Boca do Inferno

Michel, Rafael, comentários sobre racismo e um pouquinho de cinema

Postado por Simão Pessoa

Por Rafael Galvão

Michel e Rafael — não, apesar do que parece não se trata de uma dupla sertaneja — deixaram comentários ao post sobre Lobato e Dahl. O mais elogioso diz que o texto é péssimo. O mais arrogante e redundante me manda fazer terapia. Vamos às críticas:

Rafael says: Que texto péssimo, uma breve pesquisa aprofundada sobre o tema chegaria à conclusão de que esse debate é muito mais mercadologico do que acadêmico. De modo geral a opinião da academia, com exceções, como tudo na vida, é que a as alterações são negativas e inclusive mascaram índices e indícios de modos de agir de outras épocas.
A premissa de alteração vem do mercado na tentativa de campanhas de marketing que pretendem adaptar livros a demanda do público.
Em suma, o texto diz mais sobre você do que sobre o tema a que se propõe debater.

Michel says: Fato 1: Os livros do Monteiro Lobato eram adotados por escolas para leitura de crianças de oito anos de idade. Fato 2: Crianças pretas frequentam escolas também, embora isso cause grande surpresa e ojeriza.
Fato 3: Há tratamento inequivocamente racista de um dos personagens mais importantes das histórias.
Não acho que dizer “que se danem as crianças” seja algo responsável.
Ninguém vai me convencer que o protagonista da história não traz em si um peso moral sobre o que a obra quer transmitir como correto e nem que uma criança de oito anos tenha condição de lidar com o constrangimento. Sabemos como crianças são cruéis. Não há como monitorá-las 100% do tempo.
A alegação de censura é falsa. Os livros estão e sempre estarão disponíveis na forma integral também.
Então tudo que se quer é a defesa do “purismo” do livro num nível altíssimo. Se tirarmos 3 expressões de um livro de 100 páginas, pronto, não é mais a grande arte. Quem pensa assim não pode ler sequer uma tradução na vida, estará preso para sempre aos limites das línguas que consegui aprender.
O lance do “aberto o precedente” é a velha falácia do slippery slope, queridinha dos conservadores: “Olha, a maconha é a porta de entrada para outras drogas!”
Também notei o ataque à academia… Esse tipo de frustração a gente resolve na terapia.

Eu estava com saudades das críticas. Bons tempos, aqueles.

O que mais chama a atenção é que os dois comentários apelam no final para os ataques que na faculdade a gente aprendia serem ad hominem.

O xará diz que o post diz mais sobre mim do que sobre o tema — o que é uma bobagem, já que todo texto diz mais ou menos sobre seu autor, já a partir da escolha do tema; o que o Rafael do B é incapaz de perceber é que seu comentário diz ainda mais dele. Já o Michel exagera no desprezo e diz que preciso de terapia. Devo precisar, é verdade; mas não por isso.

Esses comentários, suando a superioridade moral normalmente dada por alguns anos na universidade e a perspectiva de uma vida em seus corredores, mostra que são garotos — o nome Rafael, por exemplo, só se tornou comum no início dos anos 80 —, deslumbrados com o ambiente acadêmico. Só isso para explicar o apelo a argumentos inconsistentes ou repetitivos que tentam transformar tudo em um diálogo de surdos, e principalmente a revolta pessoal. O Michel, por exemplo, basicamente repete os argumentos que o texto citava, e até contradiz o Rafael ao insistir nas justificativas para o que ele diz não ser censura, logo depois de preparar o terreno dizendo que não dá para monitorar crianças todo o tempo.

Responder a eles é chover no molhado e inútil.

Quem poderia apresentar o vislumbre de uma perspectiva diferente é o Rafael, ao afirmar que o debate é mais de mercado do que acadêmico. O problema é que ele diz que “a premissa de alteração vem do mercado na tentativa de campanhas de marketing que pretendem adaptar livros a demanda do público” — poxa, ele nem sequer sabe como essa discussão começou?

Nunca houve demanda do público por um Monteiro Lobato menos racista; o que houve foi a pressão acadêmica, e a consequente espiral de teses e artigos e outras bobagens mais, a partir do momento em que o MEC anunciou a compra de “Caçadas de Pedrinho”, uns 15 anos atrás.

O xará nega que isso exista, essa discussão e respaldo acadêmicos sobre a validade da purgação dos textos de Lobato. E aí é que complica.

Faz o seguinte: joga “monteiro lobato racismo teses” no Google pra ver o tanto de discussões nas universidades sobre o assunto. Adianto que são aproximadamente 138 mil resultados.

Essa discussão, nesses termos que os meninos colocaram, não leva a nada, claro. Mas me lembram a última vez que estudantes desceram o chicote no meu lombo. Esqueci de escrever aqui.

Tempos atrás, escrevi um post detalhando o curso de cinema que eu faria, no lugar desses cursos atuais que, essencialmente, formam mais professores que retroalimentam as universidades e mais motoristas de aplicativo. O texto partia da grade curricular do curso de cinema da UFF — que por sinal foi declarado patrimônio imaterial de Niterói, cidade muito do meu agrado e que agora tem dois patrimônios: esse e a vista do Rio.

O Vespa, do excelente Inconsistências Inconstantes, na época ensinava num curso técnico de audiovisual. Ele levou o post a seus alunos e depois me mostrou os comentários.

A revolta foi semelhante — não, semelhante não, foi bem mais agressiva. O argumento mais leve foi o de que ninguém teria autoridade para criticar um curso a partir da observação de sua grade curricular — mais um exemplo do nível de encastelamento da universidade brasileira, a persistência do bacharelismo que a afasta cada vez mais da sociedade e que resultou em cursos como “Ciências da Religião”, um bocadão de “sub-engenharias” e até mesmo um curso livre sobre Beatles na PUC (que apenas atualiza, para mim, o ditado que diz que todo dia um malandro e um otário saem de casa — agora eles se encontram no curso sobre Beatles na PUC).

De resto, os xingamentos foram grandes. Acima de tudo, os alunos deixaram claro que, para eles, ainda mais interessante do que a perspectiva de fazer cinema é a perspectiva de um emprego, perpetuando o ciclo da piada do sujeito que estudou egiptologia.

É a mesma lógica defensiva e ultrajada que motivou os comentários do Michel e do Rafael. E o mais engraçado é que há algo de reconfortante nisso. Entra ano, sai ano, as coisas continuam iguais. E isso não é tão ruim assim.

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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