Por Ricardo Feltrin
Quando o livro “Contos de Thunder – A Biografia” chegou em casa eu senti uma pontada de orgulho e também de medo. Eu, que sou fanático por biografias, pela primeira vez na vida ia ler uma de uma pessoa que eu realmente conheço. Um amigo com quem tenho convivido por quase 40 anos.
Mais que amigo, aliás. Conheci Thunderbird no início dos anos 80 na universidade Metodista, no Rudge Ramos.
Ele estudava odontologia e eu fazia aulas de Teologia como aluno ouvinte.
Frequentávamos a mesma república estudantil. Tínhamos o mesmo interesse: a música.
Ele no violão. Eu no piano. Aliás, tocamos juntos até hoje eventualmente.
Thunder é meu amigo, foi companheiro de estúdio, de balada, de problemas com drogas, de busca de solução para elas; foi meu dentista, meu cunhado (namorei sua linda e adorável irmã, Adriana) e um daqueles raros irmãos postiços que você leva para toda vida.
Também virou meu ídolo.
Moramos próximos. Nos falamos e nos vemos sempre.
Pois saber que eu ia ler, a partir daquele momento, a biografia de alguém tão próximo, tão querido e com quem me identifico tanto me deixou feliz, mas também me gelou a espinha.
Acompanhei a história dessa obra desde a pré-gestação.
Sei o quanto era importante para ele.
Mas, sei o quão seria mais importante ainda para a história da TV, da música, do rock brasileiro.
O livro é um relato do foram os anos 80, 90, 2000, 2010 e contando…
O início da carreira de Thunder como apresentador ocorre num momento revolucionário da TV.
A MTV foi o primeiro grande acontecimento da TV no Brasil nos anos 90, e sua importância só seria superada pela implantação da TV por assinatura alguns anos depois.
Apenas para fazer uma comparação frugal e contemporânea (do período que estamos falando): a MTV está para a TV como a descoberta da injeção eletrônica esteve para a história dos carros.
Ela melhorou o desempenho, turbinou, mudou a forma, o conteúdo, o “como fazer TV”, a linguagem, tudo.
Na verdade criou uma espécie de sintaxe midiática para os jovens, um público imenso –e com inteligência e bom poder aquisitivo– no mundo todo.
No Brasil não foi diferente.
Quando digo que mudou a forma, digo forma mesmo, em todos os sentidos: a MTV era uma emissora em UHF e 90% das casas não tinham acesso aos canais dessa frequência.
Basicamente era preciso fazer um ajuste nos aparelhos de TV, na própria antena às vezes… e quem morava em prédio dependia ainda do tipo de ajuste da antena coletiva. Era um verdadeiro pé no saco.
Mas, enfim, assistir à MTV implicou também em esforço dos telespectadores. E eles se esforçaram, e muito.
Sinceramente, falo de coração: não é porque Thunder é meu amigo.
Conheci e conheço muitos outros VJs e estrelas da MTV ao longo dos anos. Tenho enorme respeito e reverência por vários deles.
A MTV que nasceu e cresceu no Brasil foi uma explosão de talento, de surpresa, de linguagem e de comunicadores. E também em boa parte de seus executivos.
Alguns dos diretores e produtores ali simplesmente foram geniais. Escrevo sobre TV, já disse. Tiro o chapéu como jornalista da área.
Aquele prédio no bairro Sumaré, São Paulo, abrigava o que o Brasil tinha de melhor para oferecer para a TV, para a publicidade, para a mídia e, principalmente, para seu público.
Dito tudo isso, não consigo pensar em ninguém que represente tanto, que encarne tanto, que simbolize tanto essa MTV recém-nascida quanto Luiz Fernando Duarte, o Luiz Thunderbird.
Dentro de toda essa mudança que a MTV representou, Thunder por sua vez foi um novo paradigma na tela.
Um sujeito longe do padrão, engraçado, sarcástico, ácido, bagunçado, desajeitado, mas simplesmente genial.
Ele foi o nosso Chacrinha do fim de milênio.
Mais que isso: esse pioneiro da era dos VJs brasileiros também era músico e entendia (entende) profundamente de rock, de pop, de rap, de samba, MPB e mesmo de história da música.
Como baixista, nunca sonhou em ser um Celso Pixinga, é verdade, mas é profundamente talentoso e sabe o que faz no palco.
Tá bom, vá lá, muitas vezes estava doidão e não sabia.
Mas, como músico e instrumentista, ainda me surpreende até hoje.
Na TV, Thunder, 59 anos, foi também um dos pais do “nerdismo”.
Milhares de moleques e garotas brasileiros, desengonçados, usando óculos fundo de garrafa, viram nele seu ídolo e espelho.
Mais que todos, a MTV também se enxergou nele. A publicidade, idem.
Do dia para a noite, Thunder passou de jovem dentista infeliz e renitente do ABC para estrela nacional da TV e de toda uma geração.
Se a gente pudesse listar aqui a quantidade de novas bandas e novos músicos que surgiram no país graças à generosidade e esforço pessoal de Thunderbird, daria mais um texto do mesmo tamanho deste ou ainda maior.
O mesmo vale para a quantidade de músicos que ele ajudou, abriu espaço ou impulsionou como VJ, e também membro da vanguardista e igualmente doida banda Devotos de Nossa Senhora de Aparecida.
Quase sem perceber, em sua biografia, escrita em parceria com Mauro Beting e Leandro Iamin, o generoso Thunder revela várias vezes toda a felicidade e orgulho de ter obtido esse poder: o poder de ajudar aos outros.
No começo da MTV, ele chegava a literalmente dormir na emissora.
Não saía do acervo de vídeos da Abril e quando não estava diante da câmera ao vivo ou gravando, estava aprendendo ou tentando abrir seu próprio espaço como músico.
Ele poderia ter se valido muito mais da emissora em que trabalhava para emplacar a Devotos, mas parecia que respeitava o tempo e o destino: se tivesse que acontecer, aconteceria.
De certa forma não aconteceu: a banda nunca foi ou é um sucesso nacional, mas definitivamente já está no panteão das mais longevas do rock brasileiro.
Tenho um orgulho reticente porque toco teclado em uma das faixas do CD “Rock´n´Roll” (2002), da Devotos.
Digo reticente porque no dia da gravação imediatamente houve uma antipatia mútua entre mim e o produtor do CD.
Eu ouvi esse CD só uma vez. Não sei o nome do tal produtor e nem quero saber.
Mas, de cara, achei que era um boçal prepotente e vice-versa. Só que no meu caso deixei isso bem claro.
Como vingança ele escondeu meu teclado na edição da faixa. Idiota.
Não tem como falar de Thunder e não falar sobre essas duas coisas: drogas e sucesso.
Ele sabe que são estigmas eternos e que muita gente sempre estará com o nariz apontado para ele (perco o amigo, mas não perco o trocadilho)
Todos nós daquela geração e daquele ambiente universitário e local (Rudge Ramos) sempre fizemos uso recreativo de drogas.
Estávamos sempre enfiando o pé na jaquinha, mas lembrem-se: não era a Londres de 1960, minha gente.
Era só o ABC dos anos 80 com o limitado poder aquisitivo de seus jovens moradores.
A maconha era a droga da galera. Cocaína era aquela coisa muito de vez em quando.
Exceto para Thunder, que tinha o dom – e principalmente a obstinação – de conseguir tudo aquilo que quisesse. E isso mesmo antes de ser famoso.
Quando Thunder chega à MTV para assinar contrato, no início dos anos 90, ele sobe ao 9º andar do edifício lá no bairro Sumaré já com o problema das drogas e da compulsão.
Ainnn, podia ser pior? Ainnn, podia.
Ele poderia ser alcoólatra também, mas graças a Deus nunca foi.
Quando o VJ explode na MTV e na publicidade, e se torna de fato uma celebridade, ele vai inflar essa adicção e todas as suas consequências.
Coisas que vão atormentá-lo e atrapalhá-lo pela próxima década inteira.
Quando ele começa a contar sobre o quanto a cocaína já lhe fazia mal e o quanto se auto-sabotava por causa dela, eu tive de parar de ler o livro.
Uma pressão muito desagradável se apossou do meu peito e da minha garganta. Engoli seco.
Isso porque exatamente quando Thunder entra na MTV eu entro na Folha.
A TV, os escritórios de publicidade e as redações de jornais no início dos anos 90 eram lugares onde a cocaína simplesmente grassava.
A gente não comprava de traficantes nas ruas. Comprava pelo RAMAL. A verdade é que vivemos uma eterna crise econômica e sempre tinha algum conhecido fazendo “frila” como traficante.
Curioso é que fui músico por todos os anos 80, e tive acesso a pó o tempo todo e em todos os lugares. No entanto, nunca me interessei.
Sempre fui o tecladista “nerd”, o “usuário” de vinho e do baseado.
Cheguei a tocar numa banda que uma vez, durante uma temporada de um mês em Campos do Jordão, comprou MEIO QUILO de cocaína.
Sim, amiguinhos (como diria Thunder), meio quilo.
Pois nem sequer olhei para aquilo. Me aborrecia demais.
O efeito que a cocaína tinha nos meus colegas de banda me deixava deprimido e com bastante raiva.
Nos dez anos em que fui músico perdi a conta de quantas vezes tive de me apresentar sozinho com o cantor da dita cuja, de ser obrigado a fazer shows “intimistas”… simplesmente porque os VAGABUNDOS CHEIRADORES dos meus companheiros estavam travadões.
Cocaína é um demônio possessivo. Só posso definir assim.
Ela muda a personalidade do usuário. Mais que isso: ela muda para pior TODO O AMBIENTE em que está sendo usada. Mesmo se você não estiver.
Ela pesa, contamina, oprime tudo à sua volta.
Eu sentia isso e me afastava.
No entanto, quando entrei na Folha foi como se um interruptor tivesse sido ligado: de repente eu tinha virado um cheirador também.
Thunder e eu passaríamos os anos 90 com muitos problemas com pó.
Ele na TV. Eu no jornal.
Aqui preciso fazer uma regressão.
Quando tudo isso ocorria ainda por cima comecei a namorar a adorável irmã de Thunder.
Que maravilha, né? A linda e focada Adriana tinha agora não só um irmão problemático a quem ela apoiava, passava a pano para as besteiras e até mesmo salvaria sua vida mais tarde.
Não, também tinha agora um namorado do mesmo signo do irmão cabeçudo (Áries) e com a mesma tendência compulsiva e autodestruidora. Meu Jesus Cristinho…
Graças a Deus não fiquei muito tempo na vida dela, portanto não tive tempo de lhe fazer mal ou magoar.
Mas, aproveito este texto em primeira pessoa para pedir desculpas. Adriana não merecia isso. Ela hoje é mãe de gêmeas lindas, tem um marido que a ama profundamente e uma família maravilhosa.
Família que, graças a Deus, ainda inclui seu irmão. Adriana e seus pais salvaram Thunder. E mais de uma vez.
Muitos amigos também o salvaram, ainda que em conta-gotas.
É emocionante ler que um cara como Marcelo D2, ora vejam, foi atrás dele para pedir-lhe que “maneirasse” nas drogas.
Ou Didi Wagner, Luciano Huck, entre outros tantos espíritos bons de verdade, que tentaram tirá-lo da lama ou o sustentaram fora dela, em vários momentos.
De qualquer forma representava que eles o amavam, mesmo sem conhecê-lo direito. Queriam seu bem.
Mas, infelizmente, ele tinha perdido o controle e estava em completo estado de negação.
No livro Thunder discorre longamente sobre seu curto período na Globo.
Um pouco antes de assinar com a emissora da família Marinho ele fora homenageado pela própria com um personagem fofo na “TV Colosso”, o Thunder Dog.
Querem mais sucesso que isso? Virar um personagem da Globo!
Fica claro na biografia (e nós da área televisiva sempre soubemos) como isso – o lançamento do Thunder Dog – incomodou e irritou muita gente na MTV.
Chegaram a tentar instar o VJ a proibir o personagem da “TV Colosso” e tomar alguma medida jurídica contra a Globo.
Apenas gente pequena se roendo de inveja, literalmente.
Só que Thunder nunca foi besta e sabia do tamanho que uma homenagem, inédita, daquela magnitude, tinha e teria em sua vida.
Com Thunder Dog ele já colocou a patinha na Globo, de certa forma. Era uma questão de tempo.
Quem o levou para a emissora em 1994 foi Boninho – que também tentou ajudá-lo nessa questão da droga (sem sucesso).
Boninho não tinha tempo para tentar mais de uma vez.
Além disso naquele momento a droga tinha o poder completo sobre ele. Assinar com a Globo não ajudou nem um pouco.
São momentos dolorosos para mim também.
Acompanhei toda essa fase não só como amigo, mas também como já jornalista estabelecido.
Doeu demais ler cada linha desses trechos do livro.
Uma dor de identificação também. Naquele momento estava ocorrendo o mesmo comigo, só que na redação do maior jornal do Brasil.
Aliás, não só comigo.
Foram dezenas e dezenas de colegas com o mesmo problema chamado cocaína.
Muitos, infelizmente, já não estão mais aqui. Me considero abençoado.
E é preciso dizer algo: mesmo sob efeito de drogas, Luiz Thunderbird nunca deixou de ser íntegro.
Como diz a música de um vizinho célebre que tenho, chamado Lobão, ele nunca fez mal nenhum a não ser a si mesmo.
Honesto, um coração enorme, um caráter admirável… Tudo isso ainda estava intacto lá embaixo, dormente sob o efeito do pó ou da fumaça do “freebase” que tanto o obcecava.
Quando Thunder conhece o NA (Narcóticos Anônimos) e passa a seguir os passos da limpeza espiritual e de corpo, ele vai atrás de todas as pessoas que achava ter prejudicado ou magoado nos anos anteriores.
Aliás, não só pessoas.
Ele não conta isso no livro, mas eu conto, porque mostra o tamanho de sua honestidade, dignidade e o quanto estava empenhado na própria cura.
Uma vez, doidão, irritado e tenso, ele quebrou o botão de um elevador social do prédio que morava (acho que na Lapa).
Rachou o botão, que passaria anos ali quebrado, embora fazendo sua função.
Pois quando começou a se limpar e seguir os 12 passos do NA, ele foi atrás de comprar outro botão para substituir o que ele quebrou.
Para mim o nome disso é decência, integridade, coração puro.
Porque ele estava ali se desculpando com o botão de um elevador.
O importante é que Thunder vai dar a volta por cima, buscar tratamento, conseguir vencer a compulsão (ou melhor, domá-la), se manter limpo e, principalmente, vivo.
E também se mantém em evidência na mídia até hoje, ainda que de forma muito mais contida.
Ele fez parte de um momento marcante e inédito na história da mídia brasileira.
Não só na TV, mas também na publicidade, é bom relembrar. Foi garoto-propaganda da Pepsi por dois anos, entre outras coisas
Hoje Thunder é mais que apenas um VJ ou mesmo um músico. É na verdade uma personalidade, um símbolo e um ícone. E de mais de uma geração.
Graças a Deus, e também a si mesmo, segue no meio de nós.
Longa vida a Thunderbird.
Livro: “Contos de Thunder – A Biografia”
Editora: Globo Livros (390 págs)
Preço: R$ 40 em média impresso; R$ 30 em e-book)
Avaliação: Excelente, lindo e doloroso