Por Rubem Braga
Entre os números que contam a grandeza do município de Cachoeiro de Itapemirim há este, de espantar o leitor distraído: 25 379 pios de aves anualmente. Não, a prefeitura não espalhou pela cidade e distritos equipes de ouvidores municipais, encarregados de tomar nota cada vez que uma avezinha pia. Trata-se de pios feitos por caçadores. E quem os faz é uma família de caçadores de ouvido fino – os Coelho, cujas três gerações moram na mesma e linda ilha, onde o rio se precipita naquele encachoeirado, ou cachoeiro, que deu nome à cidade.
Trata-se de um artesanato sutil; não lhe basta a perícia técnica de delicados torneiros que faz, desses pios bem-acabados, pequenas obras de arte; exige sensibilidade que há de estar sempre aguçada. Direis que é uma arte assassina; e na verdade, incontáveis milhares de bichos do Brasil e da América do Sul já morreram por acreditar, em um momento de fome ou de amor, naqueles pios imaginados entre os murmúrios de Itapemirim.
Dizem que os Coelho, fazem até, em segredo, pios para caçar mulher. Famosa caçada é essa, em não raro é o caçador a presa da caça. Não sei. Ainda que eu seja Coelho pela parte de mãe, devo ser de outro ramo, visto que nunca me deram um pio desses. Nem quero.
De minha família acho que saí mais ao segundo tio. Quinca Cigano, nascido na lavoura mas vivido pelos caminhos, e que vivia de barganhar. Barganhava uma coisa por outra, e depois mais outra: e não sei o que arrumava, que depois de muito andar pelo mundo, voltava sempre ao Cachoeiro, tendo apenas de seu um cavalo magro e triste. Chegava sempre de noite, como um ladrão; e, como um ladrão, dava a volta por cima do morro e ficava parado, no escuro, atrás da tela da cozinha, esperando. Quando minha mãe ia à cozinha fazer o último café, Quinca Cigano, lá do escuro, murmurava seu nome. Ela se assustava; mas ele logo dizia, com sua voz que a poeira dos caminhos e a cachaça das vendinhas faziam cada vez mais rouca: “É Quinca”.
Entrava; recebia, calado, comida para ele e seu cavalo. Tomava um banho, dormia – e de manhã cedo, de roupa limpa e barba feita, estava na sala de visitas conversando com meu pai. Movendo lentamente sua cadeira de balanço, meu pai lhe dava um cigarro de palha, e perguntava: “Então, Quinca?” Ele dizia que ia voltar para a família, para o sítio; agora queria derrubar aquela mata que dava para o sítio do Sobreira, formar um cafezal; ia fazer uma manga maior para os porcos; e comentava o preço do arroz e a queda das chuvas. Meu pai o ouvia, muito sério. Sabia que Quinca era sincero naquele momento; e também que alguns dias depois ele sumiria outra vez pelo mundo, no trote do seu cavalo, o cigano solitário.
Feito Quinca Cigano, eu também só tenho caçado brisas e tristeza. Mas tenho outros pesos na massa de meu sangue. Estou cansado; quero parar, engordar, morrer. Que os Coelho da ilha me arranjem um pio, não para caçar mulher, mas para caçar sossego. Deve ser um pio triste, mas tão triste que, a gente piando ele, só escute depois, nesse mato inteiro, um grande silêncio, o silêncio de todos os bichos tristes. Eu não quero, como Quinca Cigano, sair pelo mundo caçando passarinho verde. Passarinho verde não existe; e quem disse que viu, ou ensandeceu ou mentiu.
(Crônica publicada em maio de 1951)