Por Rafael Galvão
Vi a grade curricular do curso de cinema da UFF. Entre as disciplinas oferecidas, Teoria da Percepção; Realidade Socioeconômica e Política Brasileira; História das Formas de Expressão; Português XVII; Introdução à Filosofia; Introdução à Sociologia; Ética; Legislação e Pol. do Cinema e do Audiovisual (imagino que o Pol. se refira a “política”, mas vai saber, né?). Entre as optativas uma miríade espantosa de assuntos, que vão de Comunicação Interpessoal a Ética e Ciência.
São oito semestres. E depois desses quatro anos o garoto que entrou na faculdade achando que ia sair de lá transformado magicamente em um novo Scorsese — ou, se tem desvios graves de caráter, um novo Godard — sai praticamente como entrou; talvez apenas um pouco mais arrogante, um pouco mais iludido sobre o seu papel no mundo, com uma variedade maior de conhecimento raso sistematizado e a capacidade de discutir cinema no bar usando termos típicos da academia, como parametrizar, paradigma e intersubjetividade.
Não quero subestimar a ignorância dos jovens que chegam à universidade antes mesmo de terminarem a adolescência, com toda a imaturidade e características específicas que isso implica, nem fazer pouco dos professores dessas matérias que parecem só existir para garantir que a economia do país continue funcionando, gerando emprego numa indústria cada vez mais inchada de educação superior.
Talvez seja necessário, mesmo, desasnar os novos alunos em questões que dizem mais respeito ao seu posicionamento na vida do que ao cinema propriamente dito. Mas é estranho que esse tipo de coisa hoje caiba a um curso superior. Eu não sei, porque não entendo muito disso. Não sou professor, não sou pedagogo, não tenho licenciatura em nada — talvez em licenciosidade, vá lá. Gente mais bem qualificada que eu pode falar melhor sobre o assunto.
O que sei é que desses cursos de cinema saem, principalmente, jovens completamente preparados para repetir aulas em universidades, a passar adiante aquilo que aprenderam nos bancos desse tipo de escola, inclusive a não dizerem nada sem a chancela de um bocado de autores que, como eles, passaram suas vidas dentro desse ambiente acadêmico, cada vez mais hermético. A universidade, nos últimos tempos, parece estar se dedicando obsessivamente a perpetuar um círculo vicioso, a se realimentar constantemente enquanto se esgota em si mesma, cada vez mais distante do mundo real.
Os resultados práticos são pífios. A Universidade Federal de Sergipe, por exemplo, tem um curso de Audiovisual, recentemente promovido a Cinema, há muitos anos. E no entanto o mercado de produção audiovisual sergipano, que já não era exatamente notável e hoje sofre mais que os outros os efeitos da crise econômica e, mais grave, estrutural que está destruindo o setor de publicidade e sofre com a falta crônica de profissionais razoavelmente qualificados.
Por tudo isso, se eu fosse criar um curso de cinema mandava esse modelo às cucuias.
Uma das coisas que mais me impressionam é o número de estudantes que, tendo que estudar para a prova de Sociologia ou de Teoria da Comunicação, não viram os mais básicos filmes da história e não compreendem a sua evolução. O ambiente ao menos lhes possibilita falar obviedades sobre o cinema iraniano, ou sobre a militância em prol do cinema brasileiro, que é e pelo visto sempre será um valor que se esgota em si mesmo e não precisa de justificativa existencial. Mas tantos, tantos parecem não conhecer cinema de verdade.
Na Universidade Rafael Galvão (URGH! para os íntimos) o curso oferecido seria bem diferente.
No primeiro ano eu escolheria 200 filmes que, de alguma forma, fizeram o cinema evoluir aos longos desses últimos cento e poucos anos e os exibiria em ordem cronológica. Um filme por dia, com exceções abertas para obras como “Berlin Alexanderplatz”, por motivos óbvios.
Sei exatamente com qual filme começaria: The Wonderful Wizard of Oz, de Otis Turner.
Depois de cada exibição, chamaria profissionais da área e mesmo professores para explicar aos alunos o filme que acabaram de ver. Detalhar e realçar os elementos do filme, inovações narrativas. Explicar as técnicas em cada um, as razões pelas quais foram utilizadas. Contextualizá-lo em seu tempo e em relação ao que veio antes. Contaria a sua história e o seu papel na evolução do cinema. Mostraria, por exemplo, o que há de revolucionário nas mãos de Mae Marsh em “Intolerância”, ou na narrativa de “Cidadão Kane”, ou o que há de inovador em “Acossado”. Exibiria, por exemplo, “Perigo Delicioso”, com Tom Mix, “No Tempo das Diligências” e “Era Uma Vez no Oeste”, para que pudessem entender as diferenças e a evolução de um dos gêneros mais importantes do cinema, e também como e por quê.
No segundo ano eu exibiria tudo de novo, na mesma ordem, mas agora para estabelecer um grande debate com a participação de todos. Seria mais aberto, porque a meninada a essa altura teria, espera-se, uma visão mais abrangente do que é o cinema e de sua trajetória, e certamente enxergaria tudo de outra forma e compreenderia melhor cada filme. E só então os alunos estariam liberados para se especializar no que quisessem.
Em vez de um curso generalista como os de hoje, os dois anos seguintes seriam segmentados: cursos de montagem, de roteiro, de direção, de edição, de sonoplastia, cenografia. Não seriam esse amontado de matérias isoladas sobre temas disparatados que não parecem fazer nenhum sentido, a maior parte dos quais não interessa de verdade aos alunos. Seriam dois anos de prática, de resolução de problemas, de mão na massa. A tecnologia para isso já existe há muito tempo e é cada vez mais barata.
Obviamente, não dá para garantir a formação de novos cineastas, porque talento é coisa que não se ensina, no máximo se alimenta e incentiva. O que eu poderia garantir é esses garotos no mínimo estariam preparados de verdade para discutir e fazer cinema, saber o que estão vendo, ter os critérios necessários para avaliar um filme e o conhecimento para fazer também, se quisessem. E eu acho que querem.
Mas, como já disse, eu não entendo desses negócios de escola.