Por Bruno Carmelo
Um mexicano, um inglês, um xerife e um negro entram em um bar. Isto poderia ser o início de uma piada, mas é a premissa do oitavo filme de Quentin Tarantino, que enclausura oito tipos sociais muito precisos dentro de um pequeno armazém para assisti-los se digladiarem. O mecanismo perverso poderia soar artificial, mas funciona porque nenhum dos personagens possui mais voz do que o outro, e nenhum corresponde ao ideal do herói – como era o ex-escravo de Django Livre. O espectador observa o ringue à distância, sem ter para quem torcer.
A introdução é longa, paciente, comprovando a paixão do diretor pela construção dos espaços e dos diálogos. Tarantino faz com que seus personagens apresentem uns aos outros para terceiros: “Nossa, esse é o xerife! Como assim, você não conhece o xerife? Deixa eu te contar quem ele é”, ou então “Esse é o carrasco, quando ele pega alguém, esta pessoa sempre morre enforcada”. Fala-se do passado dos protagonistas, de suas características, do seu temperamento. As imagens são compostas com precisão e os diálogos estão afiados como sempre, mas o fato é que os primeiros 80 minutos são arrastados, porque nenhuma ação se desenrola diante dos olhos do espectador: elas são contadas em voz indireta, cabendo ao público imaginá-las.
O filme sofre uma transformação brutal e excelente com a entrada do próprio Tarantino, que além de ser diretor e roteirista, também faz as vezes de narrador, comentando as numerosas reviravoltas. Ao longo de sua filmografia, o cineasta desenvolveu uma persona tão talentosa quanto histriônica, sempre a um passo de canibalizar as próprias histórias. Neste caso, ele se introduz na trama, faz citações às suas obras (partes do clímax constituem referências diretas a Bastardos Inglórios e Cães de Aluguel), utiliza seus atores-fetiche de modo a espelhar os papéis deles em filmes anteriores do autor. É inegável que Tarantino vem construindo um universo cinematográfico homogêneo e de alta qualidade, mas um tanto egocêntrico.
Depois que todos os protagonistas se fecham no Armazém da Minnie, a narrativa manifesta uma ousadia impressionante. Ao invés de seguir os moldes clássicos de Django Livre, o diretor cria uma obra de forma voluntariamente plural, apostando nas reviravoltas, nos excessos, nos flashbacks, na montagem paralela e em diversos outros recursos. A divertida reunião dos odiados traz toda a cota de sangue que se espera do grupo e do diretor, com direito a comentários sociais afiados a respeito da posição social das mulheres, dos negros, dos imigrantes e de outras minorias.
Assim, Os Oito Odiados efetua um retrato da pluralidade social americana. A provocação a Abraham Lincoln (a carta escrita pelo presidente) constitui a cereja no bolo deste retrato da América selvagem entre quatro paredes. A filmagem em 70mm coroa a ironia criativa do projeto: Tarantino desejava ter a maior dimensão imagética possível para retratar um lugar pequeno, obtendo um efeito ao mesmo tempo íntimo e abrangente, minimalista e épico.
O desconforto provocado pelo choque entre a amplitude da imagem e o minimalismo da narrativa contribui a gerar o aspecto de terror, que talvez seja o gênero principal deste projeto. Rumo à conclusão, a obra abandona as ferramentas do faroeste para mexer com os nervos do espectador e manipular seus personagens de um modo que apenas o cinema de horror mais sanguinário costuma fazer. Neste aspecto, Os Oito Odiados estabelece um paralelo com outro projeto de exploitation do cineasta, o ótimo À Prova de Morte. A trilha de Ennio Morricone, curiosamente criada antes de o compositor ver uma imagem sequer, reforça a aparência de terror, com o tema tenso, em cordas, se intensificando rumo ao clímax catártico.
No que diz respeito à estética, Tarantino continua mestre da diversidade de linguagens cinematográficas. É impressionante como ele consegue dominar as regras do cinema clássico – especialmente na primeira metade, com as cenas na nevasca –, subvertendo-as na metade final com os recursos mais anárquicos do cinema de gênero. O dinamismo dentro do armazém é impressionante, assim como o controle das atuações, todas homogêneas e eficazes. O cineasta sabe extrair o melhor de Samuel L. Jackson e Kurt Russell, além de pedir a Jennifer Jason Leigh e Tim Roth para fazerem tipos excessivos, algo que ambos executam com um prazer manifesto.
É uma pena que Bruce Dern e Michael Madsen sejam mal aproveitados pela história, e que algumas aparições inesperadas, na segunda parte, tenham uma importância narrativa menor do que o esperado. Percebe-se igualmente a dificuldade do cineasta em ocupar seus oito personagens simultaneamente: enquanto mostra dois ou três odiados de cada vez, imagina-se o que os outros estariam fazendo logo ao lado, presos naquele espaço. Tarantino sabe muito bem o que deseja mostrar, mas não possui o mesmo controle com o espaço sonoro e imagético hors-champ, fora do quadro. De fato, não é fácil controlar oito personalidades tão distintas, presentes ao mesmo tempo, no mesmo local, durante quase três horas. (Seria interessante imaginar o que um cineasta radicalmente diferente de Tarantino, como o mestre da crueldade e do hors-champ Michael Haneke, faria com esta mesma história).
Mas Tarantino permanece um exímio manipulador de sensações, entregando reviravoltas que não tinha prometido, frustrando aquelas que se esperava, voltando em questões que pareciam desimportantes, mentindo descaradamente para o espectador sobre alguns aspectos. Os Oito Odiados pode não ser o projeto mais coeso, nem o mais criativo do cineasta, mas revela um autor de 52 anos que filma com a jovialidade e irreverência de um adolescente, transparecendo um prazer imenso em brincar com o público, com a câmera, com os personagens. Enquanto demonstrar tamanha disposição para combinar e transformar gêneros, extrapolar regras e códigos de boas maneiras do cinema, seus filmes serão sempre muito prazerosos de assistir.