Boca do Inferno

3. Das matinês do cinema Olímpia às tentações do Diabo Solto

O jornalista e escritor Palmério Dória
Postado por Simão Pessoa

Por Palmério Dória

Perfeição era o cinema. Os fundos do cine Olímpia davam para minha casa. A tela ficava praticamente colada na parede da sala em que eu dormia, geralmente ouvindo os sons dos filmes, os diálogos ininteligíveis, a trilha sonora, os tiroteios…

Para encontrar Super-Homem, Rocky Lane, Tarzan e Hopalong Cassidy, bastava descer a minha rua e dobrar a esquina. Pagar eu não pagava, era xodó do seu Loureiro, dono do cinema, uma das figuras mais benignas do mundo. Ali, a cortina do espetáculo se abria com um toque suave da orquestra de Glenn Miller.

Se existia uma realidade era aquela. Tá certo que os chapéus dos mocinhos e bandidos não caíam nunca, mesmo na maior pancadaria, mas os óculos do pessoal do Matrix também não caem até hoje.

Eu brincava quase todas as tardes no palco do cinema. Podia levar meus amigos e tudo. Como eu dizia, a realidade era o Super-Homem em pleno voo. O que me impedia de fazer o mesmo? Botei uma toalha nas costas, amarrei as pontas no pescoço, tomei distância no fundo do palco, arremessei e aterrissei nas cadeiras da primeira fila da plateia. Uma aterrissagem forçada coroada com dez pontos no supercílio.

Era melhor encontrar um herói com os pés no chão. Ou pelo menos pendurado num cipó. Tarzan! Incorporava Johnny Weissmuller quase todo fim de tarde num igarapé de águas glaciais. Enquanto meu pai tomava as lambadas dele, eu atravessava num cipó o Uirurá, de uma margem a outra – noite alta, céu risonho, as bacantes tomavam porres homéricos nas margens do mesmo igarapé, onde hoje existe um seminário.

Para compor o personagem, mamãe cortou pra mim, na máquina Singer, uma autêntica tanga de couro de onça, que eu só tirava para dormir.

Depois, Esther Williams incendiou a minha imaginação. Passei a desejar todas as piscinas do mundo ao vê-la. Lânguida, bonita e gostosa, eletrizava a minha infância em shows aquáticos em plena Hollywood dos anos 40 e 50.

Eu desejava nadar com ela naquela piscina enorme, aristocrática, de mármore alvo do Copacabana Palace, com sheiks, reis, artistas, o mundo dando braçadas de prazer em frente ao mar estonteante de Copacabana bem perto de mim, sentado na pérgula do grande hotel, lendo as páginas de O Cruzeiro, que chegava na Pérola do Tapajós com mil semanas de atraso.

Volúvel, troquei Esther Williams por Minnie Mouse. Não me apaixonei por ela no telão, mas nas histórias em quadrinhos que eu lia na sala de projeção do cinema, naquelas tardes mornas, pegando carona na coleção do operador. E também não era aquela Minnie Mouse em roupas convencionais, mas a super-heroína voadora, de cinturinha fina, cintura de pilão.

Minnie Mouse era a minha favorita, mas estavam todas lá com seus respectivos namorados: Flash Gordon e Dale Arden, Tarzan e Jane, Fantasma e Diana Palmer, Mandrake e Princesa Narda, Super-Homem e Mirian Lane, Pato Donald e Margarida, Zorro e… Tonto.

O gap entre as gerações acabou em O Cangaceiro. Se nunca houve mulher como Gilda, nunca houve filme como esse de Lima Barreto. Toda noite era noite de ver o bangue-bangue do agreste.

De ver Milton Ribeiro lustrar os anéis – um em cada dedo – na camisa, depois de uma estilosa bafada neles. De torcer por Alberto Ruschel. De morrer de amor por Marisa Prado. De morrer de raiva da Vanja Orico. Vi O Cangaceiro umas trinta vezes, teve gente que viu muito mais. Toda vez que o caixa do seu Loureiro fazia água, o filho dele Raul dizia:

– Papai, passe de novo O Cangaceiro!

Na condição de filho do dono do Olímpia, Raulzinho protagonizou um casamento cinematográfico. De uma dessas viagens ao Rio, para garantir o nosso estoque de emoções e gargalhadas – puxadas principalmente pela dupla Oscarito e Grande Otelo, mais José Lewgoy, Eliana, Anselmo Duarte e Ankito de Caroço –, voltou com uma noiva, uma coisa de cinema, tornando-se o homem mais invejado da cidade.

Alta, clara, cabelos fartos, negros e compridos, olhos imensos, decotes abissais nos vestidos geralmente de cetim negro, muito parecida com a Jessica Rabit e a Drag Car. Além de tudo, encarnava tudo aquilo que se entendia como espírito carioca.

Adorava promover seresta no sobrado deles. Os convidados exultavam. Cada qual se esmerava na cantoria. No fundo, todos a cantavam.

No meio de uma seresta lá, a hostess pediu que seu Uchoa, que tinha quase 1 metro e 90, tirasse uma mala de cima do guarda-roupa no quarto do casal, com fotos dela no Rio, para mostrar aos convidados.

Quando se viu a sós com Laura, o pau de seu Uchoa ganhou vida própria. Enquanto erguia os braços para pegar a mala, notou um volume que ameaçava explodir a braguilha. Além do que, a calça era folgada demais e a cueca samba-canção não oferecia a menor resistência.

Passou a suar profusamente, temendo que Laura percebesse e o tomasse por um sátiro. Chegou a imaginar Laura:

1. abrindo sôfrega os botões de sua braguilha e caindo de boca;

2. saindo aos berros, gritando: “Tarado! Tarado!”;

3. e perguntando: “Todo negro tem pau grande?”.

Mas tomou uma decisão radical: deixou a pesada mala desabar em seus pés, numa autêntica cena de Carlitos. Saiu dessa com um dedo fraturado, mas com uma bitoca agradecida de Laura. Pelo sim, pelo não, comparecia agora às serestas usando suporte atlético.

Papai tinha o dom de dar apelidos dos quais a pessoa jamais se livrava. Ele chamava a Ilka de Diabo Solto, esse apelido nunca vingou, mas a Ilka – filha do farmacêutico e caneógrafo Carlito – era isso.

Qualquer noção de mulher liberada, daquela categoria que uma antropóloga americana chama de vagina positiva, a mulher que comanda a foda, Ilka era o projeto dessa mulher. E nós éramos as cobaias dela.

Vendo-a ali, exercendo os dotes de pianista, num dos frequentes saraus que aconteciam na casa dela, entre a igreja matriz e a delegacia, ninguém poderia imaginar que, nas internas, fazia gato e sapato de gente.

Não admitia concorrência. Não havia outra menina nas peças teatrais que produzia num dos inúmeros quartos do megafúndio que era a casa dela. Essas peças, com várias sessões, terminavam com um invariável beijo na boca. Todos nós éramos contemplados com um. Aprendemos com ela esse negócio de beijo de língua.

Mas o babaca aqui acreditava que era só comigo aquele negócio de mergulhar no rio, se encontrar no fundo, se beijar até perder a respiração, se separar e voltar à tona sem ninguém perceber.

Se houvesse algum navio ancorado ao largo, a gente nadava em bando até ele. Subíamos nele e nos exibíamos em saltos para os turistas. Éramos todos seres aquáticos. Ninguém sabia ao certo quando tinha aprendido a nadar. Não tínhamos o menor respeito pelas distâncias.

Cada um testava o próprio fôlego – para todos os efeitos, isso me salvou: os médicos diagnosticaram aos 5 anos que eu tinha “coração de boi”, que viveria no máximo até 11 anos, daí a extrema liberdade que me davam, já que eu estava precocemente condenado.

Medo mesmo, só tínhamos de arraia e candiru, o peixe-vampiro que pegava o fluxo da urina e entrava no pau ou no cu – nenhum de nós usava calção frouxo por isso. E de arraia – arre, égual!: certas madrugadas acordávamos com o grito terrível de um pescador ferrado por ela ali na frente.

Então, se pudesse apostar numa mulher que daria certo, que ia fazer e acontecer, que faria o diabo a quatro com os homens, jogaria todas as fichas em Ilka.

Como nem eu nem ninguém podia tê-la, tentei me apaixonar por uma certa Marisa, parecidíssima com ela. Vinha todos os domingos, de mãos dadas com a menina, para a matinê do Olímpia.

Um dia, para chamar-lhe a atenção, tomei-lhe a frente no hall do cinema, fiz de conta que subia a escada para o mezanino, pulei o corrimão, mas acabei me estabacando aos seus pés.

Os esguichos de sangue que saíam da minha boca borrifaram em cheio o vestido imaculadamente branco e engomado dela. Marisa ficou com ódio de mim. Eu fiquei com os dentes da frente rachados para sempre.

Reencontrei Ilka em circunstâncias trágicas: os dois irmãos dela, Domingos e Carlinhos, meus amigos de infância, foram mortos um após outro, no bairro de Campo Grande, no Rio.

Soube algum tempo depois e fui visitar a família no apartamento dela ao lado do Othon Palace, em Copacabana.

É mesmo desconcertante rever um grande amor. Assim à primeira visita, não tinha mudado nada, só melhorado a performance do Criador. Glamorosa, tinha pleno domínio de toda a numerosa família que circulava ali.

Seu Carlito procurava carregar sua cruz com extraordinário bom humor. Apontou para duas mocinhas num sofá e mandou:

– Esses garotos são uns apressados, vão embora e deixam essas viúvas fresquinhas.

Ilka mesma me contou. Fora dali, não era ninguém Tinha adquirido durante esses anos a tal síndrome do pânico. Não dava um passo na rua.

– Não sou mais aquela – lamentou.

Tomara que tenha voltado a ser.

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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