Por Palmério Dória
Meu mundo, então, em Santarém, girava em torno de Ita. Essa, sim, uma babá perfeita. A bem dizer, eu ainda nem tinha idade para saber dessas coisas.
Um dia, estava em cima do muro do quilométrico quintal de minha casa, se não me engano pelado.
Do outro lado, lá de baixo, três moleques acenaram com um estilingue, uma baladeira. Um deles era filho do zelador do Clube Recreativo, para onde o muro dava. Tinha uma mancha rosa na face esquerda. Era chamado de Manga Rosa.
Mordi a isca. Desci do muro, e eles me levaram para a casa de força, atrás do clube. Me colocaram de costas, eu com o estilingue na mão, absorto com o presente de grego, quando Ita irrompeu como um furacão, quase botando a porta abaixo.
Distribuiu sopapos, botou a molecada pra correr, me pôs por cima do muro no quintal de casa, e levou-me para o banheiro.
Não havia água corrente, a gente tomava banho de cuia, pegando a água de uma tina de madeira. Ela tirou o vestido de chita e uma calcinha de algodão, jogou água nela, depois em mim, nos ensaboamos um ao outro, como eu já estava acostumado.
Mas aí fez algo diferente: sentou numa das quinas do banheiro, a última peça de um casarão livre de qualquer adorno, que dava para o quintal com todo tipo de árvore, e abriu as coxas.
Um close em meu rosto flagraria uma expressão de alumbramento, a visão daqueles lábios. Pediu que eu me deitasse de frente no chão de cimento molhado, ajustou meu rosto bem ali, e pediu que eu lambesse. E eu lambi, lambi, lambi.
Tudo ali ganhou outra dimensão, outro colorido. Durante muitos anos dormíamos invertidos na rede, ela com o rosto no meu pinto, eu com o rosto na xoxotinha ainda despentelhada dela.
Ita era bem mais velha, calculo que tinha uns 8 ou 9 anos. Era batista, cabelos anelados e compridos, como toda crente. Com ela tive o melhor bê-á-bá que alguém pode sonhar. Vale contar que hoje, cercada de belas filhas, ela administra um salão de beleza em Copacabana.
– Sabe a Ita? Ela tem um salão de beleza na Siqueira Campos.
Foi assim que soube dela décadas depois, num papo com mamãe, que costumava passar vários meses de férias no Rio. Peguei o endereço, mas a galeria, quase na esquina da rua Barata Ribeiro, estava fechada.
Passei logo no outro dia, morto de curiosidade. Ela e as filhas me trataram como um querido amigo da família, Palmerinho pra lá, Palmerinho pra cá. E a Ita livrou de novo a minha cara. Dessa vez de uma plantação de cravos.
Não sei direito como apareceu a Iliaci. Mas que teve bala no meio, teve. Lembro-me de que vinha da praia a 200 metros de casa. Vinha de calção, sem camisa, brincando com a Iliaci, pequena como eu, só de calcinha. Ela era filha do vizinho, homem forte do PTB em todo o Baixo Amazonas.
Chegando perto de casa, vimos uma fila de gente que pegava toda a rua de terra desde a porta da casa dela. Fomos entrando por entre as pessoas, assim como vão se metendo as crianças por entre as pernas dos mais velhos, até enxergar, no meio da sala, de pijama, em pé, recebendo pêsames e chorando convulsivamente, o seu Elias.
Atrás de Elias Pinto, um retrato na parede – Getúlio Vargas de corpo inteiro, a faixa presidencial no peito, no dia de sua posse. Ninguém nos disse nada – nós mesmo percebemos:
– Getúlio morreu!
Mas não estávamos nem aí para o drama nacional. Enquanto as ondas da Rádio Nacional narravam a tragédia para todo o país, as multidões tomavam conta das ruas do Rio de Janeiro agitando bandeiras rubro-negras – as cores do PTB, as cores do Flamengo –, mas nosso problema básico era onde íamos brincar de médico.
Ali não havia clima. Tratamos de ir correndo para debaixo da cama da minha casa, onde pudemos brincar tranquilamente. Instrumento cirúrgico: a ponta do cinto do meu pai. Nisso ia terminando a manhã.
Nem tudo era alegria. Outra morte, a de Craveiro Lopes pode entrar perfeitamente num Campeonato Nacional de Azar. Não, não era o presidente português. Era o papagaio da família, escroto e obsceno como o das piadas.
Os marítimos, que traziam na cabeça, quase sempre descalços, tartarugas imensas de presente para meu pai, paravam para vê-lo, dando o show habitual na varanda nos fundos: “Craveiro Lopes quer almoçar”.
Um dia, ele não apareceu para o almoço e apareceu em frangalhos nas mãos de um vizinho, que nem precisou bater – a porta estava sempre escancarada. Tinha sido atropelado pelo único carro da cidade – apesar de estarmos bem perto de Fordlândia –, mais uma criação do império Henry Ford, herói do capitalismo, plantada no coração da Amazônia para fornecer goma elástica aos americanos, mas não colou.
Craveiro Lopes morreu, mas ficou a lenda. A morte deletéria teria sido encenada: era tão valioso, tão cobiçado, que o tal vizinho o roubou, pegou outro papagaio e armou a cena do atropelamento. O comprador seria um regatão – o mascate dos rios – que atracava o barco no cais da cidade.
O fato é que passei um bom tempo atento a todos os papagaios que via nas embarcações ali atracadas. Com alguns chegava a levar um papo, nenhum com a fluência de Craveiro Lopes. De vez em quando, alguém aparecia dizendo que daquela vez era. Nunca era.
No meio dessa tragédia, veio uma compensação à altura. Um irmão de seu Elias Hage, José, que precisou voltar às pressas para Belém, me presenteou com uma vitrola e uma pilha de discos 78 rotações.
Eu botava um monte deles para tocar. Um após outro, caíam pesadamente no prato.
Para mamãe, aquele mamute na entrada não passava de um trambolho, que só atrapalhava suas faxinas, uma formiguinha infatigável. Para mim, era um brinquedo extraordinário.
O libanês era um sofisticado colecionador de jazz. Mas eu lá sabia o que era jazz, blue note, be-bop, toda essa sonora volta por cima da cultura negra?
A cidade tinha só um serviço de alto-falante, no alto de um prédio chamado Castelo, armazém de secos e molhados na ponta do cotovelo que adentrava o rio.
Santarém inteira ficava na escuta exclusivamente do que o serviço de alto-falante despejava diariamente de Luís Gonzaga a Jackson do Pandeiro, passando por Nelson Gonçalves e Núbia Lafaiete, das 7 da matina às 6 da tarde, quando encerrava suas transmissões com a ave-maria.
Enquanto isso, eu bancava o DJ, ouvia Charlie Parker, John Coltrane, Thelonious Monk, Miles Davis, Count Basie, Louis Armstrong, Dizzy Gilespie, Aretha Franklin, Ella Fitzgerald, Billie Holiday, entre outros e outras.
Só vim saber direito quem era quem aí pelos 18 anos, já morando no Rio de Janeiro, nas sessões de jazz que o jornalista paraense José Gorayeb promovia em sua casa no bairro de São Clemente, onde me hospedei por um bom tempo.
Eram sons absolutamente familiares. Algumas músicas eu acompanhava assobiando, para surpresa da roda, formada por outros jornalistas, de formação jazzística e comunística, como Carlos Jurandir, George Cabral e José Edson Gomes.
Depois eu ia dar uma conferida nos long-plays, lia uma ou outra coisa, e passava também a cagar a minha goma.
O rádio existia, sim. Mas na figuraça de Zeca BBC, dublê de fofoqueiro e técnico que ia de casa em casa, trajando brim-coringa, consertando ou ajustando um aparelho aqui e outro ali, parece que sem muito sucesso.
Diziam à boca nada pequena que Zeca BBC tinha uma sólida reputação de não dar conta do recado.
Todo mundo tinha um problema com eles, os malditos rádios. A música que predominava era a Estática Número 5, de Chopin. E a língua arrevesada dos gringos da BBC – daí o apelido – e da Voz da América.
Sem contar as porradas que os prezados ouvintes davam nos aparelhos, quando perdiam a paciência.