Por Clara Nihil (*)
Os que andam com os mortos, primeiro livro “oficial” de contos adultos de Zemaria Pinto, é uma provocação. A começar pelo subtítulo, que pulveriza os substantivos “fábulas” e “estórias” – este, uma provocação, em si mesmo – amalgamando-os com os adjetivos “cruéis” e “más”, e resultando uma poeira que, nos olhos do leitor, desafia os limites quadradinhos do gênero.
Invocando Mário de Andrade – “é conto tudo aquilo que o autor chamar de conto” – e Machado de Assis – “sobre o gênero, não sei o que diga que não seja inútil” –, Zemaria Pinto constrói em Os que andam com os mortos trinta narrativas entre a intertextualidade, a metalinguagem e a criação mais original: “desconforto é a palavra-chave para definir o sentimento que se quer incutir no leitor”, diz o autor na apresentação que, não à toa, tem por título um dissimulado “Apenas um livro de contos”.
Assassinatos, manifestações de loucura mansa até o mais agudo desvario, delírios, pesadelos, metamorfoses – físicas e mentais –, ais de amor, uivos de dor e outras mágoas supuradas: no universo do demiurgo não sobra espaço para a vidinha banal, a tal da áurea mediocridade de que falavam os antigos. Pulsa nessas trinta narrativas o mundo como vontade e representação, num encontro clandestino entre a poesia e a filosofia.
Como já se insinuou, os textos emulam gêneros diversos que vão do conto convencional ao roteiro de cinema; da fábula à Esopo ao ensaio acadêmico; do texto teatral à entrevista; de falsas crônicas a memórias falsas. Conto com nota de rodapé? Relaxa, leitor/a: faz parte da tática narrativa. Do caldeirão resultante sobressai-se um humor ácido, que, se inibe a gargalhada, deixa um travo amargo na boca. Os quatro últimos textos, entretanto, enformam uma memória da pandemia – e podem causar um indesejável nó na garganta.
Acostumado aos embates das análises críticas, o professor Zemaria Pinto fica muito à vontade no papel de contista, enfeixando em um volume de desafiadora e prazerosa leitura textos que poderiam ilustrar suas aulas de Teoria da Literatura ou seus livros de ensaios. Evoé!
(*) Clara Nihil é poeta e matemática, e escreveu esse texto na “orelha” do livro.