Boca do Inferno

Onde houver quilombo, haverá cobiça de empresário

A líder do Quilombo Pitanga dos Palmares, Yalorixá e ex-secretária de Promoção da Igualdade Racial de Simões Filho (BA) Maria Bernadete Pacífico
Postado por Simão Pessoa

Por André Uzêda

Os 22 tiros disparados contra Mãe Bernadete Pacífico atingiram outras tantas comunidades quilombolas espalhadas pelo Brasil. O último censo do IBGE, o primeiro a perguntar sobre povos e comunidades tradicionais, registrou 1,3 milhão vivendo no país. A maior parte está concentrada na Bahia – estado que abriga, sozinho, 29,90% desta vulnerável fatia da população brasileira.

É demasiadamente simbólico que, justamente lá, Mãe Bernadete tenha sido silenciada em um crime brutal ocorrido no próprio quilombo Pitanga dos Palmares, onde vivia. A sina trágica da mãe tem precedente na própria família Pacífico. Cinco anos, 11 meses e 28 dias antes dela, seu filho, Flávio Gabriel, mais conhecido como Binho do Quilombo, também foi executado a tiros no mesmo local.

Revelei nesta semana aqui no Intercept que os dois eram reconhecidos pela defesa do território, combatendo a especulação imobiliária, a grilagem de terra e, sobretudo, lutando contra a instalação de um aterro de resíduos de construção civil em área próxima ao quilombo.

A empresa responsável por esse empreendimento é a Naturalle, de propriedade de Vitor Loureiro Souto – filho de Paulo Souto, ex-governador da Bahia por dois mandatos, quando o estado era controlado pelo senador Antonio Carlos Magalhães, o ACM, morto em 2007.

Vitor Souto tem uma série de relações próximas com algumas prefeituras da Bahia, sobretudo aquelas governadas pelo União Brasil – partido ao qual se filiou, quando ainda era DEM, em 2009.

Em Simões Filho, onde fica o quilombo de mãe Bernadete, a Naturalle conseguiu até emplacar um engenheiro, que representou a empresa em questões ambientais, como chefe de gabinete da secretaria municipal de Desenvolvimento Urbano e… Meio Ambiente.

Paulo Souto foi o último gestor da era carlista antes do PT chegar ao poder na Bahia. De lá para cá, já são 17 anos e três governadores diferentes – Jaques Wagner, Rui Costa e, agora, Jerônimo Rodrigues.

Ano passado, quando foi candidato e venceu a disputa contra o neto de ACM, Jerônimo investiu em um discurso identitário, se autodeclarando indígena e defendendo uma série de medidas em prol dos quilombolas.

No programa de governo do petista, a palavra ‘quilombola’ aparece 13 vezes, em promessas atreladas à educação, estímulo à prática de esportes, editais de cultura e, sobretudo, regularização de terra e combate a conflitos fundiários.

A luta pela terra continua sendo primordial no Brasil, sobretudo para populações quilombolas que, muitas vezes, não detém o título definitivo de propriedade e sofrem ameaças constantes de grandes empresários que tentam abocanhar esses territórios.

Esse é um roteiro repetido à exaustão. A Fundação Palmares reconhece a ancestralidade dos povos habitantes dos territórios, mas o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, o Incra, não é célere o bastante em conceder a posse definitiva. A instabilidade abre margem para o aliciamento empresarial, a partir de ocupações irregulares, ações judiciais, milícias armadas e grilagem a serviço de grandes empreendimentos.

Já governador, Jerônimo abandonou solenemente o entendimento da lógica fundiária que jurou combater e, em ato contínuo, também as bases pelas quais seu programa de governo foi escrito. Logo após o assassinato de Mãe Bernadete, ele levantou a hipótese da execução ter sido causada pela disputa de facções criminosas no controle do tráfico de drogas.

Precipitado, o governador ignorou por completo as lutas travadas por mãe e filho na defesa do quilombo – as inúmeras audiências públicas que participaram; as manifestações organizadas; as denúncias que fizeram após ameaças de morte; a representação protocolada nos Ministérios Públicos Estadual e Federal; o abaixo-assinado virtual que promoveram contra a instalação do aterro da Naturalle.

Nada disso foi considerado.

Pelas lutas históricas travadas por Mãe Bernadete, o advogado da família, Leandro Santos, classificou como “, “violenta” e “precipitada” a fala de Jerônimo.

Agora, o secretário em exercício de Segurança Pública da Bahia, Marcel de Oliveira, diz que o crime de Mãe Bernadete está perto de ser elucidado. Em breve, saberemos que linha a investigação caminhou e o que foi descoberto.

O fato é que, depois da morte dela, outras lideranças de comunidades tradicionais e quilombolas estão desesperadas com o que pode acontecer. Eu conversei com alguns deles e, entre a dor e revolta, o que prevalece é o medo.

“Tive em vários espaços com Mãe Bernadete e presenciei os inúmeros pedidos de justiça pela morte do filho dela. Ela não conseguiu ver a justiça ser feita porque mataram ela antes. E, quando aconteceu, eu fiquei desesperado, porque pode acontecer comigo. Eles são perversos”, me disse Raimundo Siri, pescador que já foi ameaçado de morte por nativos ao se opor a um hotel de luxo que José Roberto Marinho, dono da Rede Globo, tenta construir em Boipeba, no litoral sul da Bahia.

A luta por terras no Brasil é a síntese da própria história do Brasil: herdeiros de escravizados, os mais pobres, lutando pela sobrevivência contra os poderosos – que tentam lhe usurpar até o chão para morrer.

(fonte: The Intercept Brasil)

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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