Por Rafael Galvão
Em vários momentos deste blog escrevi sobre o assunto, sempre lembrando a mesma coisa: o Holocausto é singular porque não fazia sentido economicamente, ao contrário da escravidão africana; porque era apenas a materialização em última instância de um ódio racial injustificável, explicado em sua origem por uma necessidade existencial do cristianismo; e pela sua natureza industrial, o fato de os nazistas montarem um complexo mecanizado de assassinatos em massa.
O sacrifício desses seis milhões de homens, mulheres e crianças acabou tendo um aspecto curioso. O Holocausto deu fim aos quase dois milênios de perseguição institucional ao povo judeu. O antissemitismo deixou de ser considerado apenas um preconceito a mais, e a memória do genocídio possibilitou a formação do Estado de Israel, em termos prejudiciais aos habitantes da região mas autorizado pela lembrança dos horrores nos campos de concentração.
Nada disso é menos que justo.
Nas últimas décadas, no entanto, Israel fez do Holocausto o seu habeas corpus permanente, num cartão de saída livre da prisão de Banco Imobiliário. Ao transformá-lo no maior crime humanitário que o mundo viu em toda a sua história — os 10 milhões de mortos no Congo Belga na virada do século, por exemplo, batem o Holocausto nos números e também em desprezo a uma raça considerada inferior, mas carecem da sofisticação alemã na criação de uma máquina de matar e da publicidade que os campos de concentração receberam, e por isso não merecem os mesmos lamentos —, e principalmente em algo que não admite comparação possível, Israel se vê liberado para cometer as atrocidades que quiser, porque nunca deixará de ser uma vítima inalcançável. “15 mil crianças mortas em Gaza? Você tem a audácia de comparar isso com Dachau?” Dando um passo adiante, descobriram a tática eficiente que é chamar qualquer pessoa que critique o que Israel faz com os palestinos de antissemita, palavra bexigosa da qual se corre como quem corre da lepra.
É por isso que diplomatas israelenses usam estrelas amarelas ao irem à ONU enquanto avançam no genocídio do povo palestino. Foi por isso que uns 30 anos atrás judeus novaiorquinos protestaram contra uma exposição sobre as vítimas gays e ciganas nos mesmos campos de concentração onde seis milhões de judeus perderam a vida.
A exclusividade do sofrimento, aqui, não é defendida com unhas e dentes à toa. Há um propósito nessa glorificação da desgraça, e se ela nasceu como uma garantia de que o Holocausto não se repetiria, agora se torna o pedestal sobre o qual Israel se escuda diante de um mundo cada vez mais horrorizado com a sua própria selvageria.
O tabu de se comparar o Holocausto com qualquer coisa precisa cair. Torná-lo “aquele que não deve ser nomeado” não é mais exatamente uma garantia para os direitos dos judeus. É, ao contrário, o passaporte para a violação dos direitos dos palestinos. O Holocausto é agora a desculpa para um novo Holocausto.
Quando o Hamas realizou sua ofensiva contra Israel em outubro do ano passado, jornalistas compararam o ato a um pogrom, angariando capital emocional para defender a crueldade sionista que naquele momento já tinha tido início. Fingiram esquecer que o que aconteceu ali foi justamente o contrário.
Pogroms eram algo totalmente diferente. Eram a violência contra um povo minoritário e oprimido. O ataque do Hamas foi o inverso: mais uma tentativa de um povo de se libertar do seu invasor.
A única comparação possível, que esses jornalistas se recusam naturalmente a fazer, é com a rebelião do Gueto de Varsóvia. Israel tem feito em Gaza nas últimas décadas o que os nazistas fizeram em Varsóvia, mas agora em muito maior escala.
É por isso que a definição do Hamas como terrorista parece cada vez mais inaplicável. Ninguém chama, por exemplo, a Resistência Francesa na II Guerra de “terrorista”, porque ninguém pode negar a uma nação oprimida e ocupada o direito à resistência armada. A não ser que essa nação seja a palestina.
Há toda uma nomenclatura canalha utilizada pela mídia internacional para mascarar o genocídio. Falam, por exemplo, da guerra de Netanyahu contra o Hamas, e não do que realmente é, a execução de um genocídio pelo Estado de Israel contra o povo palestino. Usando esses termos, Israel pode destruir a Faixa de Gaza, pode atacar a Cisjordânia, pode chacinar mais de 100 pessoas na fila da ajuda humanitária.
Usando as palavras certas, eles podem tudo, como dizia a Golda Meir.
Independente de como chamamos o Hamas, e independente do resultado desta crise, a única coisa que se pode tomar como garantida é que a cada incursão israelense em território palestino, a existência de Israel se torna cada vez mais inviável.
Desde o início, Israel só foi possível pelo investimento das grandes potências, pelo interesse estratégico dos EUA, por exemplo, em um enclave no posto de gasolina do mundo. Num mundo multipolar onde outras potências se afirmam, no entanto, essa posição se torna a cada dia mais vulnerável.
E a cada pai morto, a cada mãe assassinada, Israel cria mais e mais militantes do Hamas, construindo aos poucos a sua própria inviabilidade. O ódio se espalha e se justifica. Israel entrou em um círculo de violência e autodestruição do qual não poderá mais sair.