Por Agripino Grieco
Manifesta a influência dos nomes de lugares portugueses no município de Paraíba. Perto da cidade existe um Limoeiro. Evidentemente a árvore que produz limões é também nossa. “Meu limão, meu limoeiro…”, diz uma das canções nacionais, que ouvi ligada a um mau filme extraído de um bom romance de Afrânio Peixoto.
Mas sei que naquele sítio habitava um ex-banqueiro lusitano, solene como pai-nobre de drama de Mendes Leal e nascido exatamente no trecho onde se ergue a principal cadeia de Lisboa, o Limoeiro, destinado de preferência aos presos políticos e sem dúvida um dos prédios menos simpáticos da capital banhada pelo rio das tágides camonianas e que Almeida Garret chamou de “aurífero”.
Nem era aceitável o oferecimento que o diretor da prisão fez a determinados visitantes estrangeiros: — A casa está às ordens…
Em relação a Bemposta, desenrolou-se, tal qual no caso da pernambucana Olinda, uma espécie de polêmica entre os meus conterrâneos, polêmica de que participou um senhor dado a pintar jenipapos e abacates com a mesma ternura com que outros pintam deusas e heróis gregos.
Por que se denominaria assim o distrito onde nasceram o romancista Américo Werneck, igualmente engenheiro e pedagogo, e o orador republicano Santos Werneck, fotografado junto a Rui Barbosa quando seu condiscípulo em São Paulo e muito empertigado ao citar Laveleye, Laboulaye e Lamennais?
Naturalmente acharam “bem posta” a situação de lá para edificar as primeiras moradas…
Mas o que convinha lembrar no momento era o paço da Bemposta, de que dona Carlota Joaquina, virago em condições de usar melhor o horrendo nome de Urraca, mandou, de volta a Portugal, ao que me informaram, e ignoro se com absoluta exatidão histórica, decorar as paredes com motivos brasileiros, árvores e aves do Brasil, o que parece indicar que não execrava tanto isto aqui quanto pretendem numerosos cronistas.
O rótulo de Pampulha, grande fazenda mais de uma vez indicada por viajantes à Saint-Hilaire, deriva de um recanto de além-mar, outrora célebre pelo seu mosteiro de carmelitas e hoje pela sua fábrica de bolachas.
Não longe dali morava o professor Canuto, ancião mais carregado de eletricidade que botelha de Leyde, discorrendo sempre sobre brasões e asseverando que fora amigo íntimo do nosso brasonista Boulanger durante o segundo reinado, de maneira a importunar com essa insistência um caixeiro-viajante que indagou dele se conhecia o escudo do “Solar dos Barrigas”, hilariantíssima opereta levada então aqui no Rio.
Esse Canuto construíra uma casa com lareira, à moda européia, em planura das mais quentes, e estampou no jornaleco da cidade um artigo referente a Joana d’Arc, artigo que merecia prontamente um destino que a Santa não merecia: o fogo.
Perto da Grota Seca, berço e túmulo das plantações com que meu pai tentou, no Brasil, a vida agrícola, enxerguei o Bairro Alto, rincão dos mais desertos e, no entanto, comparado por essa designação a um dos bairros lisboetas mais movimentados, cheio de jornalistas, adelos, onzeneiros e botequineiros, sem aludir aos fadistas emigrados das alforjas da Madragoa que ainda hoje recorda um temível poeta satírico afeito a aplicar fricções de lixa nos figurões locais.
Boa Vista, que pôde assistir ao fausto de um homem guloso de títulos e condecorações, repete a Boa Vista testemunha dos trabalhos festejados e dos amores combatidos do pintor Vieira Lusitano.
Antes do Sobral fluminense, e provavelmente antes do seu homônimo do Ceará, houve, do lado de lá do Atlântico, a Abelheira do Sobral.
Mas do lado de cá um vigia neurastênico custodiava as suas laranjeiras com a mesma fúria do dragão defensor dos frutos de ouro do jardim das Hespérides. Chamava-se Quintela, à semelhança do largo que exibe o monumento do Eça, com o ficcionista contemplando os seios da Verdade, num ar de quem não julga a verdade desagradável. Mas diziam- no descendente empobrecido daquele conde de Farrobo que incinerou os seus milhões numa fogueira meio sardanapalesca.
A nossa capelinha da Cruz das Almas é réplica de uma ermida da Cruz das Almas que existe em Lisboa desde 1756.
E o templo do Senhor de Matosinhos, das imediações do Porto, encontrou imitação, bem mais modesta, numa igreja do distrito de Tiradentes.
Finalizando, lembremos a casa do facinoroso Antônio China, sujeito que execrava cães, gatos e crianças, e tinha, entanto, a lágrima fácil em todos os enterros, talvez por efeito não de emoção e sim de conjuntivite. Ficava na rua das Flores. E esta não fora assim batizada por algum habitante de outra rua das Flores, tão do gosto de Eça de Queirós e que corre paralela à rua do Alecrim, na belíssima cidade que dizem fundada pelo grego Ulisses…
Amores? Meus amores paraibanos… Pobres e tristes amores… O primeiro em ordem, ao que me lembre, foi por uma artista de circo de cavalinhos armado no largo das Palmeiras, largo que os vereadores haviam batizado com o título do marquês de São João Marcos, homenageando o doador dos terrenos de Paraíba, mas que o povo, sempre infenso à toponímia oficial, continuava a chamar pelo nome das lindas plantas que ainda o ornamentam em duas filas cruzadas.
Tinham levantado ali um palácio nômade, um alcáçar de maravilhas, e todos nós, moleques da cidade, fremíamos de admiração e esperança, no desejo de nele penetrar. Foi esse talvez o maior acontecimento da minha infância, de todas as infâncias locais.
Existem hoje as histórias norte-americanas em quadrinhos, a televisão, mas outrora só havia aqueles palhaços, aqueles equilibristas, em complemento aos contos da carochinha das velhotas. Dava-nos o circo o direito de ser plenamente felizes por três ou quatro horas sucessivas.
Na escola tudo era aborrecimento e apenas nos concediam uma hora estimável: a hora do recreio, e um período venturoso: o período das férias. As festas cívicas entediavam. Preferível o edifício de lona improvisado no largo, como por efeito de uma fricção na lâmpada de Aladino, e onde míseros saltimbancos de bolsa murcha, roídos pela fome e mal vestidos cá fora, me pareciam todos, à hora do espetáculo, lordes e rajás.
A elegância do empresário, de cartolão e fraque, calças brancas e botas de montar, a gravidade do tôni, o heroísmo sempre renovado e tão mal compensado dos acrobatas… Até os amarra-cachorros adquiriam não sei que singular compostura profissional. E a rapariga por quem me apaixonei, esbelta, flexível, desossada, apresentava-se toda vestida de lantejoulas, escorrendo ouro, como que coberta de sequins e florins reluzentes.
A sinfonia de abertura, executada pelos pífios musicistas da companhia, era para mim reabertura do Paraíso terrestre.
Agilíssima, a Musa circense, mesmo de olhos vendados, saltava sobre um cavalo que vinha a galope e, quando a cavalo, atravessava arcos de papel em chamas ou piruetava na ponta dos pés num redemoinho de dervixe. Nem a Sulamita, a fada Viviana ou a rainha Mab suscitariam em mim tantos sonhos. Ela atirava às arquibancadas beijos e sorrisos coletivos, mas eu supunha que tudo aquilo era só para mim.
Uma tarde vi-a de mais perto, na rua, sobraçando uma cesta de legumes, tendo algo de copeirinha. Era magra e amarela. Ainda tentei carregar-lhe a cesta, ao que ela se opôs, receosa talvez de que eu lhe pedisse gorjeta…
Isso durou uma semana. Mais de um mês durou o meu idílio quimérico com outra jovem, a Marina, Marininha na intimidade.
Intimidade que nunca procurei ter com ela, porque era um rapazelho tímido e, filho de italianos, figurava numa coloniazinha que os burgueses importantes de lá não tomavam a sério. A propósito dos meus escritos de então, ouvi muitas vezes o vocábulo “carcamano”, quando não vislumbrassem, em tudo o que eu produzia, estupidez ou plágio.
Se vestia um novo terno de roupa, corria a exibi-lo na missa dominical, mas não fui nunca um elegante e faltavam-me audácias casanovescas. Nem esqueço a observação de um velhote, pai de duas lindíssimas raparigas: “Filho de doutor deve ser doutor, filho de vendeiro deve ser vendeiro…” E meu pai era, além de vendeiro, tintureiro, depois de haver sido mascate. Quantas vezes o acompanhei até o Paraíba, de bacia à cabeça, para lavarmos nas águas do rio a roupa que ele tingira em casa.
Da timidez vingava-me eu passando bruscamente à zombaria, e isso ainda mais me complicava a sorte junto às mocinhas casadouras. Como quer que seja, lírico ou sarcástico, inventei um idílio ao entrar na adolescência. E foi esse talvez o meu mais belo romance de homem sem imaginação que deveria acabar fatalmente no parasitismo da crítica.
Marina morava num sobrado, feio a valer, da rua da Estação. Era filha do dono de uma loja de calçado e havia suspeita de casos de tuberculose em sua gente. Estava quase sempre à janela e eu, não recordo por que, imaginei que ela me sorriu uma vez. Resultado: desandei a correr a rua, horas e horas, em idas e voltas ininterruptas, mal ousando olhar para o alto, mas sentindo ali a presença adorada e como que entrevendo um pássaro em seu beiral tentando o primeiro vôo ou uma estrela acesa em pleno dia.
Tudo aquilo me parecia sonhado e nem cheguei a saber nunca a cor dos olhos de Marina.
Consagrei-lhe sonetos à distância, com uma dedicatória medrosa em que figurava apenas a inicial de seu nome, e jamais lhe falei. A minha inspiradora lá em cima, numa espécie de levitação atordoante, quase incorpórea, e eu a fazer e a refazer aquelas caminhadas, naturalmente sob o sorriso maldoso dos que me espreitavam das casas próximas, especialmente da sexagenária mexeriqueira que não “via” e sim “lia” a rua, como se lesse o mais delicioso dos livros.
Afinal, tudo isso se foi como veio, sem razão alguma.
Anos depois, já eu longe de Paraíba do Sul, casou-se Marina com um alemão malcriadíssimo, que deve tê-la surrado bastante. Morreu nova, e ainda encontro por aqui um rebento dos dois, engenheiro e entusiasta da memória de Hitler…
A terceira chamava-se Eleonora, como a exigir que eu, celebrando-a liricamente, trouxesse à baila o nome de Tasso. Era filha de frade, mas sem nada de pecaminoso no caso, porque o pai só se tornara monge após enviuvar. Os irmãos, numerosos, compunham um grupo dos mais turbulentos. E ela imperturbável sempre.
Ouvir-lhe a voz equivalia a sentir o toque de uma pluma de arminho. Muito clara e tendo na pele os chamados sinais de beleza, cantava as árias de Tosti ao piano e andava às voltas com um volume de “Paulo e Virgínia” encadernado em percalina cor-de-rosa. Tudo isso, ligado à história do pai que se refugiara romanticamente no claustro, avizinhou-me dela.
Mas o certo é que Eleonora era mais idosa que eu e, acolhendo-me com ternura, fez-se — e isso é que foi mau — uma espécie de Dona Juana em relação a mim, procurando-me quando eu não a procurava. Desserviu-lhe essa inversão de papéis, e, movido pelo demônio da ironia, pensei logo, injustamente, que ela estava apenas sôfrega de marido.
Era, de resto, visível nela a ânsia da maternidade. Não se contentando em cuidar de pássaros e flores, narrava histórias aos garotos e garotas da vizinhança, dava-lhes biscoitos e frutas, ensinava-lhes a recitar versos. Debaixo de um chapéu de palha da Itália, sempre vestida de branco, arrastava-os pela chácara da família e era como se houvesse renascido por lá a Carlota do romance de Goethe.
Depois tomei o rumo do Rio e Eleonora lá se foi para Belo Horizonte viver na casa de um irmão militar, dizendo, a quantos lhe falavam a meu respeito, que eu nunca a estimara, que eu só amava os livros. Fazendo conferências na capital de Minas, nunca procurei visitá-la, nem, ela veio ouvir-me. Soube-a, mais tarde, morta.
E o irmão, que fora meu condiscípulo em Paraíba, mandou-me por um condutor de trem o álbum em que Eleonora, até pouco antes de morrer, colecionara todos os meus retratos estampados em jornais e todas as notícias relativas aos meus livros. Folheei esse álbum entre soluços e não me envergonho de dizer que passei vários dias numa desolação de amante trágico de balada…
A quarta mulher dos meus pobres amores era gorda, baixa, mas com um fascínio qualquer que até hoje não consegui explicar a mim mesmo. Talvez o sorriso meio reticente dos olhos…
Pertencia a uma família que explorava fontes de águas minerais, vivia com desafogo, e devia mentir bastante, comprazendo-se em excitar os homens e fugindo à hora de um contato positivo. Uma “allumeuse”, como dizem em França. Acendia um fogo em que não se abrasava. Incendiária e frígida.
Pediu-me umas lições de literatura. Fui ter ao melhor palacete da cidade e lá a encontrei entre vitrais, imagens de santos, reproduções de estátuas gregas e vários Budas obesos. Aberto na mesa de mármore, que parecia imitação de altar, um luxuoso volume das “Mil e uma noites”. Forte cheiro de incenso por tudo. Desconcertante misturada de coisas cristãs e pagãs. E aí senti que ela não queria literatura, não queria amor, queria apenas atordoar-me, atormentar-me. Uma série de avanços e recuos, com fintas de esgrimista de saias.
Descreveu-me o seu prazer em visitar cemitérios e em ler romances de crimes. Aludia a um seu noivado desfeito. Desejava visitar o Dalai-Lama e referiu-se, de olhos baixos e em voz quase inaudível, a uma confidente, matrona das mais funéreas, que a submetia sempre a penitências severíssimas.
A certa altura, a “allumeuse”, falando em viajar para a Ásia, sumiu-se. Fiquei atarantado, mas um meu companheiro, conhecedor da aventura, disse, ao ouvir-me as amargas queixas de Werther mais prosaico: “Dentro de quinze dias você estará a rir-se de tudo isto!”
Assim foi, com efeito, e, quando a falsa estudante de literatura retornou da suposta viagem a terras misteriosas e quis recomeçar a comédia, já não me encontrou disposto a servir-lhe de companheiro de representação…
A quinta e última inspiradora dos meus amores paraibanos era robusta a valer. Chamava-se Arabela e possuía uns olhos entrefechados de chinesa. Algo da paralisia das pálpebras que eu vira na atriz Réjane.
Toda cheia de civismo, apareceu em Paraíba do Sul fazendo propaganda de uma sociedade baiana destinada a fomentar a instrução e o amor à pátria, vocábulo que ela nunca escreveu assim com inicial minúscula.
Distribuía folhetos, medalhas e diplomas. Gostava de discursar, com uma voz a que não faltavam notas viris, rompantes de machona, e por ocasião de um levante qualquer mandou dois primos e dois sobrinhos ao campo da luta, como a portuguesa dona Filipa de Vilhena mandara os filhos combater contra os castelhanos. Orgulhava-se de seus cabelos, aliás copiosos e talvez a única coisa realmente bela dessa virago.
Erradia por índole, fugia da casa paterna em Salvador, como fugiria de um leprosário, e ia pelas localidades longínquas festejar as grandes datas nacionais, arrastando após si estudantes que carregavam bandeiras e estandartes. Havia mais de quinze anos era noiva de um coletor estadual, e insistia em mostrar-me os originais de um livro, condenado a eterno ineditismo, onde ela celebrava as educadoras famosas: Maria Pape-Carpentier, Maria Montessori e confreiras.
Não nego que muitas vezes acordei cedo e andei quilômetros para encontrá-la sozinha no hotel distante em que Arabela se hospedara. Mas a seu quarto não tardava a encher-se de umas jovens que iam declamar trechos do “Breviário Cívico” de Coelho Neto, enquanto a mestra suprema redigia cartas destinadas a lavradores que a haviam consultado sobre o plantio do trigo.
Em geral, as mulheres maduras não a estimavam e só uma ou outra professora a seguia naquilo que classificavam enfaticamente de cruzada em prol dos cérebros…