Boca do Inferno

Marcelo Dolabela, um dadaísta nas Alterosas

Postado por Simão Pessoa

Por Simão Pessoa

Se estivesse vivo, o poeta, professor universitário, pesquisador, artista multimídia, roteirista e músico mineiro (ou maneiro?) Marcelo Dolabela teria feito 66 anos no último dia 17 de setembro. Mas, infelizmente, ele furou a fila e faleceu no dia 18 de janeiro de 2020, em Belo Horizonte, em decorrência de complicações de um AVC, que lhe acometera há mais de um ano.

Seu corpo foi velado na Casa do Jornalista da capital mineira. A seu pedido, o ato fúnebre foi celebrado com muita poesia, música e cerveja. Seus poemas foram ali declamados por amigos e poetas em uma homenagem que gerou muita emoção. Ele foi enterrado em Lajinha, sua cidade natal.

Graças ao livreto “A Produção Independente na Literatura – Catálogo para o Movimento”, do poeta paulista Raul Christiano Sanchez, publicado em 1982, onde estavam listados os endereços de mais de 400 “poetas marginais”, eu e Marcelo Dolabela trocamos uma intensa correspondência durante 12 anos (1983-1995), em que eu lhe enviava meus livros e os de outros poetas locais, e ele fazia o mesmo.

Era o auge da chamada “geração mimeógrafo”, iniciada por Chacal, Charles, Ronaldo Santos e Bernardo Vilhena, no Rio de Janeiro, nos anos 70. O fato de eu e Marcelo Dolabela nunca termos nos conhecido pessoalmente era o de menos, na medida em que compartilhávamos o mesmo interesse por dadaísmo, poesia concreta, beatniks, rock & roll, poesia visual, imprensa alternativa, poema-processo, quadrinhos, anarquismo, black music, poesia marginal, tropicalismo, cinema underground, artimanhas, biritas, polêmicas e mulheres.

Além disso, nós pertencíamos à segunda dentição da “RAP” (“Rede Alternativa de Poesia”, termo cunhado pelo poeta amazonense Zemaria Pinto), uma fantástica network que cobria todos os estados da federação numa época em que internet ainda era ficção científica e nosso provedor era a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (EBCT). Bons tempos, zifio, bons tempos!

Filho de Maria das Dores Gomes Dolabela (“Dona Dorinha”) e de Seu Renê Dolabela, Marcelo teve mais sete irmãos: Rubens, Marcos, Regina, Maria Hilda, Marconi, Maria Fâni e Marlon. Ainda adolescente, ele se mudou de Lajinha, localizada na região do Caparaó, divisa com o Espírito Santo, para cursar o segundo grau no internato de Presidente Soares, hoje Alto Jequitibá (MG), ao pé do Pico da Bandeira, a 60 km da terra natal, mas nunca deixou de frequentar Lajinha, onde, nos últimos anos, também construíra uma casa.

Marcelo finalizou o secundário em Belo Horizonte e se formou em Letras pela UFMG, em 1984, onde também fez pós-graduação defendendo uma tese sobre Dolores Duran. Alguns anos depois, fez mestrado em Comunicação Social pela Universidade São Marcos (SP), com uma dissertação intitulada “A Poesia do Slogan”. Professor de Comunicação Social no Centro Universitário de Belo Horizonte, entre os anos de 1992 e 2009, ele chegou a iniciar o doutorado em Estudos Literários pela UFMG, mas desligou-se do programa.

Ativista do grupo anarco-poético Cemflores, Marcelo é autor de mais de 60 livros e livretos – solos ou em parcerias, entre eles “Adeus, América”, “Violência”, “Gatilho”, “Através das paredes”, “Arte, suor, souvenir”, “Coração malasarte”, “Lúdicos do inferno”, “Alimento”, “Gata presença”, “Mandarins sem fantasias”, “Radicais”, “Grão”, “Amônia” e “Poeminha e outros poemas”.

Foi também autor do texto do curta-metragem “Uakti – oficina instrumental”, premiado como “Melhor Curta” e “Melhor Montagem”, no Festival de Gramado de 1987, co-editor da revista Fahrenheit 451 e da equipe de articulistas da revista Fanzine Gass, e produtor e apresentador do programa “Rock Molotov”, levado ao ar pela Rádio Liberdade, de Belo Horizonte.

Em 1987, publicou o hoje clássico “ABZ do Rock Brasileiro”, pela editora paulista Estrela do Sul, que teve prefácios escritos por Arnaldo Antunes, Zé Rodrix e Tony Campello. O livro se tornou a principal referência enciclopédica para o rock brasileiro até a década de 2000, quando a internet se popularizou, sendo ainda hoje muito citado em trabalhos acadêmicos.

Marcelo Dolabela iniciou a sua carreira musical como letrista e vocalista, em Belo Horizonte, em 1982, com o grupo mineiro de pós-punk Sexo Explícito, integrado por Rubinho Troll (voz), Roberto Nosso (guitarra), João Daniel (guitarra), Marompas (baixo) e Rogério (bateria).

Em 1984, o grupo se dissolveu e Marcelo formou a banda Divergência Socialista, ao lado de Gato Jair (voz), Fabiane Andropov (voz), John Ulhoa (baixo) e Rubinho Troll (bateria), cuja sonoridade musical sofria influências que iam do “positive-punk” ao minimalismo de John Cage. Com essa formação, eles gravaram uma fita K-7 pelo selo independente Onda.

Três anos depois, com algumas modificações no núcleo inicial – saíram Fabiane Andropov, Gato Jair e John Ulhoa, substituídos por Silma (voz) e Marompas (baixo) –, o Divergência Socialista lançou outra fita, pelo selo independente Câmbio Negro Produções.

O grupo encerrou as atividades no início dos anos 90, mas Marcelo continuou na ativa com as bandas Mad Marx e Caveira, My Friend.

Alguns anos depois, o guitarrista John Ulhoa juntou-se a Fernandinha Takai e montou o Pato Fu. “A gente meio que orbitava em torno do Marcelo. É mestre de muitos outros, de outras gerações”, publicou Ulhoa em uma rede social, quando soube do falecimento do amigo.

Os álbuns/fitas K-7 “Christiane Keller” (1986) e “Lilith Lunaire” (1990) são de histórica importância na cena do rock belo-horizontino e forneceram corda e caçamba para as bandas que vieram depois (Skank, Sepultura, Jota Quest, Pato Fu, Lagum, etc).

Aliás, foi o Marcelo Dolabela que me enviou a primeira fita K-7 do Pato Fu (a “Pato Fu Demo” – eles juram que o trocadilho não foi intencional), de 1992, e, alguns anos depois, em 1995, outra fita K-7, que era uma cópia do álbum ““Rotomusic de Liquidificapum”, de 1993, e o novo disco da banda (“Gol de quem?”), com os detalhes de uma futura apresentação do Pato Fu em Nova York.

Na época, eu era editor de Cultura do jornal “Amazonas em Tempo” e resolvi colocar a banda mineira na primeira página do “Arte Final”, nome do nosso suplemento de cultura. Deu um bode federal. Falo sobre isso outro dia.

Para quem se interessar pela poesia de Marcelo Dolabela, basta clicar aqui, que vai entrar no site do saudoso poeta e conferir suas obras completas, muitas das quais podem ser baixadas em PDF. Eu recomendo.

Por último, deixo aqui uma pequena mostra do seu trabalho poético:

AUTOEXPLICATIVO

Eu, por exemplo, o radical do traço, Marcelo Dolabela, poeta e dadamídia, o pop mais dadá de Beagá, na linha direta de Rimbaud,
Saravá!
a benção Lígia Clark,
a nossa Modrian da Alegria,
terra de Hendrix de João Gilberto,
a benção Oswald de Andrade,
tu que gritaste com humor todas minhas mágoas de amor,
a benção, Bashô,
a benção Tzara,
a benção Ezra Mallarmé,
sua benção, Hélio Oiticica (Meu irmão!…)
a benção Wladimir Maiakóvski,
a benção, Safo Ono,
a benção meus maus Glauber Sganzela,
vocês, sobrinhos de Vortov,
a benção, Tarsila Crepax,
sua benção Lewis Warhol,
a benção, todos os grandes tropicalistas do planeta,
pop, dadá e antropófago,
lindos como os olhos moles de Pagu,
a benção maestro Luciano Klhiébnikov,
parceiro e amigo querido,
que já viajaste tantas revoluções comigo
e ainda há tantas a viajar,
a benção, Beüys Lichtenstein, parceiro cem por cento,
você que une a ação ao sentimento e ao pensamento,
a benção, Baden & Vinícius,
amigos novos, parceiros novos,
que fizeram este samba comigo, a benção, amigo,
a benção Maestro Walter Benjamim, que não és um só,
és tantos, tantos como meu fuzil de todos os sins,
inclusive o de Guimarães Joyce,
saravá!
a benção, que eu vou partir,
eu vou ter que dizer a Zeus…

HADESKAIS (1)

o poeta tem no sangue
a sífilis de sua geração
e não há fuga, nenhuma paixão,
que o tirará deste mangue.

sempre irá no seu galope
este castigo infeliz:
se curar-se dessa sífilis,
só fabricará xarope.

HADESKAIS (2)

bater a cabeça nesse martelo,
eis o vil duelo da poesia:
quanto mais se erguer glória e castelo
mais farelo soprará a ventania.

HADESKAIS (3)

na loucura, a veia
da poesia sempre pula;
o que não for carne
nem for osso, será medula.

SAUVE QUI PEUT – LA POÉSIE

sim, eu disse estas palavras
essa palavra, naquele outono de 1977
e todos os invernos passei ao seu lado
idéia: babel & babylon
& não vendi poesia no templo.

sim denise rimbaud numa janela
crime onde os heróis não morrem
desastre paul godard: idéia
que eu disse

monge-zen: bom e mau
não há mal em te querer bem
olhar (que eu não te vi)
idéia idéia idéia idéia idéia
mesmo que dizem que são palavras

naquele outono de 1977
sim, eu disse sim

GRAFITE (1)

abaixo a carestia
chega de comer angú
stia e solidão

GRAFITE (2)

tudo muito chato.
tudo muito arte.

P.L. (n.º 3)

o poeta concreto
discute com o poeta
do poema/processo
qual deles é capaz de apanhar
do poeta marginal

enquanto isso o poeta marginal
tira mimeógrafo do nariz.

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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