Boca do Inferno

O futebol é maior que a vida

Postado por Simão Pessoa

Por Edu Goldenberg

Pra vocês entenderem o drama que é o futebol na minha vida – e na vida de quem, de que brasileiro, o futebol não é um drama? – vou contar breves histórias que poderei, mais à frente, trazer de volta com mais detalhes.

Nasci em abril de 1969. O primeiro filho de um casal de classe média baixa, mais baixa do que média, e eu sei disse porque meu pai me dizia essa frase com uma frequência tão intensa que só eu sei o quanto de culpa ela me incutia a cada audição:

— Quando você nasceu, Eduardo, eu gastava, só com o aluguel, mais do que eu ganhava de salário. Mais do que eu ganhava de salário!, só com o aluguel!

E essa frase era dita em tom soturno, grave, seus olhos cravados nos meus, fazendo com que eu fosse uma criança muito saudável emocionalmente.

Eu chegava da escola, por exemplo – estou aqui como um arqueólogo, explorando minha memória prodigiosa – e ia pro banho.

Papai entrava já quase no final, a toalha na mão, me punha de pé sob a tampa do vaso sanitário, e enquanto me enxugava, repetia a ladainha:

— Sabe que eu pagava mais de aluguel do que o que eu ganhava de salário quando você nasceu, não sabe?

E nada mais dizia.

Salubérrimo.

Vamos voltar ao que estava lhes contando.

Nasci Vasco da Gama – é claro.

Isaac, de quem fui o primeiro filho, é Vasco. Seu pai, meu avô Oizer, de quem fui o segundo neto, era Vasco.

Nada mais natural, portanto, que eu fosse Vasco.

Até que veio 1974. Papai pediu a um amigo que me pusesse no gramado pra ver a chegada do Papai Noel no Maracanã.

Arthur Antunes Coimbra, o Zico, me pegou no colo: e dali em diante, convertido pelas mãos dele, tornei-me Flamengo (evidentemente que, anos depois, a psicanálise me fez ver que a conversão talvez pudesse esconder uma vingança por conta do tal discurso que me afogava em mares de culpa tormentosa).

Fato é que – percebam como esse imbróglio nunca foi pacificado, meu pai jamais me perdoou – quando Leonel nasceu, em 31 de maio de 2018, o quarto na maternidade estava pronto, em vermelho-e-preto, para recebê-lo.

A camisa do Zico diante da porta.

Eu, vestido com a camisa do Flamengo.

Até que chegou meu pai.

Vem vindo em minha direção no corredor da maternidade, minha mãe ao seu lado – ela aos prantos com a chegada do primeiro (e único) neto.

É ela que, antes dele, se arremessa nos meus braços.

Chora copiosamente.

Me diz as coisas mais bonitas, chora mais, funga, pergunta pelo neto, até que entra pelo quarto atropelando a enfermeira que saía.

Meu pai estanca diante de mim.

Me olha fundo nos olhos.

Eu me lembro da cena do banheiro.

Estou de pé sob a tampa do vaso sanitário de louça azul, como o azul dos azulejos do banheiro do apartamento do sexto andar do Edifício Jureva, número 90 da São Francisco Xavier.

Tenho então uma espécie de visão, vejo uma miragem, uma toalha nas mãos do meu pai, ele olha com nojo pra camisa do Flamengo que está diante da porta do quarto. Segue mudo. Segue cravando os olhos nos meus. Até que diz, entre dentes, a voz trêmula, um pequeno fio de baba escorrendo pelo queixo:

— Ele vai ser Vasco.

A frase que ele esperou 44 anos pra dizer diante de mim.

E entra no quarto sem me dizer mais nada, sem um abraço, sem um mísero aperto de mão, sem um oba ou um olá qualquer.

Uma relação salubérrima, repito o adjetivo propositalmente.

E que tem o futebol, de certo modo, como fio condutor.

— Cuidado com o Maracanã! Cuidado!

Meu avô Milton, pai de mamãe, com quem jamais troquei mais do que meia dúzia de palavras, me dizia essa frase com uma frequência inacreditável.

Nos meus delírios, ele a disse quando me pôs no colo pela primeira vez, em abril de 1969.

O que se passa é que vovô foi ao Maracanã pela primeira vez no dia 16 de julho de 1950, pouco mais de 18 anos antes de eu chegar ao mundo.

E nunca mais voltou.

Ferido, traumatizado e horrorizado pela derrota do Brasil para o Uruguai na final da Copa de 50, vovô ficou sumido por 3 ou 4 dias (não me lembro). Contava-se, na família, e estão todos definitivamente mortos, que vovô Milton foi encontrado embriagado num botequim no Engenho de Dentro, ainda chorando.

Teria sido Sílvio, meu tio Sílvio, seu cunhado, a encontrá-lo.

Nunca mais pôs os pés no Mário Filho.

— Juro! Juro nunca mais pôr os pés no estádio!

E de fato vovô é esse personagem: foi ao Maracanã apenas uma vez, cumpriu seu juramento.

No dia do seu enterro, bem me lembro, enquanto descia o esquife, alguém disse (virei-me pra ver quem era mas não consegui saber):

— Era um íntegro. Cumpriu sua palavra e foi ao Maracanã apenas uma vez.

O fato é que aquela sentença – Cuidado com o Maracanã! – pesava em mim como uma bigorna imaginária.

E eu, que podia tecer outra relação com o futebol, mais saudável, passei a ir ao Maracanã tomado por uma certeza absoluta e definitiva: um dia chegaria minha vez de maldizer o estádio, de sumir por 3 ou 4 dias, de jurar nunca mais pôr os pés no mesmo Maracanã.

Confesso – e faço aqui a confissão pública pela primeira vez – que somente em uma ocasião tal barbaridade me passou concretamente pela cabeça: foi em 25 de junho de 1995, mais de 110.000 torcedores naquele Fla x Flu dramático (o que explica o sentimento indizível que sinto pelo tricolor das Laranjeiras – evito falar sobre isso com Leonel a fim de não envenená-lo).

Fui posto pra fora do estádio por uns policiais que faziam a última vistoria: eu estava acuado, sob o anel da arquibancada, decidindo se aquele seria meu último jogo ou não (repetindo a história do meu avô). Ainda bem que venci o medo e o monstro que meu avô me apresentara desde a mais tenra infância (tranquilíssima, como quem me lê sabe).

Livrei-me, entretanto, dessa sina, em 28 de junho de 2014.

Eu estava no mesmo Maracanã com a Morena para Colômbia e Uruguai pelas oitavas de final da Copa do Mundo de 2014.

Foi a caminho que fui atingido por um raio: eu vingaria meu avô.

E torci, como um fanático, pela Colômbia – que enxotou os uruguaios com um 2 a zero sensacional.

Ao final do jogo, lembro-me bem, liguei pra minha mãe – a única filha do meu avô, já morto há muitos anos – e só conseguia dizer, aos gritos e chorando convulsivamente:

— Vinguei o meu avô! Vinguei o meu avô!

Daquele dia em diante, e só daquele dia em diante, ou seja, depois de 36 anos (meu primeiro jogo foi em 1978) é que passei a ir ao estádio sem medo do Maracanã – vejam que salubérrimo.

Leonel tem pouco mais de 5 anos de idade.

Aos 5 anos eu ainda era Vasco.

Leonel será Flamengo? – me pergunto a toda hora e a resposta é o silêncio que atravessa a madrugada.

Quero vê-lo Flamengo pra sempre.

O rubronegrismo é uma identidade que nos une.

Chorei, quando falei sobre o Flamengo pra ele, ainda na madrugada do dia primeiro de junho de 2018.

Chorei todas as noites, pondo ele pra dormir, prometendo a ele o título da Libertadores em 2019.

Chorei, quando ele pisou no estádio pela primeira vez e quando o ouvi dizendo, olhos cheios d´água de uma emoção que ele não conseguia reconhecer:

— Papai! Eu quero ficar aqui pra sempre!

Em breve, quero lhes contar mais sobre isso, sobre essa relação que alguns podem entender como monotemática mas que é muito mais: é identidade, é pertencimento, é fortalecimento de laços e reafirmação de uma porção de coisas que nos rodeiam desde sempre.

Era, por ora, o que eu queria lhes contar.

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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