Por Tatiana Dias
Pode fazer o teste: vá ao Google e pesquise pela imagem de um “hacker”. Vão aparecer fotos sombrias, homens (sempre um) no computador com seus moletons, toucas, rosto vidrado na tela cheia de códigos indecifráveis. Uma figura misteriosa, tão interessante quanto incompreensível, que volta e meia retorna aos noticiários quando surge um ataque.
Desta vez foi a Janja. A primeira-dama Rosângela Lula da Silva teve o seu perfil no X invadido na noite de segunda-feira. Seus mais de 1 milhão de seguidores passaram a receber mensagens que foram rapidamente de “EU APOIO O MENSALÃO” a “sou uma vagabunda estuprada” e “o Lula é um vagabundo, eu traio ele com o Neymar”.
O teor abertamente misógino das postagens, assim como a ‘nota’ antipolítica juvenil que o suposto ‘hacker’ postou no perfil, já deixou claro de quem se tratava. Aquilo ali está longe, muito longe, de um ataque hacker. As investigações preliminares da PF já mostraram que partiu de uma subcomunidade no Discord e envolveu adolescentes e jovens que, pela zoeira, espalham discurso de ódio por aí. As vítimas, obviamente, são sempre mulheres, pessoas negras, LGBTQIA+ e por aí vai.
“Todo o teor do conteúdo deixa bem claro que o autor é parte dessa subcultura dos masculinistas. É equívoco esse negócio do ‘hacker’. Eu nomearia ele como um troll misógino. Que também é muito típico desse subgrupo”, me disse Juliana Cunha, psicóloga e diretora da ONG Safernet.
Uma reportagem do jornal O Globo mostrou que um dos envolvidos, de 25 anos, é um músico – se é que dá para chamar assim – com selo de verificação no Spotify e 4 mil ouvintes mensais. Suas músicas, disponíveis na plataforma até o contato da reportagem, têm nomes como “mulher gosta de porrada” e “ariano”.
Ao que parece, a invasão aconteceu do jeito mais simples possível: com uma senha fraca, encontrada em fóruns que vendem ilegalmente informações vazadas. Funciona assim: toda vez em que um sistema é invadido e informações como logins, e-mails e senhas são vazados, esses dados são copiados e vendidos por aí, em um mercado de difícil controle.
O jeito de se proteger disso é usando alterando periodicamente, não repetindo as mesmas senhas e monitorando seus logins com frequência em serviços como o Have I Been Pwned, que informam se suas informações apareceram em uma dessas bases vazadas. (Caso isso tenha acontecido, é preciso trocar as senhas imediatamente, assim como de outras redes sociais e serviços que eventualmente tenham os mesmos logins.)
Aparentemente, foi exatamente isso o que aconteceu na conta de Janja. Descobriram uma senha vazada e conseguiram entrar no e-mail dela. Então, conseguiram também as credenciais do X e, com a autenticação de dois fatores no e-mail, conseguiram invadir a conta. Usaram engenharia social com uso de dados vendidos e espalhados ilegalmente na internet. Muitos usaram o caso para explicitar o despreparo do governo em relação à segurança digital, assim como a falta de cuidado de Janja por deixar sua conta vulnerável ao que chamaram de “ataque hacker”.
Hacker é, por definição, quem se dedica a entender e estudar os sistemas e códigos para transformá-los. Descobrir como funciona um programa e modificá-lo – para bem, adicionando novas funcionalidades ou mesmo abrindo códigos e divulgando informações de interesse público, ou para o mal, destruindo-o ou prejudicando os usuários, por exemplo. Puristas defendem que a terminologia utilizada para esses segundos deveria ser “cracker”.
Nenhum desses casos, no entanto, se aplica aos criminosos misóginos que invadiram a conta da Janja. A forma como a notícia é dada importa: faz parte desse tipo de subcultura na internet a divulgação, o medo que essas ações causam, a glória de seus executores. “A moeda deles é essa: olha o que eu consegui fazer. Para reforçar o pertencimento ao grupo”, diz Cunha.
Não são ‘hackers’. São invasores que cometeram um crime – possivelmente mais de um. E misóginos, como as postagens evidenciam.
O teor sexual das mensagens postadas pelo troll na conta da primeira-dama deixou clara a violência de gênero. “A sexualidade e o corpo são o campo de batalha por excelência desses grupos da extrema direita e conservadores”, diz Cunha. “Além da dimensão moral da sexualidade, é uma espécie de retaliação pela liberdade sexual conquistada pela mulher. Eles odeiam que a mulher tenha esse lugar de ser dona do próprio corpo e fazer o que quiser com ele”.
No livro Misoginia na Internet, lançado neste ano, a advogada e professora Mariana Valente enumera uma série de casos emblemáticos de violência contra a mulher na internet, como o vazamento de fotos íntimas de Carolina Dieckmann e os ataques sofridos pela professora Lola Aronovich, mostrando como a questão de gênero deve ser central no debate sobre regulação da internet.
Seja qual for a violência, ameaças, invasão, stalking, vazamento de fotos íntimas, somos as maiores vítimas, especialmente quando ocupamos espaços de destaque ou quebramos normativas. Não importa quantas camadas de segurança usemos – assim como não importam as roupas que vestimos.
A internet e suas subculturas refletem a sociedade. Às vezes, as plataformas ajudam a amplificar o que existe de pior. O ataque à Janja foi o exemplo perfeito. Figuras públicas, inclusive deputados, retuitaram tuítes da conta invadida tirando sarro. Incentivaram que se vazassem as mensagens privadas da primeira dama. Neymar virou trending topic no Brasil.
O problema não é o “hacker”, a figura de capuz na frente de uma tela cheia de códigos. Tampouco esse é um problema, apenas, de segurança digital do governo – como alguns comentaram por aí, quase culpabilizando a vítima por não se proteger o suficiente.
É um ataque político, contra as mulheres, amplificado pelas redes sociais, e com raízes profundas no machismo estrutural que tantas camadas da sociedade costumam passar pano. Inclusive quem fez um mero retuíte em nome da piada, ou se apressou em julgar as roupas, ops, a falta de cuidado de Janja ao usar as redes sociais.
(Tatiana Dias é Editora Geral do Intercept Brasil)