Por Paulo Silber
– Paulo Silberrrrrr! Deixa eu te apresentar esse sujeito aqui. Se vocês se derem bem, eu tenho pena dos inimigos.
Foi assim que o Afonso Klautau me apresentou ao Palmério Dória, lá na TV Cultura, bota mais de 30 anos nisso. Ele abriu um sorrisão e disse que eu era mais bonito do que o cavalo do Zorro. O Afonso emendou: “Haiô, Silveerrrr!”. Eles caíram na gargalhada. Eu ri, meio escabreado.
Parece que o Palmério sacou, porque 15 minutos depois apareceu na porta da redação e me chamou:
– Fala, Silberation! Bora bater um papo?
Descemos, saímos da TV, andamos pela Almirante Barroso. Perto da Curuzu, ele deu sinal pra um ônibus e entramos. Eu achei esquisito, mas fui na dele. O ônibus fez o itinerário clássico, deu o balão na Presidente Vargas, voltou pela Gentil e retornou à Almirante, onde descemos, em frente à Curuzu.
Nesse trajeto de quase uma hora, o Silber que subiu cordial, mas desconfiado, desceu encantado e seduzido. Ganhei meu melhor amigo.
De lá pra cá, fizemos muitas travessuras, nos metemos em algumas encrencas, produzimos pra caramba. Na TV Cultura, formamos um trio ternura, junto com o Guilherme Augusto, escrevendo e dirigindo a seis mãos a revista Enfim e os programas “Nossos Comerciais, por favor” e “Salve a Floresta”.
No tempo em que os scripts eram enfiados e puxados de uma velha Remington, com papel carbono entre as laudas.
Todos os nossos encontros, sem exceção, terminavam com muita gargalhada e eventualmente se estendiam aos bares da vida, onde os veteranos me transformaram em aprendiz de feiticeiros.
Palmério influenciou meu jeito de escrever, me orientou a apurar melhor, me conduziu pelo Túnel do Tempo, fazendo-me frequentar a história do Brasil como se fôssemos Tony e Dough. Apresentou-me aos melhores livros, me ensinou a ousar mais, me abriu as portas, levando-me para os círculos frequentados pelos melhores jornalistas da época.
Ele me educou para ser um bom amigo, generoso e carinhoso como era comigo.
Juntos, escrevemos uma biografia do artesão Raimundo Cardoso, que ficou inédita porque a Listel, que nos contratou, desistiu do projeto, deixando no baú a revelação bombástica de um político que roubou uma urna marajoara da casa do ceramista.
Formamos uma dupla do barulho na TV Cultura, na De Campos Produções e na edição brasileira da revista Interview, onde fizemos juntos algumas reportagens que entraram para a história e nos renderam dois prêmios nacionais.
Com as confissões indiscretas de Maria Thereza Goulart, a mais bela primeira-dama do Brasil, inauguramos na Interview, conhecida pelo jornalismo rosa-shocking, um novo momento da revista.
Naquela edição, sob a batuta de Michael Koellreutter e os talentos de Alex Solnik, Mário Mendes, José Simão, Milton Severiano (o Miltainho), Caco Barcellos e um time de colaboradores de alto nível, a Interview passou a abordar temas importantes e publicar matérias investigativas.
Como a saborosa e tenebrosa história da família Malta em Canapi, berço de Rosane Collor de Mello, a primeira-dama mais cafona do Brasil. Como a delícia e a dor de Payakan, cujo mundo de pop star e se dissolveu em duas grades de cerveja quente e o abominável estupro. Como as constrangidas revelações íntimas de um ex-governador do Amazonas e a memória estupenda de Carlos Castelo Branco, testemunha ocular da história, entre muitas outras.
No prefácio do meu livro de crônicas, “Papai, você não tem amigos normais?”, Palmério celebra os nossos melhores momentos, dá um spoiler do livro que escrevemos mas não concluímos (Os índios que descobriram o Brasil) e define nossa amizade com a verve que lhe é peculiar: “Fizemos incontáveis ménage à trois com Dona Palavra, mulher de reputação duvidosa pela qual temos até hoje profunda queda. Silber é a serpente encantadora. O conversador que preserva a espécie”.
Palmério foi um dos jornalistas e escritores mais importantes do Brasil. Foi o primeiro a publicar um livro sobre a Guerrilha do Araguaia. Descobriu, entrevistou e publicou a história de Alcino João do Nascimento, no atrapalhado atentado da Rua Tonelero. Devassou a podridão da privataria tucana e fábrica de falcatruas da família Sarney. Frequentou as melhores redações do País, desde a Realidade e o Pasquim, o Bondinho, o Ex, o Estadão e até a Globo. Escreveu contra a ditadura, contra a censura e contra a loucura de um país esfarrapado e hipócrita, sem nunca perder a coerência e o humor. A inteligência e o rubor.
Foi meu amigo, irmão e pai. Se é verdade que a morte de quem a gente ama nos torna menores, Palmério Dória desautoriza essa versão. A passagem dele pela minha vida me tornou maior pra sempre.
Obrigado, P.