Programa Rouanet Norte

CAPÍTULO 5 – A Segunda Dentição do Reggae Manauara (Parte 4)

O cantor e compositor Marcello Ipanema numa de suas apresentações ao vivo
Postado por Simão Pessoa

(Por se tratarem de textos longos que só cabem num livro físico, optamos por destrinchar o Capítulo 5 em várias partes, para poder caber nessa plataforma digital. So sorry.)

Marcello Ipanema e o Bumba Meu Reggae

Marcello Ipanema é músico, produtor musical e atua na área desde 1997, quando fundou sua primeira banda de reggae e ska, a Deskarados, na qual desenvolveu o seu trabalho autoral compondo, arranjando e produzindo dois álbuns. Além disso, ele foi responsável por trazer os primeiros grupos de reggae da região para se apresentarem em Manaus, como o Roraima Reggae, de Boa Vista, e o Tribo de Jah, de São Luís.

– Como a ideia era tocar ska descaradamente, que era um ritmo ainda pouco conhecido em Manaus, optei por nomear a banda com uma palavra-síntese cuja grafia já remetia ao ritmo – explica, bem humorado. – Fomos a primeira banda da cidade a investir nesse segmento musical porque sempre gostei muito de big bands com um grande naipe de metais!

O primeiro álbum, denominado “Aqui No Mato Tem Ska”, teve a faixa “Tudo Como Era Antes” classificada na primeira Bienal da UNE, em 1999, o que levou a banda a Salvador (BA), onde Marcello teve o prazer de dividir o palco com o grupo paulista Racionais MCs, de Mano Brown. Dois anos depois, em 2001, na segunda Bienal da UNE, no Rio de Janeiro, a música “Mão-de-Obra Barata”, do mesmo álbum foi classificada, levando o músico à Cidade Maravilhosa, onde teve o prazer, desta vez, de dividir o palco com Lenine e Pedro Luiz e a Parede.

Posteriormente, ele lançou o álbum “Música do Nosso Sol”, sempre desenvolvendo eventos de divulgação de sua obra em Manaus. Com o repertório desses dois álbuns, fez algumas viagens pelo Nordeste e teve participações nos Shows de Andread Jó e Adão Negro, entre outros artistas. O último trabalho que produziu e lançou com a banda Deskarados foi o single “Sensibilidade”.

Na sequência, Marcello Ipanema criou um novo grupo musical chamado “O Izunomê”, cujo título foi inspirado numa conhecida pregação do religioso japonês Meishu-Sama, fundador da Igreja Messiânica Mundial, realizada no dia 25 de abril de 1952, no Japão, e presente no vol. 3 do livro “Alicerce do Paraíso”:

– Já explanei e escrevi inúmeras vezes sobre o espírito de izunome. Contudo, parece que poucas pessoas conseguem realmente cultivá-lo pelo fato de acharem difícil. Na verdade, não é tão difícil assim. Se compreenderem seu fundamento e fizerem dele um hábito, será fácil. A ideia preconcebida de que é muito trabalhoso é que inviabiliza tal realização. Ao mesmo tempo, parece-me que não se dá a devida importância e, por isso, não posso deixar de escrever repetidas vezes sobre o assunto. Em síntese, izunome tem o sentido de trilhar o caminho do meio, mantendo-se imparcial. Não ser apenas shojo (vertical, rigoroso) nem apenas daijo (horizontal, liberal), mas ser shojo e daijo, ou seja, não tender aos extremos, nem definir as coisas de maneira impensada. Obviamente, aquilo que precisa ser definido não pode ficar sem definição, mas discernir isso é realmente complexo.

– Tal como ocorre na culinária, a comida, para ser saborosa, não pode ser nem salgada, nem insossa. O mesmo pode-se dizer a respeito do clima. O mais agradável é o da primavera e do outono, que não é nem tão quente, nem tão frio. Se o pensamento e a ação das pessoas se tornassem assim, equilibrados, elas passariam a ter a estima de todos e é evidente que tudo lhes correria bem. Entretanto, o homem da atualidade mostra acentuada tendência ao extremo. Temos o melhor exemplo disso na política. Dizendo-se de direita ou de esquerda, os políticos têm proclamado princípios que, desde o início, são extremistas. Além disso, como seu pensamento é radical, e eles são intransigentes, vivem em conflito. E tudo isso torna-se extremamente prejudicial ao povo e à nação. Nesse sentido, é óbvio que a política deve atuar em estilo izunome. No entanto, parece-nos que há pouca probabilidade de surgirem políticos ou partidos com essa consciência. Isso porque, na atual circunstância, realmente são raros aqueles que conseguem se identificar conosco. A guerra também tem a mesma origem, ou seja, é o resultado de ambos os lados quererem impor seus pensamentos extremados. […]

Marcello Ipanema, Afonso Toscano e Simão Pessoa no Bar do Armando, em 2002

A proposta inicial da banda “Marcello Ipanema e o Izunomê” era fazer a fusão do ritmo genuinamente amazonense da toada de boi-bumbá com reggae, rock e música eletrônica, numa mistura que não poderia ser salgada nem insossa. Ele afirma que se inspirou no artista pernambucano Chico Science, falecido em 1997, para idealizar e realizar o projeto, que se transformou em um álbum, “Boi-Bumbá Nuclear”, já lançado nas plataformas digitais. A inspiração vem do álbum “Maracatu Atômico”, no qual Chico Science e a Nação Zumbi misturaram ritmos pernambucanos com soul e rock.

– Assim como Chico Science fez com a Nação Zumbi, quando misturou o maracatu com o rock, com o soul e chamou de Maracatu Atômico, eu peguei a nossa toada, o batuque, misturei com reggae, rock, música eletrônica e fiz o Boi Bumbá Nuclear, que o povo também chama de Bumba Meu Reggae” – conta o músico, acrescentando que contou com a participação de David Assayag e Márcia Siqueira na gravação do álbum.

Ouvindo o disco temos a impressão de que estamos diante de uma ópera indígena bem intimista e solenemente devocional, tendo como fio condutor o doce trinado da flauta andina omnipresente, o charango com seu timbre magistral e a voz cristalina do cantor, que algumas vezes soa como raggamuffin. A percussão e a guitarrada ficaram em segundo plano. As letras são bem elaboradas, deixando bem clara a intenção do compositor de despertar as consciências adormecidas para a tragédia sem fim que é a matança dos nossos povos originários por todo o país. Os destaques ficam por conta de “Oração”, “O Índio e a Serpente”, “O Vento da Floresta”, “A Ameaça” e “Estrelinha”. São composições belíssimas, que chegam a provocar um certo estranhamento ao serem ouvidas pela primeira vez. O disco, no entanto, é primoroso e surpreendentemente calmo para que se acostumou com as pedradas sonoras desferidas pelo vocalista nas suas apresentações ao vivo.

Aliás, falando nisso, nas suas apresentações ao vivo Marcello Ipanema costuma ser acompanhado por Elson Arcos (baixo e samples), Anderson Barreto (flautas andinas e charango), Pachamama (caixinha), Thonny (surdo), João Serrão (guitarra solo) e Voulner Sá (bateria), sendo que um dos grandes destaques do grupo é uma versão reggae de “Come Together”, dos Beatles, que chega a soar psicodélica, de tão bonita e inusitada.

Claro que fazer versão reggae de rock clássico não é nenhuma novidade (O Dread Zeppelin é uma banda americana que faz covers de músicas de rock clássico em versão majoritariamente reggae, notadamente da banda inglesa Led Zeppelin, desde 1989, e ainda contava com um vocalista debochado que imitava Elvis Presley). A novidade aqui é a introdução de flautas andinas, charango e caixinha, que dão um colorido diferente à versão ipanemense do hit beatlemaníaco. Em outras palavras, o Bumba Meu Reggae ainda tem muita lenha pra queimar.

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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