Boca do Inferno

6. Das invasões bárbaras aos programas radiofônicos em Belém

Postado por Simão Pessoa

Por Palmério Dória

Santarém ficou pequena para as duas. Mamãe ainda procurou sondar junto aos parentes de Ismênia se ela pretendia ficar na cidade depois do escândalo todo. Ao saber que sim, não pensou duas vezes, já que estava com a faca e o queijo na mão:

– Vamos voltar para Belém!!!

Uma operação de certa maneira fácil. Não tínhamos o que o periquito roesse. Eram as tralhas da cozinha, as redes que seriam atadas no convés da gaiola Aquidaban, durante o retorno, uma gravura do Sagrado Coração de Jesus, caprichosamente emoldurada, um retrato do papai e da mamãe colorizados, dois retratos de meus avós maternos, o ferro de passar, a carvão, as fotos e jornais dos tempos de jogador do papai, a máquina Singer movida a pedal, a vitrola do irmão do seu Elias e uma coleção dos livros de Jorge Amado, capa dura, vermelha, que eu ainda não lera.

A pior parte da história: Ita não podia ir, a família dela não deixava, talvez por causa de todo aquele bafafá com status de rififi, religiosa como era.

Nessa época, cansei de ouvir histórias de garimpeiros que cortavam o “mal pela raiz”, após perder tudo em noitadas com as prostituas no rendez-vous Vai Quem Quer.

O ouro tinha aparecido no Alto Tapajós, Santarém saiu da modorra, uma legião estrangeira começou a circular pela cidade, que deixou de ser um ponto perdido no mapa – tudo rebate falso, o ouro era de aluvião, nem a história de garimpeiros se automutilando era verdadeira.

Associação de idéias inevitável: sexo podia ser muito bom, mas causava um barulho danado.

No entanto, continuei usando com relativa frequência em Belém, todas as possibilidades infanto-infantis, apesar da implacável perseguição de dona Tita, uma megera que mamãe trouxe de Santarém, marcada por uma tragédia: o filho dela foi o único morto do Tapajós, durante a rebelião comandada em 1956 pelo major da Aeronáutica Haroldo Veloso, contra JK, que reclamava lá no Palácio do Catete:

– Eu ainda nem tive tempo de errar.

(Olhe esse emaranhado: décadas depois, Haroldo Veloso, que provocou a mobilização de cerca de quatrocentos homens das três armas para sufocar sua revolta, que tinha a adesão velada de grande parte da oficialidade brasileira, morreu em consequência de um tiro na perna defendendo como deputado federal, o mandato do prefeito de Santarém, Elias Pinto, aquele homem de Getúlio no Baixo Amazonas, do PTB, que com militares golpistas como ele tentaram liquidar desde 1954, com a República do Galeão, e só conseguiram em 1964. Antes desses acontecimentos, já deputado, era figura de destaque no Café Central, na avenida Presidente Vargas, em Belém.)

Mas eu não podia ir com a minha irmã para o porão, brincar de papai-e-mamãe, que dona Tita, brandindo uma vassoura, saía correndo atrás da gente, aos berros:

– É por isso que o peito dela tá crescendo!!!

A novidade da casa em Belém era o tal porão. Passado o impacto da chegada no porto, os edifícios recortando o horizonte, algo mais perto de Manhattan que eu já tinha visto, não encontrei grandes atrativos na cidade. Além de tudo, não tinha praias, apesar de quase toda cercada de água.

Perdi o rio e o quintal, mas ganhei um porão, que acompanhava toda a extensão da casa, com amplos janelões, numa rua estreita de grande movimento, a 28 de Setembro, revestida de paralelepípedos, ainda com os trilhos dos extintos bondes, na frente da qual os ônibus não paravam de passar – ali, Craveiro Lopes não sobreviveria um dia.

Havia espaço de sobra. Meu irmão instalou uma mesa para o torneio Rio-São Paulo de botão com alguns vizinhos. As áreas do campo estavam perfeitamente demarcadas na mesa. A mim coube defender as cores do Palmeiras, com rara incompetência, pois ainda não tinha idade nem habilidade para competir com os amigos do Valdemar. Entrei no marra. De qualquer forma, havia um herói no meu time: o meia Dudu.

A trilha sonora mudou. Saíram os 78 rotações, abandonados em Santarém como estorvo, entraram os long-plays. Absoluto no hit parade, o Buquê de Melodias, de Nelson Gonçalves. Nos dias de fossa de papai, que não eram poucos, a voz impostada de Nelson Gonçalves dava lugar à voz cristalina de Elizeth Cardoso, a “faxineira das canções”, como gostava de se chamar, cantando, entre outros sucessos, Moeda Quebrada:

(…) Somos iguais a duas moedas quebradas,
Duas partes que não existem sem união,
Separados sei, sabemos, não valemos nada,
Juntos nós não valemos um tostão…

Também girava incansável uma enceradeira Arno, para dar brilho no assoalho de tábuas corridas pretas e amarelas. A família entrava na era dos eletrodomésticos – geladeira Consul, liquidificador, ferro elétrico. Mas a qualidade de vida, essa foi pras cucuias.

Agora acompanhado de Rex, um cachorro malhado que entrou de contrabando na família, dava minhas braçadas no igarapé das Armas (outros chamavam das Almas), nada mais que um esgoto a céu aberto que vivia transbordando.

A área, hoje saneada, tornou-se point de todas as comemorações. É a Doca de Souza Franco, mas os eternos insatisfeitos preferem chamá-la de avenida Beira-Merda.

O Rex estava sempre comigo também nas idas à Vila Letícia, uma vilinha que meu avô materno, já falecido, tinha construído para os filhos bem perto de casa. Lá pontificava minha avó Laura, portuguesa autêntica, à prova de qualquer roupa de baixo.

Sentava no batente da casa do fundo e, quando o calor apertava, se abanava com vestido de pano barato, deixando uma jungle de pêlos à mostra, um pentelhal farto e natural. A velha Laura devia me conhecer bem. Bastava eu apontar na vila, dizia:

– Lá vem o canalha!

Outras vezes a encontrava aos prantos, dentro da casa. Algum personagem radiofônico da novela do fim da tarde tinha morrido. Sim, havia rádios em Belém. E, o que é melhor funcionavam.

“PRC-5, Rádio Clube de Belém, Pará. A voz que fala e canta para a planície.”

Ainda não éramos 90 milhões em ação, mas quase um Círio se deslocou rumo à Basílica de Nazaré quando o locutor anunciou a fim do jogo nos gramados da Suécia: 5 a 2 para o Brasil!

Em frente à basílica, como todos, ajoelhei e rezei, agradecendo a graça recebida dos pés de Pelé, Garrincha e Cia.

Pode-se dizer que foi um reencontro com a Santa Madre Igreja, que estava sem cartaz lá em casa desde o incidente envolvendo meu pai e aquele certo alguém – como diria o J.G. de Araújo Jorge – que ninguém ousava dizer o nome, pelo menos perto da minha mãe.

Mas veja como são as coisas quanto menos você fala da diaba, mais ela aparece.

Uma noite, meus pais me deixaram com a Betina no auditório do Programa de Clodomir Colinos, transmitido pela Rádio Marajoara, em plena Praça de Nossa Senhora de Nazaré. Deixaram e se mandaram, para nos pegar na saída.

No fim do programa, Clodomir Colinos, cuja inteligência alguns associavam à cabeçorra de ator do cinema mudo, chamou ao palco uma morena XPTO, que arrancou uivos da platéia. Era ela, Ismênia.

Então, ela desfilou na passarela que atravessava o auditório e, na volta do improvisado catwalk, catou minha irmã na cadeira e levou-a para o palco.

Nesse momento, as portas do auditório se abriram e dali da calçada os meus pais puderam ver a perfomance de minha irmã ao lado da Ismênia. Assim que saímos, entre eufóricos e culpados, percebemos o tamanho da cagada.

Minha mãe estava mais branca do que mandioca descascada. Meu pai – posso dizer com absoluta certeza – inventou ali a ausência de corpo.

Um silêncio de Sexta-Feira Santa instalou-se durante semanas em casa. E, como desgraça puxa desgraça, Rex morreu atropelado por um ônibus.

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

Leave a Comment