Boca do Inferno

14. Selvagem, mas nem tanto

Índios Parakanãs, habitantes do sul do Pará
Postado por Simão Pessoa

Por Palmério Dória

Fascinação não tem hora nem lugar para acontecer. Pode ser até num mato sem cachorro.

Um índio de pele muito clara e muito esguio sai do meio da mata, com um jabuti nas mãos, e entra na clareira em que estamos.

Apesar de ter apenas uma folha de palmeira enrolada no pênis, parece nitidamente o cacique dos índios parakanãs que nos “atacaram” há poucos minutos, levando tudo o que havia em nosso acampamento – redes, facões, farinha, caça…

Era o primeiro contato com a primeira tribo na rota da Transamazônica, um sonho desvairado de Médici que virou rally de onça.

O sertanista João Carvalho, parceiro de Darcy Ribeiro em várias expedições de contato, vai ao encontro dele só de calção, parlamentar em tupi.

A conversa leva uns dez minutos, falam cada vez mais alto, o índio gesticula irritado, aponta para o jabuti, depois para o nosso grupo, de mais ou menos umas dez pessoas. João Carvalho também gesticula muito, demonstrando tensão.

João Carvalho vem até nós, deixando o índio ali parado, para explicar a situação.

O cacique quer trocar o jabuti por Jacqueline Ruff, antropóloga formada por Harvard, que está no meio do grupo ainda sob o impacto do emocionante encontro.

Ela é filha do gerente-geral da U.S. Steel, Arthur Ruff, um apaixonado pela arqueologia que também está entre nós.

Não se pode negar o extraordinário bom gosto do cacique. Jacqueline é a cara daquela outra Jacqueline, a Kennedy.

O índio apaixonado a vem observando do meio do mato nesses dois dias que Jacqueline está no acampamento.

Ela veio com o pai e a irmã Andrea – um bofe, esnobado pelo índio – apenas para uma rápida visita no helicóptero da gigante do aço americana, que iniciava a exploração do minério de ferro da serra dos Carajás.

A antropóloga Jacqueline Ruff

Mas o helicóptero deu pane, o socorro não chegou e os índios invadiram o acampamento às 8 horas da manhã, após meses e meses de espera. Provavelmente por causa da presença da beldade americana.

Jacqueline, que trabalhou muito tempo com os quíchuas, no Peru, é a única que encara a inusitada situação com absoluto fair play, rindo a ponto de João Carvalho pedir para ela parar.

Mexe aqui, remexe ali, o sertanista encontra mais alguns facões, bota em cima dos braços, coloca-os no chão na frente do cacique, conversa mais de dez minutos com ele.

O cacique se dá por achado, pega os facões, e volta para a mata com o jabuti e sem Jacqueline.

Eu e o cinegrafista Rubens Onetti, já veterano, demos sorte. Pegamos uma carona no helicóptero de mister Ruff e registramos todas as cenas desse contato, que foram ao ar no Jornal Nacional, que a Globo começava a transmitir em rede, junto com o Brasil Grande.

Uma invenção não de Walter Clark, como todo mundo pensa, mas do publicitário José Ulisses Arce, superintendente da Central Globo de Comercialização, que teve a idéia quando a emissora integrou a rede mundial que mostrou a chegada do homem na Lua.

Muita água tinha rolado, Lúcia voltara com a família para o Rio, e esses índios vieram como uma bênção.

Levei o filme, em negativo, pessoalmente à sede da Globo na rua Von Martius, 22, no Jardim Botânico.

Vi as cenas, projetadas numa saleta sem qualquer charme junto com a editora-chefe Alice Maria, que aprovou e editou a matéria. A sala do diretor da Central Globo de Jornalismo, Armando Nogueira, também era bem modesta.

Cobra criada, Armando Nogueira me pegou de calças curtas. Contei-lhe toda a aventura, sem saber que estava sendo gravado.

Assim, quando as imagens foram ao ar – o JN entrava às 19h45, não podia ter mais que quinze minutos –, o depoimento entrava em off, o que dava uma emoção danada pra coisa toda – o som que faltava em nosso filme preto-e-branco.

Como estava indo a São Paulo, para vender o texto e as fotos ao Jornal da Tarde, Armando me mandou falar com o Boni. Não tinha a menor idéia de quem era.

Boni foi muito cordial, me deu um cartão, botou no verso o valor, e eu recebi a grana ali.

Com ela, podia pensar em ficar um tempo no Rio, perto da Lúcia.

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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