Por Mouzar Benedito
Simão, mano véio, com essa história dos livros que você mandou, a conversa sobre o Joaquim Marinho, e principalmente sua mensagem mandada hoje (dia 9), você atiçou minha memória. Então, resolvi relembrar mais ainda, mas como um texto no corpo da mensagem ficaria muito comprido, decidi fazer neste anexo.
O número 1 do Versus foi impresso no final de outubro de 1975, e lançado no dia da missa pelo assassinato do Vladimir Herzog (não me lembro se foi no dia mesmo ou na véspera). A gente vinha fazendo reuniões havia meses, na casa do Marcos Faerman, até que vimos que tínhamos condição de fazer um belo jornal. Faltava uma coisa: grana.
Fui ao banco em que tinha conta, raspei a grana que tinha e entreguei ao Marcos. Ele completou – deu muito mais do que eu – e imprimimos o número 1. Com as vendas dele, poderíamos imprimir o número 2, dali a dois meses, e assim por diante. Mas em pouco tempo decidimos que seria um jornal mensal, e não bimestral.
Em 1976, o Sesc – onde eu trabalhava – resolveu fazer uma Feira Nacional da Cultura Popular, enorme, e eu que estava para ser demitido por brigar com os pica-grossas da instituição, acabei sendo indicado para ser um dos coordenadores e pesquisadores para a realização da Feira. Um amigo inventou que eu era o maior conhecedor de cultura popular do Brasil e acabaram engolindo isso, a diretora do projeto exigiu que eu fosse trabalhar com ela.
Aproveitava as viagens a trabalho pelo Sesc para organizar a distribuição do Versus, inicialmente em algumas cidades do estado de São Paulo e depois em vários estados. Contatava pessoas afinadas com a nossa “causa”, propunha que elas distribuíssem às bancas e ficassem com a porcentagem da distribuidora que não tínhamos. Era 30% a comissão dos distribuidores.
Nessa viagem no meio do ano, em 1976, aproveitando a época do Festival Folclore do Amazonas, no Vivaldão, cheguei a Manaus. Tinha passado por Minas Gerais e Pará (em Belém o distribuidor que arrumei foi um jornalista chamado Duque, que depois virou cineasta).
Em Manaus, eu sabia que houve um pouco antes um jornal alternativo que tinha parado de circular, o Jornal da Amazônia. Não sabia quem editava, não conhecia ninguém aí, mas seria fácil achar, né?
Cheguei a Manaus, indo de Santarém, num sábado por volta do meio-dia. Tomei banho, almocei e fui ao Sesc falar com a diretora, conforme o combinado.
Ela me falou que meus cicerones e orientadores sobre a cultura popular manauara seriam o diretor e os atores de um grupo de teatro que o Sesc-AM mantinha aí.
Confesso que, no princípio, pensei que seria um grupinho de teatro como uns que o Sesc tinha em alguns lugares de São Paulo, completamente amadores. Mas fui com ela ao Tesc, que era ao lado da diretoria. Lá ela me apresentou o grupo e se mandou (acho que queria se ver livre de mim).
O grupo estava ensaiando, esperei até o final e depois começamos a conversar. Ficou aquela coisa de um querendo saber qual é a do outro. O pessoal do teatro pensando que eu devia ser um burocrata paulista cheio de empáfia e eu não sabendo se era um pessoal bom de ideias etc.
Depois de um pouco de conversa, perguntei se eles conheciam o pessoal que fazia o Jornal da Amazônia. Olharam para mim com espanto, perguntaram porque eu queria saber desse jornal. Aí falei que era um dos editores do Versus, um jornal lançado no final do ano anterior em São Paulo, e queria ter contato com o jornal alternativo de Manaus.
Abriram sorrisos enormes e me contaram: eram eles os editores. Márcio Souza, o autor e diretor do grupo de teatro era o editor.
Conversa vai, conversa vem, convidei o grupo do Tesc para distribuir o jornal em Manaus e depois perguntei ao Márcio Souza se ele topava ser correspondente do Versus em Manaus. Ele perguntou se eu tinha “autoridade” para propor isso. Respondi que sim, eu era um dos editores do jornal. E ele ficou até emocionado – veja só! Ainda não tinha publicado o Galvez.
Fiquei uns dez dias em Manaus (dei uma chegada a Manacapuru, e a cidade estava inundada – as chuvas do alto Solimões…). Andei de barco por aí, na abertura do Festival Folclórico vi a Clementina de Jesus ser levada andando vagarosamente até o centro do campo, com uma bengala, e dar um baita show.
E vi os Imperiais de Tefé, algumas Tribos (uma variante do Boi Bumbá, né?)…
E no Tesc assisti, se não me engano, às Folias do Látex. Acho que foi no ano seguinte que assisti A Paixão de Ajuricaba.
O Márcio me contou uma coisa que esclareceu uma dúvida que tínhamos. Ele disse que quando o jornal foi lançado, ele estava de passagem por São Paulo, comprou um exemplar, gostou, passou para o grupo todo ler e depois mandou para um grupo de poetas do Peru. Nós tínhamos recebido no começo do ano uma carta de um coletivo de poetas peruanos querendo colaborar com o Versus e não sabíamos como o jornal havia chegado até eles.
Em 77 de Manaus eu fui para Rondônia (Porto Velho e Guajará-Mirim) e de lá para Rio Branco. O Márcio tinha me indicado o grupo do jornal Varadouro como meus contatos. Chegando lá, soube de um dos primeiros empates de Chico Mendes, em que, depois de verem muitos seringueiros, castanheiros e ribeirinhos serem assassinados por jagunços de grileiros “paulistas”, eles reagiram num seringal e mataram dois jagunços, um deles líder da jagunçada toda.
Na época tinha só um bar onde se podia beber bem em Rio Branco. Ficava embaixo de um hotel onde os grileiros se hospedavam. Esses caras ficavam no bar e logo apareciam jagunços oferecendo seus serviços para “limpar” as terras “deles” (dadas pelo governo, que não se interessava em saber se aquelas famílias moravam nas terras desde o tempo de Plácido de Castro ou da segunda leva de nordestinos, durante a Segunda Guerra).
Estava uma encrenca enorme em Rio Branco. Enquanto pistoleiros matavam os moradores das terras, tudo bem. Mas matar jagunços era um absurdo! Atravancavam o progresso!
Fiquei sabendo de um cara que ia para o seringal no dia seguinte e combinei com ele de ir até um sítio onde morava, a alguns quilômetros de Rio Branco, por uma estradinha de terra. Às seis da manhã, lá fui eu, a pé, rumo ao sítio dele. Depois de andar uns dois quilômetros na estradinha, debaixo de um calor lascado, escorreguei, tentei me afirmar e foi pior: caí sentado em cima do pé e quebrei o tornozelo em dois lugares. Na hora, pensei: que merda, ser esta hora da manhã. Se fosse de noite, eu tinha tomado umas, caía macio e não quebrava nada!
O certo é que demorou um tempão para passar uma caminhonete ali (mais de uma hora) e o sujeito, meio cismado, estava com medo de dar carona para ir a Rio Branco. Aí foi uma epopeia: eu morrendo de dor, suando feito burro velho (pelos quase 40 graus e pela dor), tive que ir pulando numa perna só até o único pronto-socorro que havia em Rio Branco, porque a rua estava sendo calçada e fechada para o trânsito; lá não tinha raio-X, voltei pulando até o ponto de táxi, fui ao hospital universitário onde tinha raio-x mas não tinha ortopedista naquele dia, voltei ao pronto-socorro, onde o médico (muito competente, por sinal) fez o que devia fazer, pôs uma tala em vez de gesso, mandou eu ficar com o pé dentro de um saco plástico cheio de gelo até a manhã seguinte e voltar para São Paulo.
Voltei , fiquei encostado no INPS por 5 meses e meio, voltei ao trabalho e fui demitido por ser militante da imprensa alternativa (Versus e Pasquim). E entrei na lista negra dos patrões e da ditadura. Não arrumava emprego em lugar nenhum. Mudei para o Rio de Janeiro. Naquela época (que saudade!), não tinha esse negócio de internet, então, se era perseguido em São Paulo, no Rio ninguém me conhecia, nem os órgãos de repressão – só os perseguidos manjados, tipo Marighella, Lamarca e outros grandões eram manjados por ali.
Voltei mais uma vez a Manaus depois disso (acho que foi no fim de 1978 ou início de 79).
No tempo em que morei no Rio, o grupo do Tesc apresentou lá a peça Tem piranha no pirarucu, que não era nada mais do que uma que eu tinha visto em Manaus com o nome Zona Franca, meu amor. Depois que vi aí, o Márcio mandou para a censura federal e proibiram, porque não se permitia gozar instituições. Manteve o mesmo texto e mudou só o nome para parecer teatro de revista, e foi aprovado. Coisas ridículas da ditadura.
Lembro-me que vi em Manaus, também, a peça Dessana, Dessana, além de umas outras de outros grupos que não o do Tesc. E no Teatro Amazonas, vi o Balé do Taiti, uma mulherada bonita dançando com os peitos de fora.
Ah, conheci muita gente boa aí. O Aldísio, que você citou, foi uma dessas pessoas. O Joaquim Marinho, foi outra. E levei um longo papo com o Mário Ypiranga, de quem comprei o livro Em memória de Stradelli. Taí outro personagem maravilhoso da história da Amazônia. Amor, tragédia (morreu num leprosário), estudo da cultura indígena, nheengatu, plano de abastecimento de água, planta do Teatro Amazonas… Na volta dele a Manaus, depois de tentar morar na Itália de novo e não suportar a vida lá, cheio de saudade, veio para a Venezuela, subiu o Orenoco, pegou o canal do Cassiquiare, o rio Branco, o rio Negro… – Há uns dez ou mais anos foi feito um filme sobre essa aventura dele, por venezuelanos. Não vi, mas gostaria de ver.
Uma coisa que lamento é que, como em tudo quanto é lugar do Brasil, o centro de Manaus perdeu um monte de coisas. Era cheio de cinemas, bons bares, bons restaurantes… O Hotel Tropical ficava num lugar distante, e para se chegar lá era preciso atravessar uma área de floresta. Hoje está dentro da cidade, na Ponta Negra. Mas isso não é coisa de Manaus, é do Brasil. Até a minha cidade em Minas Gerais, que tinha 2 mil habitantes quando saí de lá e hoje tem mais de 10 mil, tem o centro descaracterizado.
Tem muitas outras lembranças mais, mas acho que já te enchi o saco, né?
Desculpe-me. Não vou nem reler o que escrevi porque acho que mudaria tudo, acrescentaria um monte de coisas. Tribo dos Irupixunas, Zona Franca daqueles tempos, passeios, Museu do Índio (ah, os salesianos… que coisa!), guaraná em pó e em bastão (e os bichinhos feitos com o guaraná), língua de pirarucu, escama de pirarucu…
Abraços.
Mouzar