Por Isabel Lustosa
“Eu nunca fui um camarada muito disciplinado mentalmente, sempre fui muito aéreo e tal. No exame do segundo para o terceiro ano na Escola de Belas-Artes, o sujeito tinha que desenhar estátua, já não era só busto, para passar de ano e continuar na Arquitetura. Eu comecei e, ao invés de desenhar direitinho, fiz a caricatura de um grupo escultórico daqueles. Eu senti que o professor, um italiano, de vez em quando passava. Aí, teve uma hora que ele parou e disse assim pra mim: ‘Olha, Nássara, você vai ser reprovado. Você não vai passar. Mas vou te dar um conselho: continua a fazer caricatura que você dá para o negócio’. Então esse acidente de trabalho, não é?, me deu assim uma espécie de aviso.”
Mas, bem antes desse “acidente de trabalho”, antes até mesmo de ter entrado para a Escola Nacional de Belas-Artes, Nássara já havia estreado na imprensa como caricaturista. Foi obra do puro acaso. Ele cursava ainda os Preparatórios na rua do Ouvidor, quando, na tarde de 28 de abril de 1927, um episódio movimentou o centro do Rio de Janeiro. O jornal A Pátria afixou em sua fachada (onde, à falta de rádio e de televisão, era atualizado o jornal diário) a falsa notícia de que o Jaú, avião brasileiro que voltava da Europa, havia caído no mar, perto de Fernando de Noronha. Era um tempo em que a travessia do Atlântico pelos ares ainda era considerada uma proeza digna de grande atenção e o povo acompanhava através daquelas notícias as novidades sobre o raid do Jaú. Quando ficou constatado que a notícia era falsa, o povo atacou o prédio de A Pátria a pedradas e incendiou a redação. E, aproveitando que já estava com a mão na massa, prosseguiu promovendo o maior quebra-quebra no centro da cidade. A polícia interveio. Em meio ao tumulto, destacou-se por sua truculência, um tenente, conhecido como Guimarães que andou, segundo diz o Nássara, espaldeirando o povo. A confusão foi grande.
“E eu participei, gloriosamente, do acontecimento, não é? Porque eu era garoto, metido a besta. Naquele tempo era difícil a fotografia instantânea; a fotografia era ainda na base do magnésio. E um amigo meu, Nicolau Babui, tinha um irmão que era repórter de polícia de O Globo, o Eduardo Babut. Eu acabei sendo levado para O Globo (que ficava no Largo da Carioca, onde é hoje a Caixa Econômica) para ver se eu conseguia fazer um desenho do tal tenente. Eles me deram um pedaço de papel, eu fiz uma porcaria lá qualquer. O Euricles de Matos, que era o diretor-geral, chamou três repórteres de polícia para ver se reconheciam: É, batata! É o cara. Então a semelhança passou em julgado, não é? Fiquei em clima de satisfação… Me pagaram 20 mil-reis, saí exultante e de lá pra cá, me senti um potentado…”
Nássara tinha 16 anos. Euricles de Matos gostou dele e recomendou que levasse outros desenhos. E Nássara começou a levar semanalmente desenhos para O Globo, ganhando, de acordo com o número de caricaturas publicadas, 40 mil-réis, quantia mais do que necessária, dizia ele, para cobrir suas “poucas despesas de folião”.
“Tive um tratamento de pai, mesmo, por parte do Euricles de Matos. Foi uma dessas simpatias especiais, não é? Ele era um baiano assim, batoquezinho, cabeça chata, sem pescoço, daquele tipo nordestino mesmo. E, com ele, tive a minha primeira aula de paginação.”
Mas o primeiro emprego do Nássara na imprensa foi o que obteve em 1929 no Crítica, jornal de Mário Rodrigues. E não foi como caricaturista, nem como paginador, foi como retocador de fotografias. Quem o levou até lá foi um colega da escola de Belas-Artes, o cearense Carlos Cavalcanti.
“Porque a vida do nordestino se assemelha à do imigrante: eles também estão aqui no Rio de janeiro sozinhos e têm que fazer tudo pra se virar. Carlos Cavalcanti tinha feito uma revista, para a qual eu fizera o desenho do título. Quando começou a trabalhar na Crítica, ele se lembrou de mim e me disse: olha, vai ter uma possibilidade de emprego lá na Crítica. Era para retocar fotografia. Ele me explicou como se fazia: Só tem duas coisas: quando ela está muito clara, escurece o fundo, quando está muito escura, clareia o fundo. Era só isso. O resto era tapeação. Eu fui para lá, fiz umas três ou quatro, e acabei nomeado para o negócio. Eu só não sou mesmo bom porque não prestei, porque a escola da Crítica era fantástica.”
Logo Nássara foi promovido a substituto do paginador oficial do jornal, porque o primeiro, que era o caricaturista paraguaio André Guevara, pouco aparecia por lá. E isto dava ao jovem iniciante chance de ir aprendendo sozinho, empurrado pela generosidade de um dos editores, Danton Jobim. Nássara era especialmente grato a Danton Jobim, a quem considerava um grande jornalista, qualidade que, na sua concepção, estava também associada a um bom conhecimento de artes gráficas. E, segundo Nássara, Danton Jobim conhecia arte gráficas como poucos. A ausência de Guevara e o apoio de Danton também foram fundamentais para que o Nássara pudesse ir somando às duas outras funções, a de caricaturista.
“Com Danton Jobim, eu passei a fazer caricatura. Me lembro de uma das primeiras publicadas: foi a do Epitácio pessoa com um colar – era para ilustrar um dos artigos do Dr. Mário [Rodrigues]. O Danton Jobim deixou um recado para eu fazer um Epitácio Pessoa com um colar, eu já estava paginando e nem sabia quem ele era direito, porque eu ficava na parte de esportes. O meu sedenho foi levado lá onde o Dr. Mário ficava (por incrível que pareça, era no andar térreo, na gerência, era lá que ele se escondia dos chatos) e ele, então, mandou me chama e me deu 200 mil-réis de gratificação, porque ele gostou da caricatura. Com isso, eu fiquei entusiasmado, pensei mesmo que fosse enriquecer. E estou como estou hoje.”
A passagem de Nássara pela Crítica, seu contato com a família Rodrigues e, através dela, com Orestes Barbosa que também trabalhava lá, representa, de fato, sua entrada no mundo do trabalho. Porque, de alguma maneira, Nássara nunca levou muito a sério a atividade de compositor, ou mesmo de homem do rádio. Aquilo era como que um prolongamento da vida de malandragem de Vila Isabel.
“Vivi das duas coisas, um pé aqui, outro ali. Não abre muito, senão eu caio. (ri) A perna esquerda ficava no jornal, a direita, na música. A música já era mais farra também… Em jornal eu consegui ordenado, quer dizer, uma segurança aparentemente maior. Porque eu aprendi, como lhe disse, a paginar. Eu planejava, mais ou menos planejava uma página e, junto com o secretário, mandava cortar e tal, até ajeitar a página e, junto com o secretário, mandava cortar e tal, até ajeitar a página. Então, em jornal, eu peguei um ordenadozinho que dava para eu sobreviver.”
O jornal de Mário Rodrigues foi fundado em 21 de novembro de 1928 e, segundo Ruy Castro, chamava-se “Crítica” e não “A Crítica”. Tinha oito páginas: a primeira quase sempre tratava de política e a última, invariavelmente, de algum escândalo policial. O projeto gráfico era de Guevara. As caricaturas normalmente eram dele ou do mexicano Enrique Figueroa. O lema do jornal já era uma prévia de seu estilo: “Declaramos guerra de morte aos ladrões do povo.”
“A exuberância visual de Crítica acompanhava o estardalhaço dos textos. Cada manchete, como diria Nelson, era um “berro gráfico, um vivo impresso”. Às vezes limitava-se a uma única palavra: “CANALHAS!” ou “ASSASSINOS!”. O nome Crítica aparecia em uma de cada três manchetes: “CRÍTICA revela isto!”, “CRÍTICA denuncia aquilo!” ou “Caravana de CRÍTICA penetra não-sei-onde!”, como se o principal assunto de cada dia fosse o fato de o jornal ter saído.” (CASTRO, pp. 67-69)
Nássara acreditava que Crítica tinha marcada época porque unira a violência dos artigos do Dr. Mário à violência das caricaturas do Guevara. Para Mário Rodrigues, que estivera preso durante seu governo, e para Guevara, o prato favorito era o ex-presidente e agora senador Artur Bernardes. O Artur Bernardes de Guevara, diz Herman Lima, “tinha orelhas de morcego, olheiras de hiena, rabo de demônio e asas de coruja”. O que talvez fosse a imagem mais adequada para ilustrar as denominações que Mário Rodrigues lhe dava no texto: “réprobo”, “sacripanta”, “Caim”, “excelso canibal”, “hiena insaciável”, “urubu sanguinolento” e “carcaça nojenta”. (idem)
“A impressão que eu tenho (isso é palpite, totalmente palpite mesmo, é capaz de dar em vez de “preto 17”, “preto 20”) é que ele [Guevara] recebia mais ou menos as indicações de como deveria ser feita a caricatura. E ele era de uma violência muito grande. Todas aquelas figuras eram feitas… o Washington Luís, a campanha contra o Matarazzo. Porque ele recebia orientação, pedidos, digamos assim – ah, amanhã tem isso – e tal. De maneira que você via todos os vitoriosos postos a nu: o João Neves da Fontoura, o Flores da Cunha, enfim, em caricaturas terríveis.”
Guevara, o único paraguaio que venceu no Brasil, no dizer de Humberto de Campos, não figura no álbum das pessoas a quem Nássara queria bem. Não chegaram a ter qualquer ligação pessoal no tempo da Crítica e, anos mais tarde, ao se encontrarem na Última Hora, a antipatia mútua ficaria evidente. Mais de uma vez, no depoimento que me concedeu, ele alude à pose, a uma certa arrogância na atitude de Guavara para com ele.
“O Guevara ia lá, falava assim e tal… Ele era um pouco… Como todo mundo, não é? Eu, graças a Deus, nunca tive isso, porque também nunca fui importante. Mas noventa por cento das pessoas agem assim. E, até certo ponto, está certo. Porque eu também levo muita desvantagem… desvantagem, não, mas às vezes caceteia…”
No entanto, Nássara é o primeiro a reconhecer a importância de Guevara para os caricaturistas da sua geração. Sob a influência do desenho moderno do paraguaio que chegou ao Brasil ainda na década de 1920, a caricatura se tornou mais angulosa, estilizada, econômica nos traços. Os novos nomes que apareceram na praça como Álvarus, Augusto Rodrigues e o próprio Nássara apresentavam obras onde era clara a influência de Guevara. Um artista como Théo, que surgira com um traço marcadamente influenciado por J. Carlos, sob a nova orientação, adota o traço duro, quebrado do paraguaio.
Na caricatura de Guevara, ao contrário do que ocorre com a de J. Carlos, muitas vezes o humor cede lugar à denúncia e algumas de suas imagens sombrias fazendo lembrar Guernica de Picasso, menos convidam ao riso do que à reflexão. São de um intenso expressionismo as imagens que publicou durante a Segunda Grande Guerra. Imagens onde está francamente evidenciada a influência da arte moderna, notadamente do cubismo. De qualquer maneira, Guevara é um estrangeiro e os seus seguidores, se apreendem muito do seu estilo, do caráter inovador do seu traço, acabam sempre por voltar ao veio nativo, ao humor mais debochado, mais benevolente, humor de país do carnaval, o humor do homem cordial.
Nássara seria um dos que primeiro se libertaria da influência de Guevara, demostrando a autonomia de seu traço na simplificação e na graça natural de suas figuras. Sua absoluta singularidade, como notou Loredano, permitiu que subvertesse a ordem e, em seus trabalhos, os sóis podiam ser negros, as pessoas azuis e Goebbel foi sempre verde… Seu desenho é leve, engraçado, nunca maltrata. Seguindo trilha própria, seu traço sempre representou de forma alegre, bem-humorada, as situações mais críticas, sem que com isto se prejudicasse o potencial de denúncia da caricatura que fazia. Nesse sentido, como caricaturista, apesar de a forma geométrica trazer a influência de Guevara, é o humor quase ingênuo de J. Carlos que parece corre com mais força nas suas veias. É a caricatura mais amena, mais amiga do caricaturado, herança da República velha.
“Antes do Getúlio, ainda na república velha, eu fiz muita caricatura. Eu já começava a não querer me parecer nem com J. Carlos nem com Guevara. Porque você sabe como é, sempre existem as forças: no meu tempo era o J. Carlos. Depois, foram o Guevara e o Figueroa que eu admirava muito também. Figueroa: bom desenhista, bom caricaturista, dos melhores. Ele era fantástico. Era eu que, garoto, lavava os potes de tinta para ele. Eu tinta uma admiração por ele! Porque ele me dava confiança, conversava comigo, gostava de mim e eu gostava muito dele.”