Por Rafael Galvão
Tenho fama de ateu porque nunca consegui acreditar em um deus tão pequeno que fez essa desgraça de humanidade à sua imagem e semelhança mas não fez direito, um deus mesquinho que não se dá ao respeito e se incomoda se grãos de areia como eu — ou assim ele quer que eu me considere — mandam-no ralar o cu na ostra, que é o que Ele mereceria se existisse.
Isso sempre me deixou com um problema, que é explicar coisas que não posso explicar, a matéria e o universo. Sempre fui muito velho para dar murro em ponta de faca ou achar que seria possível saber o que havia antes do Big Bang, e então fico com a ideia de que tem algo nessa bodega que não sei o que é e nunca vou saber, mas que não interfere em absolutamente nada na minha vida e nem na de ninguém, e certamente não vai me fazer acertar na loteria esportiva.
Esse incômodo, na verdade, nunca me tirou o sono. Deus nunca fez parte da minha vida. Não vim de família religiosa, nunca fizeram pressão para que eu acreditasse ou deixasse de acreditar em qualquer coisa. A gente sempre andou para Deus e Ele para nós. Estivemos todos bem, assim.
E no entanto sou fascinado pela trajetória do cristianismo. Debates essencialmente filosóficos ou doutrinários me dão um pouco de sono, mas sempre tive uma curiosidade muito grande sobre como o cristianismo se tornou o que é, como moldou o mundo em que vivo. Independente daquilo em que acredito ou não, eu sou um produto do mundo cristão. Valores sociais em que acredito devem muito à noção cristã da caridade e à crença (ou vã esperança) na bondade intrínseca do Homem.
Adoro as mentiras descaradas do Novo Testamento, por exemplo. Gosto de tentar entender a maneira como aquele conjunto de estórias mirabolantes foi se solidificando ao longo de umas poucas décadas em uma narrativa com algum grau de coesão. Gosto de ver o esforço malabarista das posturas doutrinárias do cristianismo antes e depois de Constantino, Teodósio e Justiniano. Quase posso tolerar a destruição cultural do mundo greco-romano ou as liquidações de hereges patrocinadas pelos cristãos, porque do ponto de vista histórico isso é antes de tudo um fenômeno curioso: como se deu o processo que levou uma religião com um discurso calcado na ideia de altruísmo e de bondade a se consolidar, em muito pouco tempo, como uma das forças mais deletérias e mais cheias de ódio da história da humanidade? E quais os instrumentos utilizados para isso?
Gosto, quase tanto, de tentar entender os malabarismos intelectuais dos primeiros cristãos, que precisaram criar uma nova ideia de messias para que ela se adequasse ao discurso judaico anterior, numa tentativa de legitimar o seu maluco de estimação. Há algo de desesperado nisso, também um bocado de má-fé; mas é também o reflexo, ainda que distorcido e pervertido, de uma vontade de fazer o que entendiam por bem aos outros que é quase louvável. Fanatismo tem dessas coisas.
Gosto de ver o respeito crescente às religiões de matriz africana como aspecto de uma afirmação étnica e social, e é lindíssima a cosmogonia do candomblé, tanto quanto a grega antiga; mas me irrita o discurso hipócrita do candomblé e da umbanda, de mansidão intrínseca à religião, porque me lembra o sujeito que depois de um atentado fundamentalista insiste que a Bíblia ou o Alcorão são livros de amor; sou baiano e sempre soube que pai de santo bom pra desgraçar os outros, matar a mulher do seu amante, eram os de Cachoeira; e vi despachos de amantes inconformadas em esquinas demais para cair nessa conversa safada. No fim das contas, não consigo esquecer que é uma religião em que seus sacerdotes estão liberados para tentar destruir outras pessoas. E por valorizar a preguiça como um grande valor humanístico, não entendo por que alguém em sã consciência se oferece a tantas obrigações sem sentido real, por que abre mão voluntariamente de sua liberdade para isso e aquilo em nome de contos de fadas.
Confesso que tenho apenas uma pinimba e um medo.
A pinimba é com o kardecismo. Porque não dá para respeitar uma religião surgida em pleno século XIX, o século dos trens e das máquinas, de Balzac e de Marx, e que se tenta dar ares quase científicos. Porque todas as outras grandes religiões têm a desculpa de serem basicamente superstições e mistificações pré-históricas, nascidas em um tempo em que macacos em acelerado processo de evolução precisavam de alguma explicação para o raio que caía na cabeça do vizinho e de uma providência para que ele não caísse na sua.
O kardecismo é mais uma das tantas religiões que, assim como toda a cultura ocidental, deriva do judaísmo e do cristianismo. Como todas as outras, para funcionar precisa jogar nas costas de alguém a culpa por toda a miséria humana. A ideia de um deus consciente e cheio de desígnios que se dá ao desfrute de elaborar um sistema complexo e imbecil de reencarnações e expiações, por si só, é tão absurda que é incrível que as pessoas a levem a sério; esse no mínimo é um deus sádico, que coloca gente no mundo para sofrer quando não havia necessidade nenhuma, se o incompetente fizesse decentemente o seu trabalho e criasse direito seu boneco de barro. Mas o kardecismo se esmera na justificação dessa crueldade. Por exemplo, imagine uma criança que nasce com paralisia cerebral gravíssima. Ela não vai aprender nada em toda a sua existência. No entanto, kardecistas fazem malabarismos interessantes para justificar essa aberração teológica. Uns dizem que a criança nasceu assim para pagar pecados — quando, obviamente, ao não poder aprender nada ela não pode evoluir. Outros dizem que ela nasceu assim para “ensinar” os pais. Tá, e a criança que se dane sem controlar seu próprio esfíncter.
Para piorar, como o número de almas neste vale de lágrimas não para de crescer, a gente entende que Deus fez o homem, não fez direito, não corrigiu a própria merda e mesmo assim continua fazendo mais. É um imbecil.
E tem ainda o racismo inerente ao kardecismo. De vez em quando lembram por aí de um texto de Kardec onde ele diz que “os negros serão sempre os mesmos; como Espíritos, trata-se, sem dúvida, de uma raça inferior”. E ao menos cá no Brasil, essa é uma religião eminentemente branca, em que é nítido o desprezo à sua prima preta, a umbanda.
Mais que isso, a sua tentativa de criar um sistema aparentemente sofisticado, influenciado pelo positivismo, é provavelmente a mais malsucedida de todas. Cristãos, macumbeiros, muçulmanos ao menos têm a sabedoria de não se aprofundar muito e jogar o bagulho nas costas de Deus antes que tudo fique confuso demais. Kardecistas, no entanto, se dedicam a malabarismos pseudorracionais impressionantes. Uma vez perguntei a uma delas se cachorros tinham alma. Ela me respondeu que tinham uma “alma coletiva”, seja lá o que isso for. Eu não quis me aprofundar no assunto porque fiquei com medo, e ninguém pode me recriminar por isso.
Provavelmente é por tudo isso que uma das melhores frases que li nos últimos anos é essa: “Chico Xavier era um sujeito que falava sozinho e ainda anotava o recado”. Isso resume o espiritismo para mim e mais não é necessário falar.
Acima de tudo, o que irrita em todas as religiões é o discurso canalha que diz “a religião é boa, ruins são alguns religiosos”. Não. Toda religião é ruim; elas existem para negar a realidade, para justificar o injustificável, para eximir o homem do mal que há no mundo e lhe oferecer uma saída imaginária. Existem para dar legitimidade ao que há de humano nas pessoas, e propósito a um tipo específico de inconformado. Existem como muleta para explicar o que ainda não foi explicado, e acaba se tornando, sempre, um instrumento de obscurantismo. Toda religião é ruim.
E mesmo assim, durante muito tempo a militância ateia me incomodou. Sou um grande fã de Richard Dawkins, por exemplo, especialmente de “O Gene Egoísta”; mas outros livros seus sempre me pareceram desnecessários. Proselitismo ateu costumava ser tão incômodo para mim quando o proselitismo religioso. Ainda mais, até, porque a princípio um ateu está um degrau acima na escola de pensamento de quem ainda acredita num deus preocupado se você dá o rabo; se ele chega à conclusão da inexistência de um deus todo-poderoso, ou da impossibilidade de crença a partir do raciocínio lógico, é porque pelo menos se deu ao trabalho de pensar, algo que não posso dizer de quem acredita em Adão e Eva.
Mas o ateísmo pode ser também uma quase desistência do pensamento, e de certa forma quase tão arrogante e falso quanto os religiosos, porque não apenas não se consegue provar a existência ou inexistência de Deus, mas porque a recusa em admitir a possibilidade de se estar errado é estúpida. Para muita gente, ela parece justamente o contrário porque é comparada à religião, que encontra na vontade inescrutável de Deus uma explicação confortável para a topada que arrancou metade da sua unha. É, de forma um tanto diferente, o mesmo reflexo humano, demasiado humano de necessidades que não têm nada de divino.
Nos últimos tempos, entretanto, isso deixou de ser tão incômodo. À medida que a militância religiosa vem justificando guerras e perseguições em todo o mundo, mas principalmente num momento em que políticos evangélicos vêm consolidando sua influência política e se espalhando como metástase no tecido social; à medida que pessoas cuja noção de conhecimento é paradoxalmente baseada na ignorância passaram a definir os rumos do país; à medida que, como os primeiros cristãos, evangélicos tentam impor de maneira cada vez mais violenta sua visão obtusa e cruel de mundo aos outros, a religião passou a ser uma inimiga. As pessoas podem acreditar no que quiserem — eu continuo acreditando no Grande Deus do Pleno Xibiu da minha adolescência, por exemplo, porque ainda não descobri coisa melhor —, mas quando se organizam politicamente para tornar essa crença dominante e cercear os direitos dos outros, elas se tornam algo a ser combatido e, se possível, destruído.
A história do processo civilizatório é a história da superação da religião. Quando negaram a natureza divina da realeza, quando negaram o direito de fazer churrasquinho de bruxas, quando disseram que Estado e superstição não deviam caminhar juntos — foi nesses momentos que a humanidade deu um passo à frente e tornou o mundo um pouco mais justo e igual.
Daí que no mundo surreal em que dou a sorte de viver, em que uma religião retrógrada e perigosa cresce assustadoramente, a sensação de que a militância ateia era tão estúpida quanto os fanáticos do “gloriadeus” desapareceu.
O ateísmo nunca fez nenhum mal à humanidade, algo que não pode ser dito de nenhuma religião monoteísta. Na verdade, por ser falta de crença, retira da pauta a imbecilidade religiosa. E nos tempos atuais, em que uma onda de obscurantismo religioso vem patrocinando uma constante regressão intelectual e cognitiva para a humanidade, ele se torna quase um exemplo de resistência à progressiva metástase no tecido social patrocinada por religiosos.
E aqui está o meu medo. A cada dia, me apavora o crescimento das religiões protestantes no país. E não falo das neo-pentescostais em que malandros apopléticos tiram dinheiro de imbecis que, para mim, merecem ser tosquiados porque ninguém tem o direito de ser tão cretino. Hoje, o pensamento evangélico e sua ação política são a maior ameaça à democracia e ao avanço do país.
Percebi isso quando vi a maneira como a gíria religiosa se imiscuiu na sociedade brasileira. Expressões como glóriadeus, tá amarrado, ô glória, é pra glorificar de pé se espalharam pelo tecido social e são um exemplo sociológico claro da expansão e capilarização do pensamento evangélico. É assim que as metástases ocorrem. Em sua luta para fazer do Brasil uma narcoteocracia, as igrejas evangélicas são um câncer que não para de crescer e a principal razão pela qual meu otimismo em relação ao futuro deste Brasil velho de meu Deus é hoje muito pequeno.
Deus pode até existir, mas se alguém tem alguma esperança na humanidade, é melhor fingir que não.