Por Fernando de Barros e Silva
Jair Bolsonaro seguiu à risca o que se exige da mulher de César. Não basta ser miliciano, tem que parecer miliciano. A imagem acima pertence a um gênero bastante inusitado quando, entre os retratados, se encontra o presidente da República. É o gênero Milícia Ostentação.
Há um inegável ar de família entre essa foto e aquela em que Daniel Silveira e Rodrigo Amorim, então candidatos bolsonaristas ao Legislativo, exibiam a placa de rua com o nome de Marielle Franco partida ao meio. Ao lado deles, de braço estendido e punho cerrado, outro desconhecido festejava a vitória da extrema direita, prestes a se consumar. Era Wilson Witzel.
Naquela como nesta fotografia, os personagens estão sorrindo, satisfeitos, como quem exibe um prêmio. Nas duas imagens, o prêmio que comemoram é a morte. No primeiro caso, de uma mulher que simbolizava milhares de outras; no segundo, de milhares de pessoas transformadas em números, CPFs cancelados.
“CPF cancelado” é o jargão usado por policiais e grupos de extermínio para se referir com júbilo à execução de alguém (supostamente um criminoso). O apresentador Sikêra Júnior se apropriou da expressão para transformá-la em meme de seu programa vespertino, o Alerta Nacional, criado no ano passado na esteira do sucesso regional do Alerta Amazonas. É claro que o pacto do programa com a barbárie se beneficia do Zeitgeist, o espírito do tempo, mas essa é uma fórmula que encontra boa recepção há décadas na tevê brasileira.
Usando como matéria-prima a violência onipresente nas periferias intermináveis do país, o apresentador – um animador de auditório travestido de jornalista – alterna momentos de escracho e de indignação enquanto oferta ao público o relato teatral das atrocidades da véspera. O enredo dramático adota invariavelmente a perspectiva da polícia destemida e impoluta contra vagabundos e marginais sem remissão. A novidade, neste caso, não está no programa, parte da nossa paisagem, mas no fato de que Sikêra Júnior agora é presidente da República.
Que a imagem controversa tenha sido produzida durante a visita de Bolsonaro a Manaus, epicentro da catástrofe sanitária e caso exemplar da negligência criminosa do governo no combate à pandemia, foi uma coincidência que só acentuou a inevitável associação entre os CPFs cancelados e as vítimas da Covid-19 num momento em que o país se aproximava de 400 mil mortes. Na foto, o uso da máscara está reservado às figuras periféricas. Entre elas, o mais deslocado é justamente o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga. Indiferente à câmera e aos demais marmanjos, ele dá a impressão de estar em outro planeta. Não deixa de ser uma metáfora do momento atual.
Por contraste, ao lado de Bolsonaro, o ministro do Turismo, Gilson Machado, o da sanfona, se inclina para segurar a ponta do cartão enquanto ostenta um sorriso apalermado. Sua expressão sugere alguém sem muita vida interior, o próprio bobo alegre. O oposto do ministro da Educação, Milton Ribeiro, em cujo sorriso sinistro, que parece ter sido arrancado das profundezas da alma, só consigo enxergar um daqueles tipos pervertidos do patriarcado que povoam o teatro de Nelson Rodrigues. Lado a lado, o idiota e o sádico sorridentes também não deixam de ser uma metáfora do próprio Bolsonaro.
A viagem do presidente a Manaus se deu um dia depois de sua participação constrangida no encontro da Cúpula do Clima, quando leu de forma claudicante um discurso inconvincente e inautêntico, no qual ele próprio não se reconhecia. Na capital amazonense, Bolsonaro voltou a ser ele mesmo. Circulou sem máscara pelas ruas, provocou aglomerações, fez um desagravo público ao general Eduardo Pazuello – como Macunaíma, herói de nossa gente – e pegou no colo uma criança que trajava uniforme policial e tinha nas mãos uma metralhadora de brinquedo.
O momento apoteótico da visita ficou reservado à entrevista com Sikêra. Não se tratava, claro, de uma entrevista – o presidente jamais admitiu ser entrevistado de verdade. Desse encontro, a imprensa deu maior visibilidade a duas passagens. Uma delas quando Bolsonaro disse que pode, sim, apelar às Forças Armadas contra as medidas restritivas adotadas por governadores e prefeitos para conter a pandemia. A outra quando ele, referindo-se ao rapaz que havia acabado de lhe servir água, perguntou à plateia, às gargalhadas: “Queima ou não queima? Com aquele rabinho ali. Olha o rabinho dele!” A alusão, no caso, era ao penteado do rapaz, que usava rabo de cavalo.
Tanto a bravata autoritária (em tom sério) quanto o assédio homofóbico (em tom de piada) devem ter provocado em você, leitor ou leitora, reações de repugnância, incredulidade ou exaustão, mas é exatamente dessa mistura intratável que Bolsonaro extrai o oxigênio que lhe permite respirar politicamente e pensar na hipótese de reeleição. O ogro está socialmente enraizado. Ele exprime genuinamente, na forma e no conteúdo, um pedaço do Brasil.
Perto do fim do Alerta Nacional, depois de passarem quase cinco minutos trocando confidências escatológicas sobre os transtornos causados pelo uso da bolsa de colostomia (Sikêra também precisou de uma), o apresentador exibiu o famigerado cartão a Bolsonaro: “CPF cancelado para quem, presidente?” “Quem eu falar vai dar problema”, respondeu de pronto o astuto capitão. “Pode ser pra inflação, pra corrupção, fica à vontade”, retrucou o apresentador, explicando ao convidado que ele não precisaria matar ninguém naquele instante. “Pro lockdown! Vou cancelar o lockdown”, disse então Bolsonaro, sorriso no rosto e cartão na mão.
Assim como catalisou em torno de si o eleitorado evangélico e o eleitorado da bala, ambos em expansão, Bolsonaro busca convencer o eleitor que sobreviveu à Covid mas se estropiou em termos financeiros que a culpa é dos outros – de governadores, de prefeitos, do STF, da imprensa, do establishment, jamais dele.
A roda da vitimização e da transferência de responsabilidade aos adversários pelo fracasso monumental de seu governo está girando a todo vapor. Apesar do empenho republicano de Renan Calheiros (onde fomos parar), é possível que o CPF do país do futuro seja cancelado antes que o amigo de Adriano da Nóbrega perca o emprego no Palácio do Planalto.