Boca do Inferno

8. Muito além da imaginação

Postado por Simão Pessoa

Por Palmério Dória

Ninguém vive sem uma nova fronteira. Comecei a exercitar a saudável prática da abordagem, da paquera compulsiva, seguir as meninas, levar ou tentar um lero, testar a lei das probabilidades. Primeiro a esmo, depois fazendo uma seleção da espécie.

As mignonetes eram meu alvo favorito. E acabei me fixando numa que saía do Colégio Moderno ali por volta do meio-dia. Era outra Sônia, irmã de um craque do futebol de salão na minha categoria, o Rolinha.

O sobrenome da família Rolla não podiam casar com ninguém da família Chamma. Senão iam virar Chamma Rolla. Também circulava outra história: uma paixão de Sônia morrera de meningite, ela prometera a todos os santos que não ia namorar nunca mais, só não entrara num convento por causa das súplicas da mãe.

De uniforme marrom e branco, Sônia pegava religiosamente a rua Braz de Aguiar, ontem como hoje a mais charmosa de todas, sob um túnel de mangueiras, das quais não raro se desprendia uma manga que caía bem no cocoruto do cidadão civilizado ou então no pára-brisa dos carros.

Em vez de segui-la, a universidade livre de malandragem e medo me aconselhava a provocar, digamos, um acaso. Assim, contornei o cemitério da Soledade, desativado havia décadas, cuja heroína é Severa Romana, uma mulher que preferiu morrer a ceder aos instintos bestiais de uma besta quadrada.

A ideia era dar de cara com Sônia, dizer algo parecido com “você é a coisa mais bonita que eu já vi na vida” (se você acha que não funciona, ainda não leu as memórias de Groucho Marx) e tentar sustentar um papo. Fiz isso umas dez vezes, mas cadê o maldito verbo?

Ela sentiu o drama. Primeiro me brindou com o esboço de um sorriso. Depois veio um cordial “Tudo bem?”.

Como tudo estava indo às mil maravilhas, dei um jeito de estragar tudo, abandonei o script e perguntei no outro dia como ia o irmão dela, Rolinha.

Sônia nem sequer respondeu. Seguiu em frente, abraçada aos seus livros, como a menina do primeiro sutiã. Comecei meu calvário outra vez, na base do tudo ou nada. Acompanha-la até a casa, não. Mas, se eu ficasse um quarteirão antes, ok.

Não acreditei, não parei de falar um segundo, não reparei em nada que não fosse ela, até estender a mão na despedida. Aí, tudo mudou de figura.

Sônia pegou a minha mão, virou a palma, começou a observar detidamente um sinal bem no meio dela. Olhava o sinal e olhava o meu rosto abespinhado. E tomou a iniciativa: se eu quisesse, podia passar na casa dela a partir das 7 e meia da noite.

Saí dali exultante, mas cabreiro. Não imaginava que um sinal pudesse ganhar uma garota, e logo a minha miss mistério, de cabelos compridos até a cintura, a pele de porcelana, um biscuit. A caminho de casa, conferia a minha mão e não conseguia ver qualquer encanto nela.

Na casa dessa outra Sônia, a Sônia de verdade, talvez no rastro do prestígio do sinal, já na primeira noite pude me sentar na varanda do famoso Bolo de Noiva. Era uma casa com esse aspecto, de um próspero comerciante, numa das esquinas da Praça Batista Campos, perfeita para a prática intensiva do romance.

Também logo na primeira noite pude ouvir os gracejos vindos de alguns carros em disparada:

– Larga a rola!!!

Ficávamos ali, comportados e compenetrados, praticamente sem contato manual. Quer dizer: ela passava a maior parte do tempo passando a mão no tal sinal.

Eu sei que você vai dizer que é tudo mentira, que não pode ser. Mas um dia os olhos negros de Sônia ficaram dilatados, fixos num ponto da varanda, as lágrimas rolando sem parar, o corpo não se sacudia nem nada, era quase que uma visão plácida, tirando a cascata que saía dos olhos dela.

Apavorado, perguntava o que era, sem resposta. Demorava o quê? Uns cinco minutos, uma eternidade. Só na terceira vez Sônia me contou que, alisando a palma da minha mão, conseguia trazer o falecido namorado de volta, exatamente como tinha sido enterrado, de paletó. O meu sinal era igualzinho ao dele.

Vixe! Desde Aladim e a Lâmpada Maravilhosa não ouvia nada igual. Sem dúvida, um programa melhor que ver televisão, que ainda não dominava os lares.

É nessas horas que desabam todos os padrões para ter ciúmes de seres vivos. O que é que eu podia fazer numa situação dessa? Nada, a não ser cumprimentar o prezado finado quando ele baixava.

Isso lá no íntimo, porque acho que perderia a namorada se o fizesse em voz alta: “Boa noite, falecido, como vão as coisas no além? Dá pra tirar o terno lá em cima?”

Funcionou: essa insólita convivência com o fantasminha camarada durou mais ou menos um mês. O meu namoro com Sônia, quase um ano.

Cansei de dar a mão. Havia uma modalidade de namoro ainda não catalogada: o namoro de clube. Só era pra valer naquele pedaço. Sílvia Bisi se materializou no lago do Caixa Pará, da Associação de Funcionários da Caixa Econômica.

As Bisi nunca foram pequenas. Todas são grandes. Altas, audazes, voluntariosas, bonitas, sagazes, inteligentes.

Pelo menos duas irmãs de Sílvia já eram referência do charme e veneno da mulher paraense quando ela me convidou para um passeio de bóia no lago da Caixa Pará – por bóia entenda aquelas câmaras de pneu tão comuns no piscinão de Ramos.

Desde a minha infância querida, nunca mais tinha posto a mão para valer num objeto direto e intransitivo. É como se a roda da história tivesse girado ao contrário.

Quanto mais eu tentava me aproximar de uma perereca, mais elas se afastavam de mim.

E aqueles namoricos de portão podiam render muita emoção, muita rima, mas nenhuma solução.

Se bronha assobiasse, ninguém dormia na Vila Letícia. Boa parte dos meus amigos apelava para as profissionais do amor.

Bem, entrei na bóia sem qualquer relutância, incrédulo. Lá no meio do lago, comecei a bolinar a Sílvia com os pés. Da margem, ninguém podia suspeitar que estava rolando a maior sacanagem a bordo.

As Bisi são grandes, com amplos espaços. Sílvia não fugia à regra. Garotinha, já era um mulherão. O maiô azul-pálido se afastava nas virilhas cada vez mais à medida que meu dedão avançava indômito, selvagem.

Eu estava tão açodado, mas tão açodado, que quase se repete uma coisa que aconteceu com o jornalista Tarso de Castro em pleno Florentino, no Leblon.

Ele estava namorando Zezé Motta. E pediu que a eterna Xica da Silva fosse tirar a calcinha na frente dele, numa daquelas quinze mesas do bar.

Ele tirou o pé do mocassim e passou a bolinar Zezé com o dedão por baixo da mesa, é claro. O Florentino entupido, uma hora ele deu um berro, todo mundo pensou: enfarte!

Não era, não: tinha descolado o menisco na operação. Levado às pressas ao Miguel Couto, o don-juan aposentou ali o dedão.

Nada grave aconteceu ao meu novo órgão exploratório. Muito ao contrário. Não posso dizer o mesmo em relação a uma certa região frontal.

Comecei a rondar a casa da Sílvia a bordo do fusca de meu amigo Ronald Pastor, da mesma faixa de idade do meu irmão.

Ronald, dono de voz possante e criteriosa, era locutor da Rádio Nazaré. Morava numa casa na entrada da Vila Letícia.

Gente boa, fazia o papel de corredor cultural, trazendo do Rio as principais novidades musicais.

Foi através dele que conhecemos João (“Chega de Saudade”) Gilberto e Juca Chaves, os discos de musicais da televisão como Times Square (“No tempo em que eu não tinha tutu, lá em Bangu / Ninguém dizia I love you…”), os rocks de Sérgio Murilo e Carlos Gonzaga, o Tamba Trio e umas operetas que ecoavam na vila, como essa versão de Lamartine Babo para a Viúva Alegre:

Fica doido varrido quem quer,
Quem a fundo estudar a mulher,
Todas são uma interrogação,
Todas são, são, são, são,
São anjinhos sublimes do amor,
São demônios que causam terror…

O que não lhe dava o direito de garfar o meu broto legal. Logo ele, que morria de medo de ser corno – quem nunca foi que atire o primeiro chifre!

De nada adiantou a crise de consciência em que entrou, chorando copiosamente nos ombros de meu irmão, lá na boate Condor, o Palácio dos Bares, fincada em estacas às margens do legendário (não se sabe por que) rio Guamá, mais pela birita que qualquer coisa.

Naquela noite, o palhaço Arlequim, que de tarde animava a criançada no estúdio da TV Marajoara, Canal 2, órgão dos Diários Associados, e à noite a putada na Condor, ao sacar o estado lastimável do locutor, mandou tocar umas três vezes, “Tortura de Amor”, sucesso de Waldick Soriano, já estourando no Norte:

Hoje que a noite está calma
E que a minh’alma esperava por ti
Apareceste afinal,
Torturando esse ser que te adora,
Volta,
Fica comigo só mais uma noite,
Quero viver junto a ti,
Volta, meu amor,
Fica comigo,
Não me desprezes,
A noite é nossa
E o meu amor pertence a ti…

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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