Setembro de 2002. O cantor de toadas Arlindo Jr., o “Pop da Selva”, encerra sua apresentação no Festival da Canção de Itacoatiara (Fecani) por volta das 6h da manhã de uma sexta-feira. Ele havia entrado no palco por volta da meia-noite de quinta-feira e cantara umas 80 músicas. Estava exausto.
Turbinados por pó de guaraná com mirantã, os músicos e dançarinos de sua banda estão com a aparência de zumbis do Boris Karloff na “Ilha dos Mortos”: exaustos, famintos, suados, sedentos e com cara de quem não dorme direito desde o Pleistoceno superior.
Num derradeiro esforço, os zumbis começam a desarmar o circo. Meia hora depois, o som estridente de um celular interrompe o silêncio do ônibus que levava a turma para o hotel. Do outro lado da linha, alguém aperta o empresário Robson Roberto:
– Escuta, porra, o comício está confirmado para as oito da noite. Vocês têm de estar aqui antes das sete senão vai dar a maior merda. O Eduardo está puto da vida com essa lambança de vocês irem tocar aí no Fecani. Ele disse que, se fosse numa guerra, vocês seriam fuzilados por deserção e alta traição…
O empresário do “Pop da Selva” começa a suar frio. Ele simplesmente havia esquecido do comício do candidato a governador Eduardo Braga marcado para as 20h daquela sexta-feira na cidade de Codajás. Começa uma corrida contra o tempo.
De barco, eles levariam dois dias para chegar à Terra do Açaí. De avião, levariam apenas uma hora, mas para acomodar todo o pessoal e as tralhas da aparelhagem de som teriam de fretar um Boeing – coisa que o aeroporto de Itacoatiara não conhece nem de cumprimentar.
O jeito era nem perder tempo escovando os dentes: ir de ônibus até Manaus (260 km), atravessar o rio Negro de voadeira até Iranduba (10 km), pegar um ônibus de Iranduba a Manacapuru (86 km) e ir de Manacapuru a Codajás de voadeira (120 km). Com sorte, chegariam à cidade antes das oito da noite.
Sem outra alternativa, Robson Roberto mandou o motorista de ônibus esquecer o hotel e ir direto para Manaus. Os zumbis estavam tão cansados que não conseguiram nem abrir a boca para reclamar – desabaram nas poltronas do ônibus como baratas atingidas por detefon.
As gêmeas – e que gêmeas! – Samara e Samanta Macedo, dançarinas e sex-symbols em tempo integral, limitaram-se a pedir band-aids para aliviar os calos e as bolhas nos pés, antes de desmaiarem de sono. Sem compreender direito o que estava acontecendo, a backing vocal Luana ficou fazendo gargarejo com água, sal e limão, antes de desmaiar de fome.
O “Pop da Selva”, entretanto, estava possuído por uma legião de exus devido ao tratamento escravocrata dispensado aos músicos pelo empresário, e reclamava uma barbaridade. Só não foi para o tronco, receber as quinze chibatadas tradicionais, porque o ruhpynol com fanta uva, servido por Robson Roberto, fez efeito imediato. Arlindo Jr. dormiu como um porco da mão branca.
Quando os zumbis abriram os olhos, estavam sendo carregados por estivadores mal-humorados e, literalmente, sendo empilhados como pélas de seringa em duas deslizadeiras e uma voadeira no porto de Manacapuru. O relógio marcava quatro horas da tarde e Robson não escondia o nervosismo.
Aos berros, ele distribuía os músicos nas pequeninas embarcações de acordo com o peso e orientava para que os fumantes não viajassem nem perto do combustível reserva nem perto dos fogos de artifício. Alguns recalcitrantes, que exigiam bobagens como coletes salva-vidas, tiveram de ser embarcados sob a mira de uma escopeta serrada carregada com balas dundum. As gêmeas – e que gêmeas! – se abraçaram e começaram a chorar baixinho.
Arlindo Jr. e os seis dançarinos ocuparam a menor deslizadeira (dois metros, o tamanho de uma geladeira Cônsul), que levava o combustível reserva. Os quinze músicos ocuparam a deslizadeira de tamanho médio (2,5 metros, o tamanho de um fusquinha Baja), que levava os fogos de artifício.
As três mulheres, os quatro seguranças e o empresário embarcaram na voadeira – na verdade, uma deslizadeira de três metros, com um toldo de plástico vagabundo –, que levava os equipamentos de som e instrumentos.
Os três barcos partiram de Manacapuru ao mesmo tempo. Pelos cálculos dos pilotos, eles chegariam a Codajás por volta das sete da noite.
Três horas depois, em meio a uma escuridão de assustar lobisomens, o “Pop da Selva” descobre que seu barco se desgarrou do resto do comboio. Pra completar, o piloto estava fazendo aquela rota pela primeira vez e tinha esquecido de levar uma lanterna. O barco estava perdido no meio do Solimões e sem nenhum meio de comunicar-se com os outros barcos.
A legião de exus voltou de maneira triunfal. Arlindo Jr., cada vez mais possesso, queria quebrar o pescoço do piloto. Alguns dançarinos começaram a chorar afetadamente. Outros, numa crise histérica, começaram a entoar mantras indianos.
Uma hora depois, eles avistaram algumas luzes no horizonte cada vez mais escuro e escutaram barulhos de fogos de artifício. Eram os dois barcos esperando os retardatários.
Mal o barco de Arlindo encostou na voadeira, a bela Luana, chorando estrepitosamente, se atirou na direção do “Pop da Selva”. “Eu não agüento mais, Arlindo, pelo amor de Deus, eu quero ir embora!”, berrou a backing vocal.
“O que aconteceu?”, indagou Arlindo, agarrando Luana pelos cabelos e evitando, por um triz, que ela se atirasse no Solimões e fosse morar no reino dos encantados.
“Só porque a gente bateu num pau maceta e quase que o barco vira, ela ficou desse jeito…”, contemporizou Robson Roberto.
Agarradas no fundo da voadeira, as gêmeas – e que gêmeas! – estavam petrificadas. Tinham virado estátua de sal.
Arlindo tentou serenar os ânimos: “Pô, Luana, se toda vez que bater num pau maceta você ficar nesse estado, mana, você vai acabar ficando no caritó!”.
Luana, que estava quase surtando, tentou pular n’água mais uma vez, mas foi contida pelos seguranças. Depois, entrou em estado de catatonia e sossegou o facho.
A situação era desesperadora. O combustível dos três barcos estava no fim. As luzes não eram de Codajás, nem de Anori, mas de Beruri. Ninguém sabe como, mas eles haviam atravessado o Solimões e estavam indo em direção ao Purus. Só iriam atingir Codajás depois que dessem a volta ao mundo.
Um dos barcos possuía uma lanterna, mas era tão vagabunda que o facho de luz se recusava em sair do bem-bom para cair n’água dois metros adiante. As hordas de piuns, carapanãs e meruins estavam fazendo um bacanal naqueles corpos cansados e incapazes de reagir.
Como desgraça só presta de bom tamanho, Robson Roberto, na pressa, esquecera de providenciar água e alimentação para os passageiros. Aquilo era o começo do fim do mundo.
O “Pop da Selva” teve de fazer a escolha de Sofia: colocar todo o combustível restante numa única deslizadeira para que ele e o piloto mais experiente tentassem chegar em Codajás e pedir ajuda. Robson concordou, mas fez questão de ir junto.
Entretanto, como não dava para todo mundo ficar esperando nos outros dois botes, os quatro machos mais corajosos foram instados a imitar os heróis do Titanic, ou seja, corpo dentro d’água, mexendo as pernas para afastar as piraíbas, mãos nas bordas, sem muita pressão para não adernar as embarcações, e fé, muita fé em Deus.
Alguns recalcitrantes, que exigiam bobagens como coletes salva-vidas, tiveram de cair n’água sob a mira de uma escopeta serrada carregada com balas dundum. As gêmeas – e que gêmeas! – começaram a puxar um ponto riscado da pomba-gira Cigana.
A essa altura do campeonato, o comício de Codajás já havia acabado e na casa do prefeito Lincoln Dib o ambiente era de velório. Diversos barcos, lanchas e deslizadeiras fizeram uma busca no entorno da cidade, vasculhando os paranás, baixios, igapós, lagos e “furos”, sem resultado. Eduardo Braga havia mobilizado do FBI ao Sivam, mas ninguém sabia do paradeiro do “Pop da Selva”.
Por volta da meia-noite, quando a lancha do deputado federal Átila Lins se preparava para deixar a cidade, conduzindo a comitiva de Eduardo Braga de volta para Manaus, o cantor e o empresário surgiram no cais do porto, mais mortos do que vivos. Os dois sobreviventes do inferno foram embarcados na lancha, que partiu imediatamente em busca do restante da turma.
Os outros zumbis só foram resgatados por volta das três horas da madrugada, graças aos disparos de fogos de artifício que estavam fazendo para espantar os meruins, carapanãs e piuns, agora reforçados por duas divisões panzer de mutucas assassinas.
Mal entraram na lancha, eles dirigiram-se para a despensa da embarcação, dispostos a dar vazão à fome canina e à sede tirana que os atormentavam há pelo menos dezoito horas seguidas.
Quebraram a cara. Na geladeira da lancha havia apenas um pedaço de pizza de calabresa, já apresentando mofo, um copo de iogurte pela metade e uma latinha de água tônica, com o prazo de validade vencido.
O “Pop da Selva” ficou transtornado com a avareza do deputado Átila Lins, mas desmaiou de fome no terceiro chilique. O restante da turma ficou prostrada no chão.
Como a lancha do deputado não podia desenvolver a velocidade máxima porque estava rebocando as três deslizadeiras, o sufoco dos zumbis só terminou às nove horas da manhã de sábado, no cais do porto de Manaus. Foi quando o empresário Robson Roberto, numa rara demonstração de generosidade, pagou um prato de sopa de mocotó para cada um.
O milagre da sobrevivência mudou a vida de muita gente. A bela Luana deixou a banda e se isolou num mosteiro, no Himalaia.
As gêmeas – e que gêmeas! – pretendiam gravar um disco samba-funk de macumba, mas acabaram virando cantoras evangélicas.
Os dançarinos fizeram um pacto de sangue e foram vistos pela última vez fazendo o caminho de Santiago.
O “Pop da Selva” se tornou um frequentador assíduos das novenas na Igreja de Santa Rita, na Cachoeirinha, e se elegeu vereador de Manaus.
Robson Roberto virou proprietário do Café Cancun.
Agradecidos por não terem presenciado o show musical da banda, os eleitores de Codajás fizeram de Eduardo Braga o candidato mais votado do município…