Por Simão Pessoa
Fevereiro de 1984. Por volta do meio-dia do domingo gordo de Carnaval, o contabilista Olíbio Trindade (aka “Olíbio Xiri”), acompanhado do gorducho advogado Zé Augusto, apareceu no Bar do Aristides fantasiado de mulher totalmente “divina maravilhosa”.
Olíbio estava de saia rodada estampada, bustiê amarelo-canário, colares, pulseiras (“escravas”) e brincos de argola, que lhe davam um insuspeitíssimo ar de cartomante cigana.
Zé Augusto estava fantasiado de melindrosa de cinema mudo, com direito a piteira e peruca Chanel.
Dali a meia hora, dois cunhados de Olíbio, os irmãos Mazinho e Nilsinho, também apareceram no boteco, fantasiados do mesmo jeito – Mazinho de tailleur de executiva, o que incluía salto alto de 15 cm, e Nilsinho, de Carmem Miranda, com direito a turbante na cabeça com arranjos de frutas tropicais. Olíbio explicou a presepada:
– A Emamtur liberou a Avenida João Alfredo pro desfile de blocos de sujos até às 18h. Uns dez amigos do Nilsinho vão se fantasiar de mulher e a gente ficou de se encontrar com eles na avenida pra zoar um pouco. Nós quatro vamos no meu carro. A gente vai estacionar ali no Boulevard Amazonas e ir andando até cair na gandaia. Você não está a fim de ir não?…
Eu já estava meio calibrado e o Olíbio estava com uma sacola dentro do carro que ainda continha meia dúzia de perucas. Arranjar um vestido era o de menos.
Perguntei do meu irmão Simas Pessoa, que bebia comigo, o que ele achava da ideia:
– Bicho, se tu fores eu também vou! – garantiu.
Cada um de nós dois colocou uma peruca na cabeça e continuamos bebendo.
Dali a pouco, surgiu no boteco o Rubens Bentes e estranhou o fato de estarmos usando perucas de mulher. Expliquei o plano. Ele já foi pegando uma peruca na sacola e colocando na cabeça.
O Arlindo Jorge chegou dali a pouco, se inteirou da história e também colocou uma peruca na cabeça.
O Rubens providenciou vestidos, saias e blusas de suas irmãs.
Nós trocamos de roupa no próprio bar, sob o olhar de reprovação do pessoal que jogava sinuca.
Meia hora depois, Raquel, uma das irmãs do Rubens, subiu a ladeira e entrou no boteco para nos maquiar.
Haja sombras, cílios postiços, pó-compacto, blush, glass, delineador e batons em cores escandalosas.
Ela gastou metade do seu estojo da Avon, mas nos transformou em travestis de classe mundial.
Compramos quatro caixas de cerveja em lata, colocamos duas em cada carro e fomos pra guerra.
No carro do Arlindo, ele, Simas, eu e Rubens.
No do Olíbio, ele, Mazinho, Nilsinho e Zé Augusto.
Deixamos os carros ao lado do cemitério São João Batista e assim que começamos a caminhar em direção ao fuzuê, Rubens teve uma ideia brilhante:
– Vamos protestar contra a política econômica do general Figueiredo. Em vez de jogar confete na multidão, nós vamos jogar feijão e arroz…
Nem discutimos. Entramos em uma mercearia e cada um comprou um saco de 10 kg de feijão jalo (o mais caro) e outro de arroz agulhinha perbolizado (também o mais caro).
Nos juntamos a uma turma de uns vinte sujeitos também fantasiados de mulher, que estavam vindo do centro da cidade e possuíam alguns instrumentos de percussão, e adentramos a passarela do samba. Viramos amigos de infância dos sujeitos.
Desconfio de que o nosso bloco de sujos foi o que causou mais confusão interativa com a plateia.
É que em vez de jogar feijão e arroz sobre a assistência, nossos novos amigos nos convenceram a dar o alimento para os interessados.
A gente parava em frente a um lance da arquibancada e perguntava:
– Vocês querem feijão? Vocês querem arroz?…
Sei lá como, mas de repente apareciam vários sacos plásticos vazios estendidos pelos populares.
A gente colocava uns 200 gramas de feijão e de arroz em cada um deles e prosseguíamos a caminhada.
No meio do desfile, o nosso estoque acabou.
Sem querer, havíamos distribuído 160 kg de alimentos para as pessoas carentes.
Se tivessem 500 blocos iguais ao nosso, teríamos erradicado a fome da cidade naquele dia.
Por volta das 18h, retornamos pra Cachoeirinha. Quando passávamos em frente ao Cine Ypiranga, Olíbio fez sinal pra gente parar.
Estacionamos os carros e fomos beber em frente ao Clube Ypiranga, que estava ultimando os preparativos para seu carnaval daquela noite.
Aos nos verem fantasiados daquele jeito, a Turma do Pitombão, ali da Av. Castelo Branco, foi à loucura.
Muito deles tinham vontade de fazer aquilo, mas nunca tinham tido coragem.
Conversaram animadamente com a gente, querendo saber os detalhes daquela experiência inédita.
No ano seguinte, a Turma do Pitombão, tendo na linha de frente Romito, Reinaldo, Jairo Caramanho, Belisca, Gilberto, Edinho, Vladimir Brother e Fonseca, se fantasiou de mulher, alugou um trio elétrico, colocou uma Miss Simpatia em cima (o fantástico Gilson Brabo, de biquíni prateado, peruca loura, coroa, cetro e faixa) e se dirigiu ao Bar do Aristides, onde já havia uns cem sujeitos fantasiados de mulher.
Nascia o bloco “Aluga-se Moças”, que desfilava pelas principais ruas do bairro, depois se dirigia até a Av. João Alfredo, atravessava a passarela do samba de ponta a ponta e retornava para o Clube Ypiranga, numa verdadeira maratona etílica.
O nome do bloco, com aquele espetacular erro de concordância, era uma homenagem ao filme homônimo de pornochanchada estrelado por Gretchen, Rita Cadillac e Xuxa Meneghel, e foi batizado pela Turma do Pitombão.
Nos últimos desfiles em que participei, no final dos anos 80, o gigantismo do bloco já começava a assustar os desavisados.
Eram cerca de três mil foliões, os homens invariavelmente fantasiados de mulheres e as mulheres, fantasiadas de homens.
Apesar do grande consumo de álcool nunca houve brigas, provavelmente porque quase todos os brincantes também desfilavam no GRES Andanças de Ciganos.
O desfile do bloco, entretanto, dava muita dor de cabeça para a nossa eterna Miss Simpatia.
Espada-matador juramentado em cartório, Gilson Brabo não bebia e nem fumava, mas aceitava desfilar de miss, numa boa.
Pra complicar, sua família era evangélica.
Depois de quatro horas sob um sol escaldante, as marcas brancas do minúsculo sutiã e da faixa de miss em sua pele bronzeada eram uma bandeira e tanto.
Gilson Brabo passava seis meses sem tirar a camisa na frente dos parentes, para não ser excomungado pelo seu “suposto” homossexualismo enrustido.
Mas, no ano seguinte, se apresentava espontaneamente para passar pela mesma provação. Um santo!
Em meados dos anos 90, Arlindo Jorge e Sici Pirangy deram um golpe de estado na agremiação informal, apearam Romito da direção do bloco e eles próprios assumiram o controle da brincadeira.
Desde a sua fundação, era Romito que contratava o trio elétrico, convocava os brincantes e providenciava a documentação necessária para o bloco desfilar pelas ruas.
Injuriado com a desfeita, Romito abandonou o barco.
Ocorre que Sici e Arlindo não conseguiram contratar um trio elétrico, não convocaram os brincantes e nem providenciaram a documentação necessária para a zoeira ocupar as ruas da cidade.
Resultado: o bloco simplesmente deixou de existir. Choses.
Nossa Cachoeirinha de tantos contrates, nossa geração formou homens de valor, profissionais de renome em nossa sociedade e também operários valorosos que ajudam na construção de uma sociedade melhor
Parabéns Simão pessoa, por nos fazer voltar ao passado revivendo belos momentos de nossa juventude
Tô esperando o comentário sobre o gordo e o magro (Aníbal e Inácio), na foto dá pra sentir o enxirimento do gordo e saia justa da Inácio.
Lembro que até minha mãe d. Maria Bentes sorriu com tamanha sem-vergonhisse.😄