Por Joaquim Ferreira dos Santos
Eu me lembro, e não entendo por que de uns tempos para cá as pessoas ficaram com vergonha de molhar os olhos quando se lembram de ai como era bom, eu me lembro que saudade era, ao lado do batuque na cozinha, o toque de trivela e as ancas da sardinha 88, a saudade era uma das glórias nacionais.
Não tinha tradução no idioma inglês e nem em qualquer outro. Coisa nossa. A saudade era pedacinho colorido de confete e, dependendo de quão velho cada um de nós fosse, havia sempre alguém que se lembrava de ter dormido protegido apenas pela segurança antimosquito dos espirais de durmabem, outro que se abanava com o sexo seguro de um catecismo do Zéfiro – e isso tudo era tão delicadamente gostoso que a saudade matava a gente, morena. De prazer. Tenho saudade e gosto de conjugar seus verbos em todos os tempos regulares e irregulares.
Às favas a modernidade dos que não veem sentido em pegar jacaré nessa onda, não veem nenhuma praticidade em se ter um carro com os faróis projetados para trás. Eu vejo.
I see dead people, mas sem o mesmo medo do garoto no cinema. Na boa. Sinatra disse para Sammy Davis Jr. que vencia quem morria com mais brinquedos. Estou de acordo. Gosto de brincar de saudade. Tenho dúzias desse bambolê e Playmobil.
Eu me lembro da frota encabeçada pela Santa Maria, Pinta e Nina. Eu me lembro de todos os afluentes da margem direita do Amazonas, começando com o Javari e o Juruá, lá no cantinho com o Acre, e vindo até aqui perto na boca do Atlântico com o Madeira, Tapajós, Xingu e Tocantins. Eu me lembro, e se Deus quiser não pretendo jamais me esquecer, dessas inutilidades escolares porque, por menos utilidade que elas ofereçam hoje aos homens de negócios que somos, não me ocorre madalena mais gostosa para lambuzar de jajá de coco os lábios da memória e alavancar junto o cheiro da minha pasta de couro na escola.
Qual o problema?
Qual é o mosquito de se ouvir de novo o bento que bento é o frade na hora do recreio (que hora tão feliz, queremos o biscoito São Luiz) e ainda o Zé Trindade chanchadeiro avaliando, e me sendo primeiro professor na matéria, a dona boazuda que passava emulando a pororoca marajoara, as águas quentes de Goiás e o arrebol do Arpoador. “O que é a natureza”, dizia o Zé. Até hoje concordo, me maravilho e faço profissão de fé.
Sei que quanto mais fraca for a memória – e eu não tomei todo o óleo de fígado de bacalhau que o doutor mandava – quanto mais fraca a memória mais o cidadão se recordará com nitidez de como foram bons aqueles tempos. Melhor assim. E, boemia, aqui estou de regresso, aqui estou vibrante de suspiros de como era malandramente elegante saltar de ônibus andando, como era matissiana a seda azul do papel que envolvia a maçã e como toda a atual programação do canal a cabo Sexy Hot soa sem mistério erótico diante do pêra, uva, maçã ou salada de frutas com as meninas no recreio.
Eu vi essas “cachorras” nascendo. Eram chamadas de avião, pedaço de mau caminho, certinhas, broto. Posso até achar que as saradas sucederam-nas com mérito, e, cá entre nós, eu adoraria chancelá-las com o meu carimbo de aprovadas. Mas jamais vou esquecer as que me foram cacho, affair e perdição.
A memória mente muito, mas não faz isso por mal. A subjetividade lhe é da índole. Eu me lembro, qualquer um pode ir ao arquivo confirmar, que o ataque do Flamengo era formado por Joel, Moacir, Henrique, Dida e Babá. Já a memória afetiva não tem autenticação passada em cartório, não registra assinatura. Ela apenas pede baixinho, feito a princesinha Norma Blum no Teatrinho Trol da Tupi, que você acredite. A memória afetiva, essa minha crença de que o fonograma perdido de Dóris Monteiro cantando o jingle do Café Capital é a melhor gravação da bossa nova, tem a inteligência do dono. É o outro lado do videoteipe, esse burro da pior espécie. Limitado a suas câmeras óbvias, o teipe registra tudo exatamente como é de fato. Tolo. Moço, pobre moço. A memória não.
Paulinho da Viola ensinou que a vida não é só isso que se vê. É um pouco mais. Quem haverá de saber, sequer eu, sequer o analista, o bem que me fez o amor inicial? Presumo que minha primeira namorada tenha sido a moça da tampa da caneta esferográfica, aquela para sempre sorridente que ia tendo o maiô subtraído pelo movimento da tinta até que finalmente, para meu espanto, revelava sua gloriosa e glabra nudez. Saudades sinceras, meu bem. Foi bom enquanto durou a tinta, querida.
Eu me lembro do mocotó das vedetes, do pente Flamengo para fora do bolso, de ajudar a empregada a tirar as pedrinhas do feijão, das pílulas de vida do dr. Ross fazendo bem ao fígado de todos nós – e não sou doido de estar com isso querendo matar a saudade de ninguém. Que a todos a saudade seja imortal. Vivo da minha, e graças a Deus essa saudade me vem com duas polegadas a mais e na cor mais linda do mundo, o azul da pedra do anil Rickett. Sou grato quando a saudade me aparece com aquela saia tergal plissada, cheia de machos e que ao estrear, no governo João Goulart, foi apelidada de Maria Teresa, por ser nossa primeira dama, como insinuava a maledicência da época, cheia deles também.
Quero mais é tratá-la, a saudade, a minha, com Biotônico Fontoura. Perpetuá-la com a gordura de coco Carioca. Nutri-la com a banha de porco e com muitos biquinhos daquele pão, os seios que eu imediatamente beliscava quando era trazido pelo padeiro de bicicleta. Quero que a saudade cresça e apareça, brinque com a língua retrô, faça barba-cabelo-e-bigode da contemporaneidade otária e mostre a todos que não adianta estrilar e nem bater o pé. O que resolve é ter logo à mão lâmpadas GE. O que resolve é fazer a luz da criatividade e apagar o preconceito.
A culpa, se você pretende classificar meu comportamento de antinatural, é do desafinado. João Gilberto, logo ele, um sujeito que vivia cantando sambinha antigo, lançou em 1959 o Brasil na terra da modernidade com o LP “Chega de saudade”.
O país do futuro, tão anunciado, chegara e queria se livrar o mais rápido possível do Jeca Tatu, do tiro no peito do Getúlio, da bofetada no Bigode, das macacas de auditório, das múmias do Museu da Quinta da Boa Vista, dos amores infelizes do Antonio Maria. Queria se reapresentar em novo padrão. Camisa Volta ao Mundo que não precisava passar, garotas de biquíni no Arpoador, o fusca produzido nas fábricas de São Paulo. Depois de décadas com o berreiro do Vicente Celestino tonitroando nos ouvidos pátrios, a modernidade urgia em sintonizar o dial num sujeito cantando baixinho. Como o Chet Baker e a Julie London faziam lá fora. Foi aí que João sussurrou o chega de saudade, e o Brasil começou a achar cafona, hoje de manhã, tudo que tivesse sido feito ontem à noite.
Sinceramente, sem querer cantar marra, sem tirar chinfra, eu estava lá, e não pisquei. Deve ser porque eu usava Optraex, um copinho azul em que se colocava uma solução líquida para lavar o olho. Com a menina-dos-olhos viva e esperta, não levei João no radical. Entendi que aquilo era o velhíssimo Dorival Caymmi, o eternamente Orlando Silva, só que numa outra batida de violão, essa coisinha também das antigas. Segui na paz, curtindo tanto o blim-blom do novo baião de João como o que vinha das ondas da PRE-8, Rádio Nacional do Rio de Janeiro, transmitindo diretamente do palco-auditório do 21° andar da Praça Mauá, 7.
Eu sempre pautei a vida pelo bordão do Café Moinho de Ouro, que já nos tempos dos barões era servido nos salões – e nunca entendi por que jogar fora os bons grãos da memória. Não só digo que dura lex, sed lex, no cabelo só uso gumex, como faço questão de aproveitar sempre uma sobra do fixador para colar bem coladinho tudo o que já ameaça ser vaga lembrança. I see dead people, e não só: produtos, jingles, comportamentos, piadas e palavras. Pode ser tudo muito divertido e brinquedo. Ou você não brinca com meu brinco?
Continuo achando, do mesmo jeito que os Sex Pistols cantando o “My Way” do Sinatra, feito o João cantando Noel, que não há programação melhor para o grande rádio da vida do que misturar as estações. Não dar um chega-pra-lá no passado. Mas manter vivo, para sempre turbinado, o que nos é felicidade e borogodó.