Por Palmério Dória
Algum tempo depois mudamos para a Vila Letícia, assim que o inquilino saiu da casa de mamãe. Vovó Laura já tinha morrido. Uma pena, porque comecei a apreciar a velha em seus últimos momentos, além da estupefação que os pentelhos dela me provocavam.
A megera da 28 de Setembro não acompanhou essa mudança, e mamãe passou a fazer uma criteriosa seleção das empregadas: quanto mais feia, melhor. Mas eram todas jovens.
Foi um período muito singular. Acostumado ao corpo-a-corpo com a Ita, Iliaci, Ilka, primas – ainda não falei da Gilma, com os olhos rasgados de japa – e irmã, tornei-me um manjador juramentado.
Como não havia olho de fechadura, apreciava as empregadas tomando banho pela janelinha no alto do único banheiro da casa. Era um jogo muito interessante: elas faziam de conta que não sabiam. Assim, cada qual podia se masturbar com toda a tranquilidade.
Com pelo menos uma houve contato não digo de primeiro grau, mas pude sentir na palma da mão o que era a gostosura de um pentelho fofo.
Fui apurando essas técnicas de voyeurismo. No clima rígido do Colégio Suíço-Brasileiro, onde fiz o primário, não dava jogo. Mas no Ginásio Modelo tirei o atraso: através da abertura de uma telha num mocó que descobri, podia ver do alto as meninas fazendo xixi, encurtando as saias baixando a blusa para conferir os peitinhos.
Meu coração borbulhava. Uma vez até demais. Perdi o equilíbrio, a telha estalou, uma garota viu, gritou e correu pra contar na diretoria. Como eu era bom aluno, a diretora Cândida – da qual eu era peixinho – desconsiderou a travessura. E pude continuar a manjar os seios de Fátima Silva, ex-Rainha do Carnaval, cuja Cleópatra abalou Belém para sempre.
Fátima Silva dobrou os jurados do concurso, a maioria turistas estrangeiros, ao fazer-lhes uma reverência que deixou à mostra os saborosos melões. Eu lhe ensinava os pontos fracos, ela explorava o meu fraco: na casa dela não abotoava nunca o primeiro botão da blusa da escola, me deixando entrever o Paraíso durante as lições.
Se todos fossem iguais à diretora Cândida, essa santa mulher, não passaria pelo sufoco de anos antes. Uma cena de pugilato no pátio de recreio do Colégio do Carmo. De um lado, eu. Do outro, o padre-conselheiro. Eu sem a camisa de aluno salesiano. Ele com a batina bege arregaçada. O motivo: só nós dois é que sabíamos.
O rolo começou bem antes. O padre-conselheiro era confessor das irmãs do Colégio Dom Bosco, também salesianas, só para meninas, onde fiz minha primeira comunhão, ainda de calças curtas. No confessionário contei todas as minhas estripulias sexuais.
Mas, ajoelhado ali, notei que ele ficou especialmente incomodado com essas histórias, principalmente a da Ita. Pediu para eu repetir tudo, e me deu uma penitência absurda, perto dos míseros padre-nossos e ave-maria que deu para os outros.
Dali pra frente não deixava de me fuzilar com os olhos toda vez que cruzava comigo em sua Vespa, a caminho do Dom Bosco, a uma quadra de casa. Enfim, eu sabia por que ele me olhava assim.
Para ele, eu era a encarnação do demo. Eu pressentia que tinha um encontro marcado com ele nas profundas do inferno. E assim aconteceu.
Eu não usava mais calças curtas, já era rapazinho quando entrei no Colégio do Carmo, só para homens, no bairro da Cidade Velha, uma versão de Lisboa em Belém. Era ele quem fazia a chamada das turmas no pátio do recreio para a entrada nas salas de aula.
Ficava num tablado, com a batina sebenta e os óculos fundo de garrafa com aros de metal. Ostensivamente, meia dúzia de vezes olhou para mim e disse:
– Tu não. Tu esperas.
Eu esperava pacientemente todo mundo entrar, ali isolado no pátio de areia. Quando não tinha mais ninguém, ele me liberava. Era uma situação absolutamente insustentável.
Meus colegas perguntavam qual era a dele comigo, mas eu não podia dizer. Como Gary Cooper em Matar ou Morrer, cheguei naquele dia disposto a encerrar a questão. Em vez de entrar na sala gritei:
– Desce dessa porra e vem cá, filho da puta!
Ele veio arregaçando a manga, eu tirei a blusa e o pau comeu, para delírio de toda a galera, que saía das salas para assistir ao espetáculo no pátio central, a gente rolando aos sopapos na areia. Não demorou muito para que os outros padres, esses de batina negra, apartassem.
Lá estava eu de novo na sala de um padre-diretor por alguns crimes de amor. Claro que ele queria saber a razão da briga. O padre-conselheiro se fechou em copas. Mas eu sabia que, se ficasse calado, o meu destino era a expulsão. Abri:
– Ele tá me fazendo chantagem com uma coisa que eu contei na confissão.
O padre-diretor, um francês com sotaque carregado, arregalou os olhos, perguntou para o padre-conselheiro se era verdade, mas ele continuou calado. Então resolveu me dispensar:
– Tira essa areia do corpo e vai pra aula.
Bem, esse padre-conselheiro não regulava mesmo. Alguns anos depois, ateou fogo na roupa e morreu numa cela do Hospício Juliano Moreira.
Nessa altura do campeonato, numa manhã de domingo qualquer, fui com meu irmão ao campo de futebol do Colégio Nazaré, dos irmãos maristas. Ele já batia uma boa bola no gol. Eu nunca tinha sido apresentado a uma trave.
Nessa amanhã me apresentei. E fui descobrindo insuspeitada facilidade para agarrar as bolas que iam mandando para o gol. Com a descoberta dessa habilidade ganhei passaporte para entrar na turma do meu irmão. E também ganhei um outro status no Colégio do Carmo, onde os campeonatos internos pegavam fogo.
Quando alguém bateu que o Remo estava formando um time infantil, me mandei pra lá com aquela coragem dos bêbados e das crianças. Aceito pelo técnico Zuru, treinava futebol quase todas as tardes e, de noite, ia treinar futebol de salão na sede social do sofisticado clube construído num duvidoso estilo funcional, então considerado o má-xi-mo.
Algum tempo depois, havia duas equipes entrosadas, a branca e a azul, que faziam algumas preliminares do Remo. Foi nesse time que pintou Manuel Maria, que um dia jogaria ao lado do Pelé na ponta-direita do Santos. Naquele tempo era centroavante.
De vez em quando pipocava nos jornais uma matéria sobre o filho do goleiro dos 7 a 0 jogando no Remo: “Filho de peixe, peixinho é”. E comecei a participar da vida social do clube, onde a célebre Eneida, paraense exilada no Rio, promovia todos os anos a nossa versão do Baile do Pierrô.
Num desses bailes de Carnaval, paquerei no salão uma menina com corpinho apetitoso. O rosto dela coberto por um capuz, o meu também. Demos mil voltas, abraçados no salão. No fim do baile, tiramos os capuzes. Ufa!
O rosto dela também era uma belezinha. E melhor ainda: era a garota que eu via ao sair dos treinos no portão de uma casa modernosa ao lado do estádio do Remo. Namoro instantâneo, tipo Nescau, sabe?
Namorinho de portão, biscoito, café. Jamais nos encontramos fora dali. Mas naquela hora, entre 6 e 7, era a coisa mais importante do mundo. De mãos dadas com uma garota delicada, cheirosa, mimosa, a própria imagem da tranquilidade. Agora eu podia dizer que tinha uma namorada. Era impossível não pensar na Sônia como a esposa ideal.
Alguém sempre dava um jeito de lembrar que ela era sobrinha do governador Aurélio do Carmo, quadro do PSD, que seria defenestrado do poder pelos militares em 1964 – o folclore sobre a vida dele me interessava muito: diziam que entornava bonito, que dançava até altas horas na Maloca, boate parecida com uma taba indígena, na Praça da República, na companhia do prefeito Moura Carvalho, igualmente boêmio, a quem atribuíam um caso com a divina Elizeth Cardoso.
Pelas frestas dos bambus, a gente às vezes olhava o movimento dentro da Maloca. Por elas, muitos viram o casal mais inteligente do mundo – Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir – conversando alegremente, bicando caipirinha. Eles estavam hospedados no Grande Hotel, em frente à praça. Na companhia deles, o jornalista Floriano Jayme.
Todos davam gargalhadas com a mentira que o Floriano Jayme inventara um tempo atrás, no dia 1º de abril, sobre a morte do próprio Jean-Paul Sartre, “atropelado em Belém”. A Tribuna da Imprensa, de Carlos Lacerda, abriu manchete. E a notícia correu o mundo.
Floriano trabalhava no Correio da Manhã, do Rio, e estava na cidade para cobrir a captura de um francês procurado internacionalmente. Sem muito que fazer, passou um telegrama com a lorota para o escritor José Condé, diretor literário do Correio da Manhã e do Jornal de Letras, no Dia da Mentira, que só chegou dois dias depois.
José Condé levou a coisa a sério, ligou para Lacerda, dono da Tribuna que mudou a manchete e deu o “furo” em oito colunas.
As agências noticiosas repassaram a bomba para o mundo inteiro. Uma delas ligou para Belém, em busca de maiores detalhes, e o chefe de reportagem disse que o pessoal estava na rua, colhendo detalhes, o que confirmava na notícia.
O próprio Sartre desmentiria a morte dele, vivíssimo, na Côte d’Azur, no mesmo dia, às 11 horas da noite.
Ali na Maloca, Sartre estava contando a Floriano que tinha adorado a história toda, que acabaria entrando no quarto volume das memórias de Simone de Beauvoir.
Sônia não era de falar muito. Aliás, não era de falar nada. Mesmo para me dar um pé na bunda, usou a chamada expressão corporal. Um tranco no peito. Mas senti que não havia apelação. O encanto tinha acabado, e pronto.
Evitava sair pelo lado da casa dela, para não vê-la. Voltei a ver muitos anos depois, de férias em Belém, nos jornais: ela matara o marido adúltero despejando-lhe no ouvido uma chaleira de água fervente.
Diz que ele fez, aconteceu, aprontou, ela na dela, até cozinhar os miolos do cara. Deixou que ele dormisse numa boa, depois de uma farra, esquentou a água, deixou ferver na maior tranquilidade, e pimba!
Deu o que pensar: durante alguns segundos me coloquei no lugar dele.