Boca do Inferno

3º Round: Ouvindo Vozes

Postado por Simão Pessoa

Por Rafael Galvão

Onze anos atrás escrevi o post “Versão Brasileira”, defendendo a ideia da dublagem e reclamando de uma gente elitista que, mais que admitir apenas filmes legendados, parecia ter raiva de que outras pessoas assistissem a eles.

O tempo passou e as coisas parecem ter mudado muito. Aversão indefinida e generalizada à ideia de dublagem continua sendo coisa daquele tal pessoal esnobe, mas esses mais de dez anos fizeram muita diferença.

Nesse período o mercado de dublagem se transformou. Antigamente só se dublava para a TV, uns poucos filmes infantis e eventualmente desenhos animados da Disney. Hoje, boa parte dos filmes são lançados no cinema também em versões dubladas. Dependendo do lugar onde estão, alguns complexos de salas exibem apenas filmes dublados. Dubladores alcançaram algum reconhecimento popular, alguns viraram quase estrelas e agora têm canais no YouTube. É cada vez mais difícil encontrar um filme legendado nos cinemas.

Pode parecer que a vida deu a razão a quem reclamava da dublagem e a vitória a quem gosta dela, mas a verdade é que nada disso importa porque no “istrímin” qualquer pessoa pode ver o filme como quer, e reclamar da dublagem é, sinceramente, coisa de quem continua não gostando de pobre.

O engraçado é que isso, para mim, é algo contraditório. E cada vez mais sem sentido, também.

Ainda adoro a dublagem da AIC, velha, datada, com seus rr corretos e vozes empostadas, ou a da Herbert Richers, quase onipresente em minha adolescência. Ainda é delicioso ouvir vozes como a de Borges de Barros e do Carlos Vaccari, ou o Ricardo Mariano me contando quem fez a “versão brasileira: Herbert Richers”, e vou morrer sendo fã do Márcio Seixas narrando a Disneylândia para mim. Quando decidi assistir a “Jornada nas Estrelas”, fiz questão de ver as duas primeiras temporadas com a dublagem dos nos 80, o mesmo Márcio Seixas fazendo o Spock.

Ainda assim, tenho calafrios quando assisto a um trecho de filme novo dublado. Normalmente detesto cada detalhe, as vozes, as expressões, os palavrões que agora são autorizados a traduzir.

Durante muito tempo tive a impressão de que isso acontecia porque, por um lado, me vi mais e mais exposto ao som original de filmes, seriados e desenhos; não vejo TV aberta já há algumas décadas, com exceção do Jornal Hoje para alegrar o meu almoço com tragédias inomináveis, das quais a menor não é o César Tralli e suas platitudes falsamente compungidas.

Por outro, eu tinha a sensação de que algo se perdeu quando dubladores passaram a trabalhar sozinhos no estúdio. Nos tempos do eu pequeno a tecnologia parca exigia que uma cena fosse gravada com todos os atores com falas nela. Computadores permitiram que as gravações sejam feitas em tempos e lugares diferentes, dando mais eficiência ao processo; mas parecia faltar agora aquele quê indefinível que só a interação humana pode dar, as frações de tempo certas entre uma fala e outra, a entonação mais natural ao que se acabou de ouvir.

Acreditei nisso por muito tempo. Acho que ainda acredito.

Acontece que alguns anos atrás alguém estava vendo um filme da Sessão da Tarde muito alto e eu estava na rua. Parei alguns instantes para ouvir a dublagem. E fiquei impressionado ao perceber como ela era boa. Sem a imagem, o que eu ouvia eram boas vozes e boa entonação, atuais, corretas, verdadeiras.

De lá para cá passei a acreditar que a ruindade da dublagem atual está na minha cabeça, sempre esteve, e lá apenas. E mesmo assim continuo sem gostar dela. Continuo detestando. Mas agora sei que detesto porque sou chato, talvez a mesma chatice e cabeça tonta que me fazem escrever este post.

(Disso, pelo menos, eu sei a razão. Escrevo porque quero deixar um registro para mim mesmo. Porque daqui a pouco, nada disso vai importar.)

Há alguns anos, conversando com amigos — antes da IA virar assunto comum —, eu dizia que não devia demorar tempo demais até que computadores fizessem a dublagem de um filme com a própria voz do ator original. Ninguém discordava de mim, é verdade. Mas há algumas semanas atrás mesmo a minha previsão mais otimista se mostrava defasada e, principalmente, equivocada. Um vídeo de uma atriz americana falando em português com sua própria voz e expressões faciais modificadas pelo computador viralizou mundo afora. Eu não esperava por isso.

O vídeo é um aviso do apocalipse que está por vir. Dublagem é profissão inexoravelmente condenada. Dubladores podem ainda tentar se iludir, mais ou menos como fabricantes de carruagens diziam em 1910 que sempre haveria espaço para o requinte de um landau, incomparável diante daqueles automóveis barulhentos, pouco confiáveis, vulgares. Talvez seja melhor assim, talvez doa menos ver que algo que você ama e que marcou a vida de tanta gente, como a minha, está inexoravelmente condenada a desaparecer.

***

Mas o mundo da dublagem é muito mais complexo do que tudo isso.

Dia desses assisti a um episódio dublado de “A Gata e o Rato”. Era um dos melhores de todo o seriado, que foi, por sua vez, talvez o melhor dos anos 80. Nele, David e Maddie discutiam sobre um crime acontecido décadas antes, e cada um tinha uma perspectiva diferente sobre a autoria, baseados no que hoje chamariam de perspectiva de gênero. Originalmente o episódio se chamou The Dream Sequence Always Rings Twice, mas foi apresentado aqui como “Romance do Passado”, título típico da Globo naquela década.

E então David fala para Maddie: “Você está sendo uma sexóloga.”

Epa. Não fazia sentido. A palavra sexóloga estava tão à vontade nesse contexto como eu em missa de ação de graças. Fui procurar o original em inglês, e era isso mesmo que eu imaginava: o personagem de Bruce Willis dizia a Maddie Hayes que ela estava sendo sexista.

Também não era difícil imaginar a razão pela qual a tradução tascou um “sexóloga” nesse diálogo.

Na primeira metade dos anos 80 parecia que as mulheres estavam descobrindo o sexo. O “Relatório Hite” tinha feito um sucesso estrondoso alguns anos antes, e colocado a questão do prazer feminino na pauta do dia. Por coincidência, eu tinha lido e relido o livro no verão anterior, como um general escrutina o mapa do terreno que pretende invadir — e devo confessar que este foi um dos mais úteis em minha então curta vida, o que reconheci anos atrás quando o Hermenauta me passou um tal meme dos cinco livros. Além disso, desde o início da década Marta Suplicy tinha colocado no vocabulário dos brasileira a palavra sexologia, a partir do seu quadro em um programa revolucionário chamado TV Mulher.

Os brasileiros, então, conheciam a palavra sexologia. Mas “sexista” não existia em português, não ainda. Era um conceito estranho em um mundo que ainda normalizava o machismo. E por isso a tradução, possibilitada pela dublagem, pegou o conceito mais próximo do original e o utilizou. Deve ter dado certo na época, porque não lembro de estranhar a palavra ou o contexto então.

É esse tipo de coisa que a dublagem fazia e que agora, com a IA, deverá fazer parte do passado. Essas soluções criativas, essa atenção a um mundo que existe fora dos filmes, tudo isso vai desaparecer. E é por isso que escrevo isto, como homenagem e registro de um tempo em que atores brasileiros faziam trabalhos muitas vezes melhores que os originais

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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