Caxuxa Blues

A incrível história de Selmo Nogueira e a 1ª edição da Banda da Caxuxa

Postado por Simão Pessoa

Por Simão Pessoa

Filho de Sebastião Ramiro e Ozina Nogueira (aka “Dinoca”), Raimundo Selmo Nogueira (aka “Selmo Caxuxa”) nasceu em Santarém (PA), no dia 1º de fevereiro de 1938. Boêmio e farrista da pesada, Sebastião abandonou a família quando Selmo tinha apenas quatro anos. Ele nunca mais voltou a ver o pai. Dinoca era a única mulher em uma turma de seis irmãos: ela, Hilário, Antônio, Raimundo, Elísio e Brígido Nogueira. Em busca de uma vida melhor, seus irmãos mais velhos se mudaram para Manaus.

Em 1944, Dinoca também se mudou para Manaus, trazendo na bagagem o filho único. Para garantir os proventos da casa, Dinoca trabalhava como lavadeira, cozinheira e empregada doméstica em casas de família. Ela havia se casado com Sebastião no mesmo ano em que seu irmão Hilário se casou com a jovem Orminda. Os dois fizeram um pacto: se algum dia eles ficassem viúvos, nenhum dos dois voltaria a se casar de novo e seus filhos seriam criados juntos, como se fossem irmãos.

Em Manaus, a bonita Dinoca teve outros dois filhos, frutos de relacionamentos casuais: Sérgia e Afonso. Por sua vez, Hilário e Orminda tiveram cinco filhos: Helvécio, Olga, Stanislaw, Ismelinda e Maria Gertrudes.

O boêmio Sebastião morreu afogado em Santarém, durante uma crise de epilepsia, quando participava de uma farra na praia do Rio Tapajós. Selmo estava com 11 anos. Coincidentemente, no mesmo ano, dona Orminda era vencida por um câncer intestinal. Os dois irmãos viúvos juntaram todas as oito crianças na casa de dona Dinoca e os moleques foram criados como irmãos, sob o mesmo teto.

Para ajudar no sustento da nova família ampliada, Selmo, o mais velho de todos, começou a trabalhar. Foi engraxate, vendedor de picolé, ajudante de pedreiro, operário da construção naval no Estaleiro Amazonas, balconista da empresa Souza Arnaud e vendedor das Casas Pernambucanas. Por insistência do advogado Flávio de Castro, ele havia passado no exame de admissão da ETFA, mas se desiludiu com os estudos técnicos durante o ginásio e abandonou a escola. Só muitos anos depois, ele concluiu o curso ginasial no Colégio Dom Bosco.

Em 1956, durante um baile no Clube Ypiranga, Selmo ficou simplesmente hipnotizado quando colocou os olhos em uma bela morena ostentando um decotadíssimo vestido de linho azul, que se encontrava tomando refrigerante em uma das mesas do recinto. Depois de algumas cubas-libres na cabeça e muita insistência para tirá-la para dançar (a morena se recusava peremptoriamente, alegando que não sabia dançar “colado”), Selmo conseguiu levá-la ao salão sob os acordes de “Only You (And You Alone)”, na voz marcante do The Platters. Quando a música terminou, os dois estavam irremediavelmente apaixonados. A morena se chamava Telma Vieira e tinha 17 anos. O pé-de-valsa Selmo Nogueira tinha 18 anos.

Alguns anos depois, ao ser demitido sem justa causa das Casas Pernambucanas, Selmo decidiu que nunca mais iria ficar atrás de um balcão obedecendo às ordens de um patrão. Ele mesmo seria seu próprio patrão. Selmo começou a comprar sacos de farinha no atacado e a vender no varejo, nas feiras livres de Manaus. Depois entrou para o ramo de compra e venda de arroz, feijão, verduras, legumes, peixes, ovos e galinhas. Cada vez mais apaixonado, ele se casou com dona Telma, em dezembro de 1960, adquiriu um terreno na Rua J. Carlos Antony, entre as ruas Borba e Carvalho Leal, levantou uma pequena casa de madeira e se estabeleceu no lugar.

Selmo Nogueira e o folgado garçom Marcha Lenta

Foi quando um de seus primos, o bancário Elísio Nogueira, o convenceu a participar de um concurso para escriturário temporário no Banco da Amazônia (Basa). Selmo fez o concurso e foi aprovado. Um ano depois, ele fez um concurso interno na instituição e se transformou em escriturário efetivo. Militante do proscrito Partido Comunista Brasileiro (PCB), Selmo costumava comprar a revista Novo Rumo, editada pelo partido, e emprestá-la para os funcionários do banco. Ele também fazia trabalho de proselitismo político junto aos feirantes da cidade.

A “Redentora” veio alcançá-lo, em 1964, como chefe de Carteira do Basa. Demitido, sumariamente, pelo seu envolvimento com o Partidão, Selmo ficou desempregado de uma hora para outra e já tendo duas filhas para criar (Socorro e Wânia). O lendário advogado comunista Francisco Alves, especializado em questões trabalhistas, saiu em seu auxílio e entrou com um processo contra o banco que se estendeu por três anos.

Para sobreviver, Selmo montou um pequeno quiosque em frente à sua residência, onde vendia bolinho de trigo (“filhós”), banana frita, bolo de macaxeira, tapioca doce, bolo de milho, canjica e mungunzá, acompanhado de refresco de frutas regionais. A única bebida alcóolica que vendia era a famosa “caipirinha” de Cocal, servida exclusivamente para meia-dúzia de cobradores de ônibus, seus antigos camaradas de Partidão.

Em 1967, quando finalmente o Basa resolveu lhe indenizar, Selmo já estava quase matando cachorro a grito. O dinheiro arrecadado no quiosque mal dava para manter o básico da sobrevivência da família. Para ajudar nas despesas, Telma estava trabalhando como enfermeira. Assim que colocou a mão na bufunfa, Selmo comprou uma alcova completa e um jogo de cozinha para presentear a esposa. Aí, disposto a nunca mais ser empregado de ninguém, transformou o pequeno quiosque no imponente Caxuxa Drinks e Lanches. Em menos de um ano, Selmo já havia se transformado no melhor barman da Cachoeirinha. Suas “batidas” mágicas eram disputadas a tapa.

Irmão caçula de dona Dinoca, seu Brígido casou com dona Glória, teve 18 filhos: Vicente, Geraldo, Ana, Fátima, Aparecida, Cláudio, Tomaz, Elisa, Brígido Jr., Maria de Jesus, Maria da Glória, Mário Roberto, Deolinda, Hilário, Edneide, Maria da Piedade e as gêmeas Ana Lúcia e Ana Cristina. Vicente Nogueira foi secretário estadual de Educação. Geraldo Nogueira estudou comigo na ETFA e na Utam. Tomaz Nogueira é ex-superintendente da Suframa e ex-secretário estadual de Fazenda.

Durante a adolescência, a hoje assistente social Aparecida (“Cida”) teve um namorico com o Mário Adolfo – um dos poucos sujeitos que conheço a namorar uma moradora do bairro de Aparecida sem ser nativo da área e sobreviver para contar a história. A Cida era uma das melhores amigas da Veremity, mãe da minha filha Marisa, e tomamos juntos alguns porres federais em São Paulo, durante um congresso nacional de Assistentes Sociais.

Irmã de dona Glória, dona Helena casou com seu José Cyrino Dantas e teve seis filhos: Vânia, Conceição (“Ceita”), José Cyrino Dantas Jr. (“Zeca”), Ana Coeli, Publio Caio e Mona Helena. Ex-secretário municipal de Educação, José Cyrino foi meu contemporâneo no ICHL, ele fazendo Filosofia, eu fazendo Administração. Somos amigos até hoje.

Irmã de dona Helena, dona Adelaide casou com seu Ulimar Vanderley e teve três filhas: Lucia Helena, Ana Lucia e Claudinha. Eles moravam na Avenida Carvalho Leal, nas proximidades da casa da dona Magnólia Figueiredo. Lucia Helena casou com Jefferson Coronel, Ana Lúcia casou com Caio do Cavaco e Claudinha casou com Edu do Banjo.

Irmã de dona Adelaide, dona Elisa casou com seu José Ribamar e teve 11 filhos: José Ribamar Bessa Freire (aka “Babá”, do invocado site Taqui Pra Ti), Regina, Helena, Estela, Ângela, Ricardo, Roberto, Aparecida, Celeste, Elisa e Maria do Céu. O jornalista Mário Adolfo foi aluno do Babá no ICHL e depois trabalhou com ele na redação do jornal Porantim, de defesa da causa indígena. Eu conheci o Ricardo e o Roberto Bessa no ICHL e nos tornamos amigos já se vão mais de três décadas. Quer dizer, tudo índio, tudo parente.

Em janeiro de 2012, Selmo Nogueira resolveu abandonar sua aposentadoria das noites boêmias para fundar a Banda da Caxuxa, com concentração no Bar do Jacó, na terça-feira gorda, a partir do meio-dia. Fui logo transformado em diretor musical, com a incumbência de escrever o hino da banda, tarefa logo transferida para o jornalista Mário Adolfo, o maior campeão de marchinhas de carnaval de Manaus.

Na verdade, era para ser um convescote de 30 ou 40 amigos de adolescência curtindo as reminiscências setentista do botequim mais charmoso do bairro. Não deu certo. Graça ao trabalho incansável das irmãs Socorro e Wânia, filhas do patrono da banda, o marco zero da Banda da Caxuxa tornou-se uma muvuca de dimensões gigantescas, com quase 200 foliões batendo ponto no pedaço.

Foram elas que providenciaram as cópias do CD com a marchinha feita por Mário Adolfo, Edu do Banjo, Duduzinho do Samba e Mestre Pinheiro, as faixas anunciando o evento, as camisetas padronizadas e os acepipes 0800 servidos perdulariamente para os presentes (caruru, maniçoba, galinha à cabidela, pato no tucupi, pernil de cordeiro com feijão-branco, arroz de mariscos, iscas de tambaqui, bisteca suína frita, yakisoba de frutos do mar, lasanha à bolonhesa, farofa de jabá, salaminhos, calabresas, queijos de todos os tipos, espetinhos de brigadeiro, pavê de cupuaçu, torta cremosa de morango e por aí afora).

Confesso que fiquei apreensivo. Em 1987, ano de fundação da Banda Independente Confraria do Armando (BICA), o evento reuniu menos de 100 pessoas. Um ano depois, cerca de 1.500 “biqueiros” participavam da fuzarca. Torço para que a Banda do Caxuxa não tenha esse destino ultrajante, porque, em termos de carnaval, menos é sempre mais. Na adolescência, a gente invadia os bailes carnavalescos em alcateias de 25 lobos famintos sabendo de antemão que o objetivo final seria ficar sozinho com uma foliã, de preferência longe do salão e da alcateia. Volto a insistir: no carnaval, menos é sempre mais.

Em outras palavras, numa festa carnavalesca com no máximo 200 pessoas, como a da Banda da Caxuxa, a chance de ocorrer algum desentendimento é próxima de zero. Com mais de 200 pessoas, já será necessário contratar uma equipe de segurança para manter a ordem no covil e providenciar uma dezena de banheiros químicos para que a rua não se transforme em uma fedentina inominável. Ninguém pretende chegar a esse extremo.

O marco zero da Banda do Caxuxa foi legal por isso: pessoas bebendo civilizadamente, velhos amigos se reencontrando (eu não via o Airton, que jogou futebol comigo e com o Luiz Lobão na seleção da Sharp, desde 1978), poucos bêbados chatos enchendo o saco e uma trilha sonora onde dava para conversar sem gritar.

Entre os presentes na muvuca estava o eterno playboy Odivaldo Guerra, que serviu o exército com Selmo Nogueira e não falava com ele há duas décadas. Considerado o homossexual mais antigo do bairro e ainda em atividade, o fabuloso Zezinho Joinha, com uma exuberante calça zebrada na cor vermelha, não parou de saracotear um só instante e foi transformado logo na musa da banda. O aloprado Iran, de peruca anos 70 e bermuda vermelha, quase fez a nossa musa entrar em coma alcoólica de tanto lhe servir cerveja morna em uma caneca absolutamente surrealista e de formato impróprio para menores.

As famílias Nogueira e Bessa baixaram em peso no fuzuê. A velha guarda do bloco Andanças de Ciganos (Mestre Louro, Mazinho, João Orelhinha, Afonso e Helvécio, entre outros) também marcou presença no buchicho. O fotógrafo-sambista Mestre Pinheiro clicou o evento e, como soe acontecer sempre nessas ocasiões, chegou ao local depois de eu já ter ido embora. É bem provável que daqui a dez anos alguns despeitados tenham a petulância de garantir que eu não estava no fuzuê porque não ficou nenhum registro de minha presença na festa. Na verdade, cheguei no horário determinado (meio dia), detonei uma garrafa de uísque e fui embora por volta das 18h, porque já estava trilouco.

O improviso, como sempre, foi o carro-chefe na preparação do primeiro ano da banda. O CD com a marchinha oficial escrita pelo Mário Adolfo só ficou pronto uma semana antes da festa, apesar de o Caxuxa ter pagado o estúdio com duas semanas de antecedência. No sábado gordo, a banda de metais que a gente ia contratar avisou que tinha assumido outro compromisso e nos deixou na mão. Para nossa sorte, o cantor Mika de Manaus estava presente no ensaio geral e se prontificou em nos emprestar a sua aparelhagem de som. Foi também ele quem telefonou para o Maestro Malheiro e o contratou para fazer três horas de som no único horário ainda disponível do músico na terça-feira gorda: do meio-dia às três da tarde.

Os diretores da banda (Arlindo Jorge, Sici Pirangy, Newton, Vladimir Brother, Marlon, etc.) se cotizaram na hora e levantaram R$ 400,00 para o cachê do músico. Nós ainda pagamos R$ 100,00 ao Joel dos Ciganos pelo serviço de remixagem em estúdio da marchinha oficial gravada por Edu do Banjo e Duduzinho do Samba. O vocalista Val do Cio da Terra se comprometeu em arregimentar um grupo de músicos para tocar das três da tarde às 17h. Eu e Arlindo Jorge falamos com o advogado Vilson Benayon e emprestamos alguns instrumentos da bateria do GRES Andanças de Ciganos para mais uma hora de baticum, já que havíamos decidido que a brincadeira terminaria por volta das 18h.

Claro que ficou faltando uma bandinha de metais para abrilhantar o evento, mas o Maestro Malheiros deu conta do recado, cantando marchinhas de antanho, frevos, sambas-enredo e algumas versões carnavalescas do forró pé-de-serra. E o que dizer do Mika de Manaus cantando boleros e serestas da época jurássica de outro famoso boteco da Cachoeirinha, o inesquecível Bolero’s Bar? O ponto alto, entretanto, foi ver o quarteto Cordas de Ouro (Val do Cio da Terra nos vocais, Maestro Cabral no violão, Moisés no violão de sete cordas e Sandro na percussão) resgatando antigas pérolas da MPB, com ênfase no repertório de Vinicius & Toquinho. Selmo Nogueira ficou tão emocionado que chegou a lacrimejar.

Muita gente reclamou do show acústico de MPB no meio das folias de Momo, mas isso fazia parte da estratégia de sair um pouco da mesmice. O vereador e coronel PM Paulo Dutra, que levou pra muvuca alguns amigos do Japiim, entre eles o ex-lutador de tele catch Ulisses, o ex-jogador Airton e os empresários Carlão, Dico e Almino, sugeriu que nos próximos anos o evento conte com um palco principal e dois palcos alternativos “para agradar gregos e troianos”.

O ex-barman Selmo Nogueira, eterno patrono da banda, se superou no papel de anfitrião. Entre outras proezas, ele providenciou um panelão de 50 litros da formidável sopa de três sabores que era servida no Caxuxa Lanches e Drinks e comprou dezenas de pratos especiais de isopor para os foliões se servirem. O panelão fumegante foi um dos destaques da muvuca.

Selmo também serviu pessoalmente mais de 200 doses de suas extraordinárias batidas de maracujá, coco, taperebá, amendoim e cupuaçu e, de quebra, ainda me presentou com um litro de batida de taperebá, que levei pra casa e só tomei no aniversário do empresário Sici Pirangy, na semana seguinte. A exemplo dos demais acepipes, as batidas também eram 0800. Diante do banquete gastronômico que estava rolando no evento, Sici Pirangy sintetizou o espírito da banda:

– Porra, Simão, só mesmo na Cachoeirinha para acontecer isso: comida e bebida de graça durante uma festa de carnaval…

É por isso que não queremos que a Banda do Caxuxa se perca pelo gigantismo. Ela precisa manter sua característica de “festa do interior”, aonde os amigos vão para se encontrar e conversar. Eu não fiquei para ver o show da velha guarda dos Ciganos porque uma sereia fantasiada de grumete aportou no pedaço por volta das 17h, me laçou com um nó de marinheiro e me levou pra casa pra me dar um banhinho. Se tudo correr bem, queremos transformar o evento em uma rua de lazer para a garotada, com palhaços, mamulengos e brincadeiras infantis. Ou seja, a terça-feira gorda de carnaval será apenas um pretexto a mais para a gente se reunir, encher a cara de birita, relembrar velhas histórias e conferir os sobreviventes. Evoé, Momo!

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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