Boca do Inferno

5. Travessuras sexuais na velha Santarém

Postado por Simão Pessoa

Por Palmério Dória

No começo das férias de julho, soube que estava perdoado no Dom Amando, por obra e graça da minha querida professora Maria de Lourdes. Então fui liberado para todos os folguedos.

É o chamado verão, época de vazantes, estação em que chove menos, as águas de todos os rios da Amazônia ficam pela metade. E abriam-se praias que pareciam nevadas no Tapajós.

Aí, a gente pegava um motor todos os fins de semana e ia para a Ponta da Maria José e Salvação. Em noites de luau, dormíamos nessas areias quase virgens, tomávamos água ali na beira – água de beber, camará! –, daí meu espanto quando um dia vi água engarrafada.

Ainda não conhecíamos Alter do Chão, hoje o cartão-postal de Santarém, com a Serra Piroca e tudo, que deixa os gays em estado de pura excitação. As praias fora da cidade nunca me deram grande margem para a saudável prática da sacanagem, por causa do olho vivo e faro fino dos mais velhos. Gostava mais daquelas que ficavam na frente da cidade.

Nessa época chegava o pessoal de Belém, meninas irresistíveis, saltitantes e alegres, com pique da cidade grande. Minha prima Conceição veio pelo menos duas vezes. O barato era vê-la fazer xixi de porta aberta, o vestido levantado, a calcinha abaixada.

Tinha também uma certa Lúcia Pamponet, prima da Ilka, que vinha todo ano. Essa me balançou um bocado nesse verão. Nossa especialidade era beijinhos sem ter fim atrás da porta.

Mas a novidade mesmo veio do Acre, nas formas esculturais de uma jambete chamada Ismênia. Acho que não tinha nem 18 anos, mas passou a ser a presença sedutora da cidade para os mais velhos e – why not? – para nós também.

De cara, tornou-se amiga de mamãe. Acreana, era como todos a chamavam. As acreanas, é bom que se diga, tinham fama de atiradas. Vamos ser mais explícitos: em Manaus, acreana é sinônimo de galinha.

Mamãe, contudo, não dava ouvidos para as outras amigas que, um tanto enciumadas, punham em xeque o comportamento liberado daquele novo animal na floresta. Em matéria de palavrões, por exemplo, ela só era batida pelo falecido Craveiro Lopes. Mas em pouco tempo Ismênia já era parte da família.

Cuidava de mim, do Valdemar e da Betina com um desvelo de mãe. Fazia todas as nossas vontades. Ninguém preparava uma goiabada como a Ismênia, ali ao pé do fogão a lenha.

Nós três ficávamos ali extasiados, vendo-a mexer a colher de pau, experimentar um bocado com o indicador, aprovar com uma bela estalada de língua, que nos deixava com mais água na boca.

E assim, ano vai, vem, íamos vivendo de amor. Eu, mamãe, papai, Ita, Betina, Valdemar e Ismênia, que não morava com a gente, mas era como se morasse. Aquilo ali era um casulo de felicidades! O que vinha de fora – respeito – me atingia muito pouco.

Teve a passagem de Jânio Quadros, já em campanha presidencial, que fez um discurso de uns dez minutos de manhã cedinho, sem microfone nem nada, na escadaria da igreja matriz, administrada pelos padres franciscanos e cuja lateral dava para a minha casa.

Ouvi o discurso de cabeça erguida praticamente na cintura dele, abismado com a loquacidade daquela figura de terno azul-marinho e sem gravata.

Pelo visto, as campanhas eram no gogó, e os políticos tinham de se virar que nem cobra em areia quente para conquistar os eleitores do general Magalhães Barata – os baratistas, quase uma religião baseada no PSD, “a voz do Brasil unido”, que fazia dobradinha com PTB – ou do marechal Zacarias de Assumpção – que se aglutinavam na UDN e no PSP.

Nos comícios noturnos, estes agitavam carros alegóricos em forma de gigantescos chinelos:

– Assumpção! Barata, não!

A última palavra em tecnologia tinha acabado de chegar em Santarém: o telefone residencial, pretão, imenso. O nosso ficava em cima do arquivo de aço do escritório do meu pai.

Pouca informação saía ou chegava através dele, mas o tititi das comadres ganhou um novo instrumento, o papo furado se expandiu além dos limites dos botecos e da pracinha.

Mesmo a troca de desaforos ganhou um novo aliado. Como meu irmão estava sempre trocando sopapos com Manoel, vizinho da casa ao lado, mamãe e a dona Mary, em vez de ir para a porta da rua bater boca, passaram a fazer isso pelo telefone.

O recorde de chamadas deve ter sido naquela tarde que mudou tudo na minha casa. Mamãe saiu e ficamos na varanda ali numa boa com a Ismênia, que sumiu da nossa vista.

Daí a pouco ouvimos um bafafá no quarto dos meus pais. Mamãe tinha voltado e encontrado papai e Ismênia na cama, na maior farra de cobertor.

Eu não conseguia entender nada daquela confusão. Só ouvia os gritos da minha mãe. Papai saiu do quarto e mamãe continuou gritando com a Ismênia lá dentro. Aí, mamãe saiu atrás de papai, eu atrás dela.

Ele estava no escritório, descalço, sem camisa, sentado numa cadeira. Parecia brincar com a Mauser, que ganhara de presente de seu Elias Hage, apontada na têmpora.

Mamãe deu um berro, voou pra cima, bateu na mão dele, a arma disparou. Corri também, e ele continuava ali sentado, o olhar perdido, um filete de sangue na testa. A bala fez um buraco redondíssimo na porta de vidro de uma estante.

Não demorou um segundo, nossa porta estava coalhada de gente que ouviu o disparo. Logo, o padre Prudêncio, que fiscalizava a vida de Deus e do mundo, adentrou o escritório, de batina marrom-escura e alpercatas:

– Meu filho, por que isso?

Papai recobrou a cor, a dignidade e, com uma energia furibunda, botou pra correr o padre Prudêncio, que antes da missa ia conferir se as mulheres estavam compostas, com véus sobre os ombros e tudo mais, senão botava pra fora.

Na Sexta-Feira Santa, ninguém podia dar um pio, todos os móveis e imagens eram cobertos com pano escuro, as matracas batiam sem parar do meio-dia às 3 da tarde.

E a imagem de gesso do Cristo crucificado? Bastava atravessar a rua para encontrá-la, deitada, o ano inteiro, na sacristia.

Meus pais, graças a Deus, não eram nada religiosos. Mas, durante boa parte da infância, me assombrava a história da menina que virou sal, que vivia atrás da porta da igreja porque ergueu a mão contra os pais.

Assim, por isso tudo, foi bonito ver o padre enxerido sair com o rabo entre as pernas. Não levei nem em consideração que ele me crismou, tendo como padrinho São Jorge e, como representante do santo guerreiro, seu Elias Hage.

Nós, ainda sem entender nada, ficamos com a Ismênia, que não dizia palavra, na janela do quarto de meus pais, que dava para uma parreira. (Imagine, uvas em Santarém!)

Era a última vez que ficávamos assim juntos. Quando a poeira baixou um pouco, a primeira providência de minha mãe foi proibir, com implacável determinação, a produção e o consumo de goiabada em nossa casa.

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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