Por Rafael Galvão
O André Setaro é um dos melhores críticos cinematográficos brasileiros, e leitura obrigatória de todo dia. Seu blog é uma verdadeira aula de cinema.
Mas ele ontem fez um post com o qual eu não concordo. Nele, detona a idéia de dublagem.
Eu até entendo o Setaro. Como qualquer pessoa que se arvore dona de algum nível de sofisticação intelectual, eu também prefiro filmes na voz original. Assino embaixo de todos os exemplos dados por ele. Mas daí a odiar toda e qualquer dublagem vai um longo caminho.
Há algum tempo, alguém fez um libelo anti-dublagem num blog por aí. Infelizmente não lembro quem — e não faço questão de lembrar. Li na época e fiquei fascinado pela capacidade que as pessoas têm de ser esnobes e pedantes. Vi também um reflexo do que achei ser um certo sentimento de colonizado, a noção de que tudo em língua de gringo é melhor, não interessa o quê — e é a isso que leva a idéia de que toda e qualquer dublagem é ruim e deletéria.
Mas além do ângulo sociológico, do fato de que se se investe cada vez mais em dublagem é porque há um mercado ávido por isso, que deve ser respeitado, há questões estéticas interessantes.
É até compreensível que cinéfilos não gostem muito de dublagem. O trabalho do ator não pode ser apreciado completamente com ela. Mas além da questão de princípios, há um certo exagero. Porque para um Marlon Brado a dublagem é realmente prejudicial, represents a morte da genialidade de sua atuação. Mas alguém tem certeza de que no caso dos atores de “Hannah Montana” ou da série “Crepúsculo” — se a dublagem for boa, ao menos — isso faria muita diferença? A maioria dos atores de qualquer filme é fraca, fraca, e isso vale até para astros: para mim, pelo menos, a dublagem brasileira da abertura de “Jornada nas Estrelas” (da grande, excelsa, maravilhosa AIC São Paulo) é infinitamente melhor que a vozinha furreca de William Shatner, no original, ao fugir do naturalismo americano e adotar a impostação de voz típica do rádio e TV dos anos 60.
Alguém prefere, de verdade, um documentário daqueles do Discovery cheio de imagens belíssimas em câmera lenta com as legendinhas embaixo? Se você prefere você é um tolo, porque não apenas não ganha nada em termos de “atuação”, como ainda perde boa parte da ação do documentário porque está ocupado lendo as letrinhas.
Resumindo: demonizar a dublagem como algo intrinsecamente ruim é bobagem.
A dublagem possibilitou a milhões de pessoas conhecer e se apaixonar pelo cinema desde muito cedo. E embora seja realmente uma alteração na idéia do filme como obra de arte, o fato é que a dublagem não atrapalha em excesso a compreensão do filme. Sem ela, por exemplo, mesmo esses esnobes (que estão num limbo curioso: não são sofisticados o suficiente a ponto de ver os filmes sem a legenda, mas tampouco admitem a idéia da última vagaba do Lácio nas oiças) não poderiam assistir a desenhos ou filmes quando eram crianças.
Qualquer pessoa que prefira um desenho animado em sua língua original às versões brasileiras tem problemas sérios, na minha opinião. Porque nenhum desenho animado fica melhor no original. Mesmo a versão brasileira do “Rei Leão”, cujo Scar original foi dublado por Jeremy Irons, está à altura do original. Até hoje, quando vejo desenhos animados em inglês, sinto falta das inflexões linguísticas que só um brasileiro pode dar. Eu não me reconheço naquelas vozes, nem acho que isso seja necessário, como seria com um filme em live action.
É por isso, por causa de coisas simples como essas, que não consigo condenar a idéia de dublagem. E talvez minha tolerância venha do fato de que, como quase todo mundo da minha idade, eu seja filho dela.
No início, a dublagem era feita nos próprios estúdios em Hollywood (que além disso eventualmente refilmavam filmes inteiros com atores de um mercado específico, como o México). Era o início da consolidação do studio system e as coisas eram feitas em casa. Mas eles perceberam logo que podiam alcançar melhores resultados se deixassem que a dublagem fosse feita nos países de destino — além de ser mais barato, claro.
E assim surgiram os estúdios de dublagem, como a Herbert Richers e a AIC de São Paulo. Dubladores eram geralmente atores, dos bons. E por causa deles, em algum momento — principalmente entre o fim dos anos 60 e começo dos 70 — a dublagem brasileira alcançou um nível de qualidade invejável. Eu não duvido que em muitos filmes os dubladores fossem melhores que alguns dos atores originais.
Por causa deles a ligação emocional que eu e certamente muita gente temos com a dublagem é enorme. Virtualmente todos os filmes a que eu assistia na TV quando criança eram dublados. Cresci ouvindo dubladores incríveis. Para mim, pelo menos, “Disneylândia” só é “Disneylândia” com a narração do Márcio Seixas. A voz de Isaac Bardavid. Newton da Matta. Helena Samara, a Endora de “A Feiticeira”. E um dos mais fantásticos de todos, o Carlos Vaccari. Todo mundo conhece o Vaccari; pelo menos todo mundo com mais de 30 anos. Vaccari era aquele que anunciava: “Versão brasileira: AIC, São Paulo”. Ou “A Fox Film do Brasil apresenta…”
Aquela foi a era de ouro da dublagem. Obviamente, já faz algumas décadas — e os últimos resquícios dela estão, hoje em dia, no canal pago TCM. Hoje a dublagem é ruim. Muito, muito ruim. Os novos estúdios são de uma mediocridade estonteante. O curioso é que nunca foi tão fácil dublar: hoje cada dublador pode fazer seu trabalho sozinho, de maneira não-linear; antigamente tudo tinha que ser feito ao mesmo tempo. Um erro e todo o trabalho (medido por anéis de filme) era perdido; e não apenas o de uma pessoa.
Há vários sites dedicados à dublagem. E um site específico, o Vídeo Séries, vende seriados antigos com a dublagem original.
15 anos depois e eu ainda me maravilho com essa diversidade da internet. É o que me salva no esnobismo.
(Publicado no Blog do Rafael Galvão em 14 de abril de 2012)