Por Agripino Grieco
Mulatinhas novas não têm graça. Pitorescas são as mulatas velhas, bem vividas, sabedoras de mil coisas, como a dona Julieta Moutinho, do Rio Abaixo, um pouco modista, um pouco enfermeira e muito alcoviteira, transmitindo receitas de doces, gabando-se de ter em menina conhecido Dom Pedro II numa fazenda de Juiz de Fora e ufanando-se de que médicos a consultavam para doenças graves.
Beata, fora amigada com um meirinho e depois com um guarda-fiscal. Gorda, baixota, palradora, olhos empapuçados e bigode, criava molequinhos que explorava a título de protegê-los, decorara e declamava a história de Carlos Magno e era fértil em anexins.
Meu pai, que a conhecia bem de perto, costumava dizer dela: “Meteu-se em mais batalhas que Garibaldi…”
Era comadre de meio mundo e morava em casa cheia de bugigangas, folhinhas Ayer, estampas de santos, gaiolas de pássaros, moedas de cobre do tempo do Império, flores de papel, leques de varetas partidas.
Irritava-se ao escutar anedotas obscenas e jogava muito no bicho.
Mineira, não sabendo direito de que lugar, aludia sempre a uma herança misteriosa em que fora esbulhada pelos parentes do senador Martinho Campos.
Queixando-se dos calos, não dispensava um cálice de laranjinha após as refeições.
Morreu quase centenária, e foi consternação nas duas bandas do rio Paraíba.
Figuravam entre seus “viúvos” chorosos um bicheiro cuja corcunda eu vi passar dezenas de vezes em frente à nossa casa; o padeiro Benvindo, sempre mal recebido pelos devedores relapsos; um sacristão que vivia rondando o confessionário da Matriz, desejoso de ouvir qualquer pecado às penitentes de voz forte; o espanhol dado a esticar-se todo ao proferir o extenso nome de Zumalacarregui, famoso guerreiro amigo de seu avô; o farmacêutico que vendia a chamada Virgolina, pomada revirginizadora; um professor macrocéfalo obrigado a encomendar chapéu, sob medida, ao fabricante carioca, e o bacharel Caio Valadares, indeciso aqui no Rio entre duas Pepas, as atrizes Pepa Ruiz e Pepa Delgado.
Se existe país “à Ia manière de… “, é o nosso. Quanto colarinho e quanto chapéu foram levantados a Santos Dumont aí pelas alturas de 1903!
Os jornais de então vinham cheios desse nome glorioso. Nenhum brasileiro, talvez nem mesmo Carlos Gomes, voltara assim triunfante da Europa.
Como ele ia a Minas, resolveram em Paraíba do Sul, para vê-lo de perto e possivelmente ouvi-lo, fazer parar o trem da Central de qualquer modo. Agitariam uma lanterna vermelha se fosse à noite e, se fosse à luz do sol, alguns paraibanos fanáticos, postando-se na linha, forçariam o maquinista a deter a locomotiva.
O trem veio chegando às onze da noite. Repleta a estação de Paraíba e, longe dos figurões locais, estorcia-se, em meio à patuléia, um pobre rapazelho de quinze anos doido por avizinhar-se do aeronauta e ler-lhe uns versos dos mais rasteiros onde falava em condores e em Bartolomeu Lourenço de Gusmão.
Manejada em tempo a lanterna vermelha, deteve-se o comboio. Retumbou o nome de Santos Dumont.
Este apareceu de pijama, naturalmente sem chapéu e sem colarinho, e os de Paraíba ficaram incertos se se tratava mesmo do homem que voara em França, tão discordante parecia ele do seu figurino divulgado pelos jornais.
E o ar macambúzio desse patrício talvez perturbado em seu primeiro sono…
Nem um sorriso, nem um aceno de cabeça, e apenas o olhar abstrato de quem não atinasse com a razão dessa parada numa estaçãozinha sem importância.
Tentei aproximar-me dele para ver se era possível desfechar-lhe as minhas indigentíssimas estrofes, mas aí a máquina deu a primeira arrancada, houve um sacolejo nos carros e lá se foi o herói que, fazendo prodígios no céu, parecia tão inexpressivo assim à flor da terra.
Ainda acompanhei o trem uns metros, desejoso de gritar ao menos os versos do começo, quando algumas aclamações, se bem que não tão fortes como as anteriores, sufocaram logo o alexandrino inicial: “Tu que entraste, a sorrir, no reino dos condores…”
A sorrir? Mas se eu acabava de entrever que esse homem de gênio não devia sorrir nunca…
Filho de um padre que jamais pregou sermão algum, Carlos de Alvarenga Sales dizia ter lutado em Canudos. Escurão, alto e magro, com ares de tuberculoso, embora destinado a viver oitenta anos, era glabro e em sua voz roufenha a dicção africana, meio engrolada, reaparecera muito cedo. Apresentou-se em Paraíba encartolado, e conheci-o em casa do Zeca Braga, um meu professor, que por sinal nada me ensinou, e que fora seu condiscípulo não sei onde.
Pertencendo a uma banda militar qualquer, tocara tuba na “Aída” de Verdi, num teatro carioca, fingindo de soldado egípcio, e falava na tetralogia de Wagner com um jeito autoritário de quem, tendo estado em Bayreuth, desdenhasse os músicos paraibanos.
Lera umas brochuras européias de apressado cientificismo, divulgadas a mil réis o exemplar por uma editora do Rio, e inflava as bochechas ao discorrer sobre as teorias de Haeckel. Acompanhando um major reformado, também ouvira os sermões comtistas de Teixeira Mendes e manifestava-se contra a vacinação obrigatória e a ortografia tradicional.
Seu primeiro escrito, em revertendo à nossa cidadezinha, foi, com citação de Victor Hugo, para tomar a defesa da mulher que tomba, forçada pela miséria a prostituir-se, tudo num patético bem fácil.
Nada sabendo de métrica, estampou sonetos quebradíssimos e que mais tarde mereceram os cuidados ortopédicos do seu amigo Monteiro de Barros, realmente um bom poeta.
Solicitado, nunca conseguiu redigir certo uma petição, ao que afirmava um seu colega, o rábula Justiniano, e, aferidor de pesos e medidas, mandava que um descendente do marquês de São João Marcos, tipo decadente de fim de raça, corresse o município por ele.
A mesa insultava o garção que o servia, achando todos os pratos mal feitos, ainda que devorasse com um apetite de ogro.
Florianista vermelho, mostrou-se refratário a admirar Euclides da Cunha, proclamando que ele nada entendia de tática e estratégia, de ciência bélica em geral, não passando de um engenheiro pernóstico.
Espectador irônico da vida, não estimava ninguém, rindo-se de tudo.
Escrevia “ripostar” em vez de “responder” e gostava de expressões lusitanas: “é de rebimba o malho, bebe do fino, não me venhas de borzeguins ao leito, pateta das luminárias, estou baldo ao naipe, é de escacha pessegueiro, cheio até os gorgomilos.”
E declarava que em matéria de amor aprendera o essencial com um bode.
Aterrorizou muita gente em Paraíba.
Em moço apreciava bastante cachaça com mel, mas depois a sovinice tornou-o abstêmio.
Sem nenhuma intuição de boa crítica, sentenciava que Castro Alves seria um grande poeta se estilizasse como Bilac.
Quando publiquei, em 1910, um livro de versos, elogiou-me… com pseudônimo e num jornal que ninguém lia.
Capitão da Guarda Nacional, nunca soube uma palavra de francês, embora fosse ao Municipal assistir, com sorrisos de entendido e meneios de cabeça aprovadores, às representações da Réjane.
E sempre que vinha ao Rio, simulando fidelidade a um velho afeto, visitava um seu antigo companheiro de proezas musicais, o maestrino que acudia ao nome bizarro de Borromeu da Pelonha…