Memória Viva

Nássara: um malicioso ganhador de concursos

Postado por Simão Pessoa

Por Isabel Lustosa

A primeira música de Nássara não foi “Formosa”. Esta, composta em 1930, chamou-se “Saldo a meu favor”: “No dia em que se acabar este nosso antigo amor, eu já sei que vai sobrar muito saldo a meu favor”. “Formosa”, também não foi a primeira de suas músicas gravadas. Esta se chamou “Para o samba entrar no céu”, e teve como parceiro Almirante.

O mesmo Almirante com quem, no fim da vida, Nássara romperia a ponto de escrever no Pasquim em 26/5/1977: “Este Almirante é repugnante. Rima e é verdade”. O motivo foi que Almirante que, na entrevista de Nássara para o MIS, aparecera por lá só para lembrar que o Nássara era o autor do primeiro jingle, tempos depois, na segunda edição se de seu livro “Nos tempos de Noel Rosa”, corrigiu a informação, dizendo que Nássara apenas dera o ritmo de fado a uma quadrinha que seria na verdade de Luís Peixoto. O que parece não ter fundamento, pois Ademar Casé garantia que o jingle era totalmente de Nássara. E Casé conhecia bem Luís Peixoto, também colaborador de seu programa.

Mas já que tanto Nássara quanto Almirante morreram é melhor parar no tempo em que os dois se queriam bem. No clima de amizade que havia e que ficou registrado naquela simpática entrevista do MIS, em fevereiro de 68. Quando o Nássara fez questão de saudar a “maior patente do rádio” contando que uma vez um almirante verdadeiro ligara para reclamar, dizendo que nos registros da Marinha não constava nenhum Almirante Henrique Fores… Amizade da qual se originou esta pérola da poesia popular que é “Para o samba entrar no céu”:

“Eu abaixo, falecido, / Há pouco tempo fugido / Da vida ao negro escarcéu, / Venho, com acatamento, / Fazer um requerimento / Para o samba entrar no céu! / Nosso Senhor do Bonfim / Quando escuta um tamborim / Fica louco de alegria. / Ele é do samba rasgado, / Tá no céu contrariado / Com saudades da Bahia / Pobres das onze mil virgens! / Vivem chorando de dor / Por não poderem cantar: / “Nós sêmo é mêmo do amô!…” / Nossa Senhora da Penha / Também quer que o samba tenha / No céu a sua morada; / Essa Santa Padroeira / Ficaria a vida inteira / Ouvindo uma batucada! / Samba é quase uma oração / Tocada com violão / E batida com pandeiro / Além disso eu já sabia: / Cristo nasceu na Bahia / E até Deus é brasileiro!”

Mas o sucesso de Nássara só veio mesmo com “Formosa”. “Sucesso tão grande que, no ano seguinte, os intérpretes cobraram: Vem cá, você não vai fazer mais nada? Vai ficar dono de uma perna só, uma só música? Aí, eu fiquei quebrando a cabeça, fiquei até envergonhado mesmo, não é? E fiz duas músicas, para o ano seguinte: Maria Rosa e Tipo sete: “O tipo louro vale um tesouro, mas perto do moreno é café pequeno.” E essa música pegou pra diabo também. Aquela briga entre loura e morena e tal.”

“Tipo sete”, marchinha feita em parceria com Alberto Ribeiro, gravada por Francisco Alves na Odeon para o Carnaval de 1934, obteve o primeiro lugar no curso de músicas para o carnaval promovido pela administração do grande Pedro Ernesto. Aqui cabe um parêntese: foi no governo de Pedro Ernesto (1932/1936) que o carnaval virou a festa oficial da cidade. Pedro Ernesto pressentiu o potencial econômico do carnaval para o incremento do turismo no Rio e incentivou a festa, deu concretude ao Rei Momo, liberou as escolas, antes discriminadas, para o desfile da Praça Onze. Estimulou os bailes e foi, ele mesmo, um animado folião dos bailes do Municipal, que começaram também em seu tempo.

Voltando ao “Tipo sete”. Aquela música do Nássara não fora a primeira escolhido como vencedora do concurso da Feira de Amostras. Nássara concorria também com outra música, “Maria Rosa”: “Cadê Maria Rosa, tipo acabado de mulher fatal que tem como sinal uma cicatriz, dois olhos muito grandes, uma boca e um nariz”, que havia sido desclassificada sob a acusação de plágio. “Maria Rosa” concorria com “Ride palhaço”, de Lamartine Babo. “Maria Rosa” é uma sátira à inauguração do Teatro João Caetano, quando veio uma Companhia que apresentava a opereta Rose Marie. Nássara, que tinha assistido ao espetáculo, ficara com a música na cabeça e dali veio: “Cadê Maria Rosa…” Quando surgiu a acusação de plágio, o jornalista Rivadávia de Sousa chamou a atenção do júri para o fato de que, se “Maria Rosa” se baseava naquela opereta, o “Ride Palhaço” do Lamartine era claramente baseado na ópera de Leoncavalho, “I Pagliacci”. O júri concordou que, de fato, as duas músicas estavam nas mesmas “condições técnicas” e ambas foram desclassificadas. Como Lamartine não possuía nenhuma outra, “Tipo sete” levou o prêmio. Apesar dos apesares, “Maria Rosa” foi um sucesso fantástico, gravada em 1936 por Francisco Alves e venceu o “concurso das ruas”, segunda uma revista da época. E mais: por ter lançado a expressão “mulher fatal…” no sentido que até hoje usamos.

Marques Rebelo, na entrevista do MIS, chama a atenção para a habilidade do Nássara de pegar temas da música erudita e aplicar na música popular. Nássara revela que aprendeu o macete mesmo foi com o Lamartine. Este teria descoberto duas “fontes de petróleo”: o frevo pernambucano, que está na base de “O teu cabelo não nega” e a música erudita. Esta trilha, segundo o Nássara, abriu novas e infinitas possibilidades para a música popular.

“Bastava o compositor descobrir uma melodia imortal, ritmá-la carnavalescamente e atirá-lo no ouvido do povo. Com letra carnavalesca, é claro. (…) O povo que estava condenado a só cantar marchinhas de melodias portuguesas, passou a solfejar melodias de Chopin, Mozart e até Wagner compareceu algumas vezes no carnaval carioca, sem receber um níquel de direito autoral”. (Última Hora, abril de 1952).

Brincadeira à parte, o fato é que a união deste recurso com o espírito satírico de Nássara inspirou muitas paródias musicais. Em cima de “Cuore ingrato”, lembra Sérgio Augusto, foi que se ergueu a marcha carnavalesco “Coração ingrato”. Primeira das tantas parcerias de Nássara com Erastóstenes Frazão, premiada pela prefeitura carioca em 1935, esta música está estampada nas calçadas do bouleverd Vinte e Oito de Setembro, em Vila Isabel. “Coração ingrato” competia com “Cidade Maravilhosa”, que foi desclassificada. O júri não considerou “Cidade Maravilhosa” música carnavalesca. Anos mais tarde, Nássara diria que teria preferido que a música não tivesse sido classificada, mas que fosse tão tocada hoje quanto é “Cidade Maravilhosa”. Este tipo de fenômeno aconteceu em outros concursos: Ari Barroso, por exemplo, perdeu com “Aquarela do Brasil” e “Alá-la-ô”, do próprio Nássara, apesar do imenso sucesso que sempre fez, também não venceu o concurso de 1941.

Sérgio Augusto lembra ainda outros exemplos de paródias ou citações na obra musical do Nássara: na última estrofe de “Periquitinho verde”, parceria com Sá Roriz, Nássara brincou com “Mamãe eu quero”; a “Valsa dos patinadores” rendeu um verso em “Nós queremos uma valsa” e “La paloma” uma marcha inteira, “Pombinha”. Bem antes dessas, em 1936, Nássara compôs com Lamartine Babo, “Cadência”, que ele mesmo declarou ser uma paródia de “Valência”. Apesar de os parceiros já serem então duas celebridades, “Cadência” não fez sucesso algum.

Naquela fase, diz Nássara com seu estilo característica, ele já estava obrigado a fingir que era compositor, senão, levava tapa na cara. Não levava, não. Mas a cobrança existia de fato. Numa bem-humorada reportagem no ano de 1936, a Revista Carioca perguntou ao Nássara se iria concorrer no carnaval daquele ano. Ele disse que apresentaria nada menos que seis músicas no próximo concurso, mas estava meio desanimado por conta dos casos anteriores. A revista perguntou-lhe então se era verdade que ele abandonaria a música popular. O resto da matéria é francamente divertido:

“Nássara já estava de chapéu na cabeça, pronto para sair, quando se voltou:

– Em princípio tive essa ideia. Estou cansado… É verdade porém que, até o carnaval de 37, há um ano de intervalo. Em 365 dias, temos muito tempo para mudar de opinião. Supondo que eu mude de ideia, uma vez por semana, como o ano tem 52 semanas, posso ter 52 ideias diferentes. Ora, supondo…

Nássara não pode concluir: de todas as mesas da redação já estavam voando tinteiros, livros, jornais, que procuravam atingir o popular autor de Formosa…”

Nássara não ganhou o concurso em 1938, quando concorreu com “Periquitinho verde”, outro grande sucesso. A vencedora foi “Pastorinhas”, que João de Barro tinha feito com Noel Rosa, morto naquele ano. Despeitado, Nássara espalhou que quem vencera não fora João de Barro, mas “a alma de Noel”. Os dois saíram no tapa. Ari Barroso e Roberto Martins tiveram que apartar. O curioso, diz Sérgio Cabral, é que “Touradas em Madrid”, cantada pela Maracanã em peso na Copa de 50, nem foi classificada.

Nássara compôs “Periquitinho verde” com Sá Róris, que fora seu professor de desenho e que ele reencontrava agora como compositor popular. Gravado pela pequena Dircinha Batista, então com 13 anos, foi o grande sucesso do Carnaval de 1938. A gravação dessa música fora, no entanto, quase uma obra do acaso. Em 1937, Benedito Lacerda convidou Dircinha para gravar “Não chora”, música de sua autoria e de Darci de Oliveira, pelo selo da Columbia. Como não houvesse música para o outro lado do disco, Nássara terminou a segunda parte de “Periquitinho verde” no próprio estúdio, a tempo de ser incluída na gravação:

“Meu periquitinho verde, / Tire a sorte por favor, / Eu quero resolver / Este caso de amor / Pois se eu não caso / Neste caso eu vou morrer / O que eu não quero / É depois de me casar / Ouvir a filharada / Noite e dia a me amolar / Pois eu juro que não tenho paciência / De aturar: “Mamãe, eu quero mamar”.

Em 1938, Nássara se apresentou na Feira de Amostras com mais duas joias definitivas da história da música popular: “Florisbela”, com Frazão, cantada por Sílvio Caldas, e o samba “Meu consolo é você”, em parceria com Roberto Martins, que foi sucesso na voz de Orlando Silva. O fato inédito e sensacional daquela Feira de Amostra foi que as duas músicas do Nássara empataram: ambas tiraram o primeiro lugar. Este fato revoltou os demais concorrentes que pediram a anulação do concurso, sob o argumento de que ocorrera fraude.

Nássara ficou muito abalado, mas contestou o pedido de anulação baseado no fato de que só seria comprovada a fraude se existissem mais votos que entradas na Feira, pois a votação era referente ao número de ingressos vendidos. Estes chegaram a 110 mil e o número de votos obtidos foi de 60 mil. A fraude estava descartada, mas ele admitiu que houve cabala pelos votos. Sílvio Caldas e Orlando Silva chegaram cedo à Feira e ficaram cabalando votos. Os dois eram já celebridades, naquele ano de 38. A vitória do Nássara foi legal.

Florisbela

Entre uma rosa amarela, / um cravo branco e um jasmim, / encontrei a Florisbela / entre as flores do jardim. / Implorei um beijo dela, / ela nem ligou pra mim. / Afinal as florisbelas / todas elas são assim. / Vendo que nada arranjava / eu dei o fora porque / A Florisbela quando viu que eu me afastava / Veio correndo atrás de mim. / Afinal as florisbelas todas elas são assim.

Meu consolo é você

Meu consolo é você, meu grande amor, / Eu explico por quê: / Sem você sofro muito / Não posso viver / Sem você mais aumenta o meu padecer / Tudo fiz sem querer meu grande amor, / Eu peço desculpa a você. / Mas se por acaso / Você não me perdoar / Juro por Deus / Que não vou me conformar / Pois a minha vida / Sem você é um horror / Eu sofro noite e dia / E você sabe por quê / Meu consolo é você…

E em 39, Nássara ganhou também com a marcha-rancho “História Antiga”, que fez em parceira com J. Cascata (um dos mais perfeitos compositores de marcha-rancho) De todas as músicas do Nássara esta era a preferida de Francisco de Assis Barbosa e de Jotaefegê, que declarou: “Ritmando versos singelos, exponde uma poética simples, sem rebuscamento, na fluência próprio a uma composição popular…”

“Um lindo pierrô de outras eras, / Eterno sonhador de mil quimeras… / A uma colombina formosa e angelical, / Cantou o seu amor / num lindo madrigal… / Porém o arlequim mais positivo, / roubou-lhe a colombiana, / mostrou-se mais ativo. / E o lindo pierrô, pobre coitado, / que vivia cantando / ficou derrotado, / e acabou chorando. / Eu quero ser assim / igual ao arlequim, / pra não sofrer em vão / a dor cruel de uma desilusão. / Para mim a colombina / tem que vir ao meu portão / se quiser o meu amor / e possuir meu coração…”

Foi de olho no prêmio oferecido pelo jornal A Noite que Nássara compôs, em parceria com Cristóvão de Alencar, “A menina Presidência (O Homem quem será?)”. Em 1937, especulava-se sobre as próximas eleições para a Presidência da República. Dizia-se que, apesar de existirem vários possíveis candidatos, Oswaldo Aranha e Armando Salles de Oliveira, entre outros, Getúlio acabaria, como acabou, dando um jeito de continuar. Luís Peixoto resolveu promover, através de A Noite, um concurso para escolher a melhor marchinha sobre as eleições.

“O prêmio era muito bom para a época: 15 contos. Naquela época, um prêmio desses era para eu matar alguém e pegar, de qualquer maneira. Aí todo mundo concorreu. Do júri, eu só me lembro do Luís Peixoto, que era muito meu camarada. E ele ainda me perguntou, na rua, quando o encontrei: “Você não vai entrar nesse concurso?” “Qual é o concurso?” – ele aí me mostrou A Noite. Eu digo: “Está bom, o prêmio é bom.” Ele: “Faz aí qualquer coisa” – e ainda me disse : “Mas quem vai ficar é o Getúlio mesmo.” E aí fiquei com aquele negócio na cabeça e acabei fazendo a música”.

“A menina Presidência / vai rifar seu coração / e já tem três pretendentes, / todos três chapéu na mão. / E o homem quem será? / Será seu Manduca / Ou será seu Vavá? / Entre esses dois meu coração balança / Porque na hora agá quem vai ficar é seu Gegê. / Agora todo mundo dá palpite, / mas eu sei que no fim ninguém se explica, / é melhor deixar como está, / para se ver depois então como é que fica. / E o homem quem será?”

Foi um sucesso, diz o Nássara. Ganhou e foi receber o prêmio: “E não apanhei, não”. Já Seu Manduca, Armando de Salles Oliveira, e Seu Vavá, Oswaldo Aranha, possíveis candidatos à Presidência da República, dançaram. Quem ficou mesmo foi o seu Gegê.

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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