Boca do Inferno

É nesse lugar (ou ainda sobre a pobreza da linguagem)

Postado por Simão Pessoa

Por Edu Goldenberg

Semana passada debrucei-me sobre o detestável uso que se vem fazendo da palavra experiência.

Num desses finais de tarde, encostei no balcão do Labuta, fabuloso botequim na rua do Senado, e o Brenner, uma das revelações descobertas por Lucio Vieira, sócio do Império Labuta (Lilia, Labuta Bar, Labuta Mar e Braseiro Labuta, por enquanto), chegou-se pra perto.

Foi discreto:

– Concordo contigo em tudo aquilo que você fala sobre esses vícios de linguagem… experiência, é sobre isso, é nesse lugar, escuta, potência… – e deu de enumerar o tanto de coisa que critico.

Dizia eu ao Brenner que atribuo isso não à evolução, à modificação ou à condição de viva da Língua Portuguesa, como pretendem alguns obtusos, mas à obtusidade mesmo. Ninguém mais lê nada.

Um cidadão escreve (mal) três parágrafos no Hospício Azul (é como chamo o Facebook, pra quem tá chegando agora) e antes faz o alerta (igualmente detestável porque repetido à exaustão pela manada de obtusos, e estou repetindo de propósito): senta que lá vem textão.

Textão!

O sujeito acha que é “textão” um apanhado de palavras mal escritas que compõem três parágrafos. Esse mesmo sujeito diria o quê diante de Guerra e paz, de Tolstói?

Mas enfim, estou divagando e quero me dedicar, hoje, ao uso desmedido dessa expressão (?!) é nesse lugar.

Estive recentemente em uma reunião (e aqui não interessa qual).

A expositora estava lá, diante da pequena plateia, falando já há uma meia hora, até que disse (valendo-se o tempo todo dessas expressões esquisitas):

– Vou abrir um espaço de escuta para as questões que vocês vão me trazer para que a nossa troca ganhe potência.

Pensei na hora que seria mais fácil ter dito apenas “alguém tem alguma pergunta?”, mas fiquei quieto.

Alguém, no final:

– Gostaria apenas de agradecer pela clareza de sua exposição.

A expositora, com pose de yoga:

– É nesse lugar! – e esse nesse dito bem lentamente, com ênfase na primeira sílaba, bem tônica.

Uma outra senhora levantou a mão:

– Quero só dizer que pra mim foi muito importante ouvi-la, eu me identifiquei.

A expositora, unindo as palmas das mãos:

– É nesse lugar!

A senhora:

– Juntas somos mais potentes!

– É nesse lugar!

Na sequência, olhou pra mim e disse:

– Tem algo a dizer, Edu?

– Não, nada, obrigado.

Respirou fundo e disse:

– Ô, Edu… é nesse lugar!

Olhei pro relógio, inventei uma desculpa qualquer e saí.

Na última postagem, falei também sobre as novas cafeterias.

Disse-lhes, na ocasião, que quem é mais velho conhece o Café Gaúcho, no Centro do Rio, a Lolló, em Copacabana ou o Palheta, na Tijuca. Três cafeterias tradicionalíssimas, com balcões imponentes, onde se serve o cafezinho que o brasileiro tanto gosta.

Você chega, compra ficha – o método é o mesmo nas três – e pede o seu café, que é servido em questão de segundos.

Estão em extinção – expliquei lá.

Você entra no Café Gaúcho, na Lolló ou no Palheta e você sente, de pronto, o cheiro de talco (velhos adoram talco). A idade média dos freqüentadores é acima de 70 anos. Há uma paisagem predominante de bengalas, andadores, muletas, enfermeiras e enfermeiros, acompanhantes, o tilintar incessante das colherinhas nos pires, as mãos trêmulas mexendo o café e o açúcar, o café e o adoçante, por aí.

Nas novas cafeterias, não, as novas cafeterias são diferentes.

Uma das mais evidentes diferenças é: se você pedir açúcar ou adoçante, esteja certo, você receberá olhares de reprovação, expressões de nojo, olhares com evidente tom de superioridade, como os que nos lançam os argentinos (e os analisados, os que têm psicanalista).

Uma simples pergunta – onde está o açúcar? – e você é apontado como se fosse um serial killer. A assistência te vaia e você é quase enxotado da cafeteria como se fora um rato.

Outra coisa específica me chama muito à atenção: todos e todas que frequentam as novas cafeterias têm piercing. Não um, não dois. Muitos.

Eu, por exemplo, que gosto de dar meus pulos em busca de bons cafés, sinto-me nu, pelado, quase um índio diante da assistência das novas cafeterias. Argolas no nariz, tachinhas nas orelhas, nos lábios, um festival, praticamente uma vitrine de joalheria.

Era, por ora, o que eu queria lhes contar.

Curitiba está entre as cidades mais mal faladas da paróquia – falo por experiência própria. O que é, eis o que que quero lhes dizer, absolutamente injusto. Curitiba é adorável.

Permitam-me aqui uma breve digressão.

Meu queridíssimo amigo Luiz Antônio Simas, em entrevista para a revista Piauí, disse (muito generosamente) a meu respeito: “Edu é sensacional em construir os seus mitos, que lhe dão certo conforto.”.

Não quero aqui, embora eu seja um pavão confesso, jogar confetes sobre mim mesmo – mas como tenho lhes dito reiteradas vezes, ando apaixonado por mim.

Mas fato é que um dos meus poucos talentos está em reconhecer, sem necessidade de muito tempo, meus lugares, meus afetos, minha aldeia.

E assim como já faço de Copacabana (onde moro desde janeiro) minha Tijuca com maresia, um bairro que desde sempre me arrebatou, faço de Curitiba também minha cidade.

Tenho, lá, diversos amigas e amigas que amealhei ao longo de mais de 10 anos – desde o tempo em que começamos a namorar, eu e Morena, que lá morava quando eu a conheci.

Não vou aqui enumerá-los já que sou um homem de sorte e eles são muitos.

Mas quero lhes falar de um bar que conheci na minha última visita à cidade, neste último final de semana – que foi atípico e bastante emocionante.

Era, afinal, minha primeira viagem sozinho com Leonel – e justamente para a cidade em que vivera, por tantos anos, sua mãe.

Pedi a um amigo – profundo conhecedor da matéria – que me desse dica de alguns lugares para beber bem em Curitiba. Ele me indicou três bares – fui aos três e todos os três muito bons.

Mas foi em um deles – no Ponto Gin (da foto lá em cima) – que deu-se a mágica.

O primeiro a me atender – cheguei no sábado por volta das cinco da tarde e ancorei-me no balcão – foi o Timóteo. Depois, o Rafael (é ele quem aparece na foto) – com quem, já animado pelos primeiros drinks, fui mais a fundo na conversa. Caiury, no salão, participava do papo e não deixava a peteca cair. Até que chegou Gabriel Bueno, o bartender que assina a carta da casa (em que também trabalhou Vinícius Kodama, hoje no Bossa, em Londres).

Eu já navegava em mares de muita emoção quando ele chegou.

O sempre generoso Fred Sabag, de São Paulo, acompanhando a saga pelo Instagram, deu um jeito de me oferecer uns drinks – bonito, né?

Caí na asneira de pedir pra tocar Aldir Blanc – e me acabei de chorar contando histórias do maior de todos, falando dos amores que eu tive, de futebol, do Leonel, dos meus casamentos, da primeira mulher que está viva mas morreu, da segunda que morreu mas que está viva e da terceira, a que permanecerá viva para sempre, das maiores alegrias, das decepções, das surpresas que a vida prega. É pra isso, aliás, que se presta um balcão de respeito – seja num pé-sujo vagabundo ou num bar como o Ponto Gin.

Até o momento em que precisei ir embora, foi esse o tom da tarde e do começo da noite.

No dia seguinte, ainda comovido com o que lá se passara (e com uma ponta de vergonha por conta do espetáculo de lágrimas que inundaram o ambiente), mandei mensagem agradecendo ao Gabriel.

E ele, hiperbólico (como eu gosto!), mandou-me a seguinte mensagem:

“Meu irmão! Fiquei na correria com as crianças fazendo almoço e acabei não conseguindo responder antes, foi de verdade um prazer imenso conhecer você, ouvir suas histórias e trocar experiências! Você fez meu dia ontem e a noite foi leve após compartilhar toda essa energia incrível que você tem! Obrigado por proporcionar uma experiência maravilhosa pra todos nós, você contagiou todo o ambiente e deixou todos mais confortáveis e lembrou a todos nós a essência do nosso trabalho, a hospitalidade! Saiba que você tem um grande amigo em Curitiba, e que estarei esperando as próximas visitas! E com toda certeza quando estiver no Rio, te mandarei mensagem. Um feliz dia dos pais! Aproveite muito o seu dia com o pequeno Leonel, um grande abraço, meu amigo ♥️”

É ou não é um dos meus lugares na capital paranaense?

É.

E lá estarei de novo no último final de semana de setembro.

Ancorado, é claro, no balcão do Ponto Gin.

Ao contrário do saudoso Luiz Melodia, eu não entendo a juventude.

Dia desses eu estava trocando mensagens com um colega de trabalho, um dileto novo amigo, um jovem, quando fui interrompido:

Voce pontua todas suas msgs?

Notem (estou transcrevendo com fidelidade canina, a pergunta) que voce foi escrito sem acento, que falou o artigo entre todas e suas e mensagens (tive de adivinhar) virou msgs.

Respondi que não havia entendido a pergunta.

Ele, lacônico (jovens são lacônicos):

Ponto final
Nas msgs todas

Percebam: o jovem estava me criticando, me julgando, por usar a pontuação correta. Quando perguntei se isso – escrever e pontuar corretamente – fazia de mim um criminoso, ele sentenciou:

Talvez
É um pouco estranho

Eu tento, muito por conta do Leonel, que tem 5 anos – sou uma múmia de 54 – acompanhar a evolução do mundo, dos modos, das modas, das pessoas. Mas por vezes é, confesso, muito difícil.

Meu amigo – o jovem – é jornalista. Brilhante jornalista. Lê, sei que lê, muito. A despeito disso agrediu-me porque faço bom uso da Língua Portuguesa. E não soube me explicar o porquê do seu estranhamento.

Seguirei, entretanto, tentando entender o fascinante mundo dos jovens.

Mesmo que concorde com Nelson Rodrigues na hora do conselho a eles: envelheçam!

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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