutos (o equivalente a um primeiro tempo).
Jogávamos também aos domingos de manhã, num campo de várzea, em São Paulo. O time era quase todo de cantores famosos e os jogos provocaram uma grande correria das fãs, que atrasava em muito o início dos jogos. Os adversários eram equipes como Massas Polenghi, Indústrias Mattarazzo, Polícia Militar etc.
É evidente que a atenção das mulheres com os artistas deixava os integrantes do outro time bastante irritados e lembro bem da frase de um dos zagueiros:
– Eu até que era fã dele, mas deixa esse veado fazer uma graça aqui na minha área, para ele ver o tamanho da carnaúba.
O juiz apitou. Jair Rodrigues tocou para o Jorge Ben e, antes da primeira volta do ponteiro de segundo, um negão levantou o querido Babulina, com uma senhora porrada, sem que o renomado autor de Mas, que nada sequer tivesse tempo de tocar no balão. E para deixar bem claro que ali predominava o anonimato, abaixou-se, deu um tapinha nas costas do desacordado cantor-compositor e disse:
– Desculpe, ô, número nove. Foi sem querer.
Refeito da agressão, Jorge Ben estava prestes a lançar no Rio de Janeiro mais um dos seus discos geniais (LP, lembram, garotos?). Como eu trabalhava na Globo e os disco era da Som Livre, dei uma idéia ao seu presidente, meu amigo João Araújo, ele também bom de bola:
– Vamos fazer o lançamento no campo do Flamengo, com um jogo entre artistas e profissionais. O convite dá direto a assistir ao jogo e ao show do Jorge, no ginásio do lado.
Sugestão aceita, mandei fazer os uniformes dos dois times. Estabelecemos um cachê igual entre os jogadores e os artistas convidados. Afinal, quando o jogador faz uma jogada espetacular, a torcida diz dele que é um artista. E quando um artista brilha no palco, a platéia diz dele que é um craque.
E atenção, desportistas, para a estação das duas equipes:
Banda do Zé Pretinho:
Félix
Arnaud Rodrigues – Rondineli – Miele e Paulinho da Viola
Marinho Chagas – Carpegiani e Mario Sergio
Betinho – Doval e Mario Gomes
Para Alegrar a Festa:
Ubirajara
Francisco Cuoco – Pitigliani – Junior e Edson Celulari
Paulo Cesar Caju – Carbone e Merica
Cafuringa – Marcio Braga e Jorge Bem
Cinco profissionais para cada lado, mais os goleiros Felix e Ubirajara, titulares do Fluminense e do Botafogo. Atenção para o detalhe de que não eram jogadores veteranos. Eram todos titulares em seus clubes e muitos da seleção brasileira.
Confesso que fui tendencioso na escalação, achando que não podia perder com Marinho e Mario Sergio no meio-de-campo. Mas eles passaram a maior parte do tempo olhando, não para o meio, mas para os lados do campo, onde Sandra Bréa, Maitê Proença e outras estrelas prestigiavam o encontro.
Desfilaram todo o seu vasto repertório de firulas, enquanto do outro lado, Carbone e Merica, que no Botafogo e no Flamengo não eram os solistas, mas os carregadores de piano, levaram a sério. Resultado: 5 a 2 “para eles”.
No dia seguinte, apesar da presença de tantos artistas e craques de futebol, não saiu nenhuma nota nos jornais. Nem as colunas de TV, nem no noticiário esportivo especializado, o que naturalmente anulou o investimento do lançamento do disco.
João Araújo chamou o responsável pelo departamento de divulgação, que ficou imediatamente prestigiado como um técnico de futebol, ou seja: no olho da rua.