Boca do Inferno

4. São apenas histórias do boto, sinhá!

Palmério Dória e Edson Aran no lançamento do livro “O Príncipe da Privataria”
Postado por Simão Pessoa

Por Palmério Dória

O mundo dos homens não me interessava. Não sei como não virei fresco, o termo em voga naquele tempo, assim como a palavra voga. Aliás, o fresco oficial de Santarém chamava-se Bráulio. Tudo a ver.

O que eu gostava mesmo era de ser apanhado pelas amigas solteiras de mamãe, principalmente a tia Dulceíde e a tia Alva, para o footing no fim da tarde, na pracinha em frente ao Olímpia ou lá no trapiche, onde elas aguardavam o pouso dos Catalinas no rio.

A ideia era fisgar um dos garbosos tripulantes desses aviões de fuselagem cáqui ou verde, conhecidos como “Pata Choca”. Eles vinham para a terra nas catraias que iam buscá-los perto do encontro das águas do verde Tapajós e do barrento Amazonas, que correm lado a lado, durante quilômetros, sem se misturar. Eu funcionava como isca.

Acho que fiquei careca de tanto aviador jovem passar a mão na minha cabeça. Enquanto eles cantavam minhas tias, eu chupava os deliciosos sorvetes do bar Mascote, da família Meschede, de origem alemã, ou acompanhava o show dos botos, que saltavam em grupos.

Já tinha assimilado que eles eram bons camaradas dentro e fora da água, que emprenhavam as moças, essas coisas. Nas quermesses, numa praça vizinha aos Correios e Telégrafos, saíamos em turma para identificar o boto no vaivém. O cara mais pintoso, que atraía a atenção de mais mulheres, sem dúvida era ele o boto, sinhá.

Em alguns pontos da praça, a malandragem cavava misteriosos buracos. Deles tiravam peças da mais autêntica cerâmica dos índios tapajós. Para nós, eram só isso: figurinhas de jacarés, onças, tartarugas, cobras e rãs em alto-relevo.

Para os incautos turistas, podia ser o acesso à obra de uma civilização dizimada no segundo século da colonização portuguesa, cerca de 250.000 índios, que construíram vários quilômetros de estradas de dois metros de largura e 30 centímetros de profundidade, ligando centenas de aldeias.

Diz a lenda que os tapajós comiam as icamiabas (mulheres sem marido) uma vez por ano durante um forrobodó nas margens do lago Iaci-Uaruá (espelho da lua), lá pras bandas do rio Nhamundá.

Também diz a lenda que foi no Nhamundá que Orellana, o descobridor do Amazonas, quebrou o pau com essas mulheres guerreiras, chamou-as de amazonas (em grego, mulheres sem peito – elas arrancavam um deles para manejar melhor o arco) e batizou o Amazonas com o nome delas.

Do Jardim de Infância me lembro muito bem de uma foto da Páscoa, todos nós sentados com um coelhinho de papel na mão, que vale por mil aulas de genética: ninguém mudou nada na essência, os brilhantes continuaram brilhantes – o Lúcio Flávio, irmão da Iliaci, por exemplo –, os idiotas continuaram idiotas, e assim por diante.

Se nenhuma freira do Colégio Santa Clara marcou minhas retinas, é sinal de que o melhor é ir em frente, direto às coxas da professora Maria de Lourdes Corrêa, entrevistas toda santa manhã, sob uma bata branca que ia até o tornozelo.

A professora Maria de Lourdes era uma morena baixinha de rosto lindo, seios grandes, ancas fartas e um tremendo bundão. Lecionava no colégio Dom Amando, dos padres redentoristas, situado numa bela colina, numa ala isolada para o pré-primário.

É bom lembrar que esses padres tinham fama de garanhões. Um deles, o padre Jaime, teve inclusive de voltar às pressas para os Estados Unidos depois de um romance em tudo parecido com a história de “O Padre e a Moça”, o poema de Carlos Drummond que virou filme de Joaquim Pedro de Andrade proibido em 1966 a pedido de dom Agnello Rossi, então cardeal de São Paulo, incomodado com a cena em que a moça seduz o padre.

A moça, no filme, era Helena Ignez. Em Santarém, a professora Teresinha, irmã um pouco mais velha da professora Maria de Lourdes. Algo certamente acabaria em happy end.

Já conhecia a professora Maria de Lourdes da casa do meu amigo Cornélio, um dos irmãos dela. Mas a paixão só bateu quando entrevi aquela nesga de coxas. Os irmãos da professora Maria de Lourdes eram o creme do creme da sociedade mocoronga.

A mãe – carola de extrema candura e simpatia – tinha perdido o marido muito cedo, usou luto fechado por longos anos e se permitiu um black and white básico depois de muita insistência dos filhos, uma espécie de Kennedy Brothers no tucupi. Os Corrêa! Todos mandavam em alguma porra na cidade.

Quase matei o Cornélio. Não raras vezes almoçava com a família dele. Depois, os mais velhos iam direto para a sesta. De vez em quando, o Cornélio também desaparecia. Fiquei intrigado e resolvi segui-lo pelos meandros da casa. Dei com ele no galinheiro, dando uma na pobre galinha, quase a ponto de gozar ou coisa que o valha. Gritei:

– Cornélio, olha a tua mãe!

Cornélio estrebuchou ali na hora, quase teve uma congestão, mas não teve sequelas.

Eu sonhava com a professora Maria de Lourdes no almoço, no jantar e na merenda escolar. Se existia uma razão para acordar, lavar a cara e sair, era a professora, que me tratava com especial desvelo e atenção.

Acontece que a régua ou a palmatória não desgrudavam das mãos dos mestres e eram usadas sob qualquer pretexto. Lá uma hora, para variar, errei a tabuada. Ela me sentou uma reguada em cima da mão, e minha unha começou a sangrar.

Foi ver o sangue e voar em cima do meu amor. Quando caí no chão, os botões da bata vieram juntos, deixando aquela coisa toda aberta. Arremeti de novo: atraquei-me às coxas e mordi-lhe as entrecoxas com disposição canina.

O certo é que fui retirado dali por algo como um guindaste, as manoplas do padre-diretor. A cara escarlate dele, em contraste com a batina branca, baixou minha crista no ato.

Não precisa dizer o pandemônio que se instalou na classe. Soube através da minha pobre, aflita e desmoralizada mãe, entre um e outro trampesco, a caminho de casa, que estava expulso da escola.

Aos 6 anos de idade, era realmente uma façanha. (Bem, o Primo Altamirando, neto da Tia Zulmira, a ermitã da Boca do Mato, também logrou isso, mas nas páginas de humor de Stanislaw Ponte Preta.)

Bonito foi meu pai recebendo a boa nova. Como de praxe, tirou aquele cinturão com o qual eu brincava com a Iliaci, isolou-me na sala-repartição do IAPM, bem na entrada da casa, separada do corredor por uma porta de vaivém, como essas de saloon.

Até hoje não sei como consegui subir numa delas. Como se estivesse montado num cavalo (a porta vai, plaft! A porta vem, plaft!), levei a maior surra de todos os tempos.

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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