Caxuxa Blues

O diabo não manda recado ou o triste fim de um carateca da pesada

Lúcio Carril e Simas Pessoa, meus irmãos pra vida toda
Postado por Simão Pessoa

Por Simão Pessoa

Outubro de 1987. Eu estava tomando umas cervejas no pátio da casa do meu irmão Simas Pessoa, quando surgiu o Antônio Carlos, um de seus amigos de infância e renomado como um dos melhores caratecas daquela geração. Assim que me viu, Antônio Carlos abriu um grande sorriso:

– E aí, poeta, como é que vão as coisas?

E me estendeu sua mão para um cumprimento amigável.

Parei minha mão no meio do caminho porque não havia em que apertar: o braço de Antônio Carlos terminava em um osso pontudo. Ele havia perdido a mão direita na altura do pulso. Percebendo minha hesitação, ele deu um murro no meu ombro com o braço aleijado e avisou:

– Não esquenta não! Todo mundo fica desse jeito quando eu estendo a mão para cumprimentar!

Aí, fazendo uma espécie de malabarismo circense, prendeu uma surrada carteira porta-cédulas entre o braço e o antebraço, na altura do cotovelo do braço mutilado, e retirou de dentro, com a mão esquerda, suas cinco falanges visivelmente ressequidas. Quase vomitei.

– Só restou isso da minha mão direita, poeta! – explicou ele. – Eu guardo esses dedos na carteira como se fossem talismãs…

Antônio Carlos resolveu me contar sua história. Durante a adolescência, em um momento de crise existencial, ele havia feito um pacto com o demo em troca da própria alma para “ser bom de briga, conquistar muitas mulheres e ganhar muito dinheiro”.

Nos primeiros dois itens, ele até que se deu bem. Antes de perder a mão, Antônio Carlos era o terror do Paulo’s Bar, a meca dos mauricinhos endinheirados localizada no Conjunto Petros. Na base da porrada, Antônio Carlos fechou o bar uma porção de vezes e ficou conhecido pelos aterrorizados frequentadores como “O Bom”.

Ele também teve muitas namoradas, quase todas ganhas na mão grande. Para justificar sua fama de Don Juan, alguns desafetos diziam que ele havia adaptado com maestria aquele velho adágio do “ou dá ou desce” para “ou dá ou leva porrada”. Sua fama de valentão também fez muito sucesso na Cachoeirinha, principalmente entre garotos indefesos.

Certa noite de domingo, o Simas estava em sua casa assistindo ao “Fantástico”, quando foi surpreendido pelo choro convulsivo do videomaker Edlúcio Castro, na época um moleque de 15 anos.

– Êi, Simas, o Antônio Carlos me bateu e ainda me tomou o dinheiro da passagem de ônibus pra eu voltar pra casa do tio Mário Adolfo, lá no Conjunto Tiradentes… – explicou Edlúcio. – Porra, Simas, aquele filho da puta é um fuleiro, só bate em que é menor do que ele!

Simas foi encontrar o meliante fumando um beise no canto da Rua Parintins com a Carvalho Leal e jogou duro:

– Porra, Antônio Carlos, o Edlúcio é nosso amigo aqui da área. Devolve a grana dele!

Antes de fazer um pacto com o diabo, Antônio Carlos já havia levado muita porrada do Simas em diversas oportunidades. Adulto, o futuro DJ Careca Selvagem ainda impunha bastante respeito entre os homeboys do bairro.

Por conta disso, Antônio Carlos nem criou caso: meteu a mão no bolso, tirou a grana e devolveu ao Edlúcio, como se fosse a coisa mais natural do mundo tomar o dinheiro de alguém na base de porrada.

Simas ficou aguardando o Edlúcio apanhar o ônibus e ir embora.

Em outra ocasião, o baixista Deucimar Bezerra, cunhado do Simas, então com 14 anos, se mandou de sua casa, lá na Cidade Nova, para mostrar ao Simas um novo disco pirata do The Doors, malocado dentro de uma mochila de brim.

Era uma manhã de domingo e o Simas tinha saído com sua família para um balneário.

Deucimar resolveu esperar pelo cunhado sentado na calçada em frente da casa. Quando ele colocou na boca o único cigarro que possuía e ia acender, foi surpreendido pela chegada de Antônio Carlos, que ele não conhecia.

– O que qui tu tá fazendo aqui, moleque? Tá querendo roubar? – interpelou o carateca.

– Eu sou cunhado do Simas e estou esperando ele! – respondeu Deucimar, sem esconder o nervosismo.

– Cunhado, porra nenhuma, tu tá é querendo roubar!

Deucimar ficou calado e começou a procurar um isqueiro na mochila para acender seu cigarro.

Na maior cara dura, Antônio Carlos tirou o cigarro ainda apagado da boca de Deucimar, colocou na própria boca, acendeu com seu próprio isqueiro, deu uma baforada de fumaça no rosto do Deucimar e deu um ultimato:

– Te manda daqui, moleque! Eu vou até ali no canto fumando esse cigarro. Quando ele acabar, eu vou voltar aqui… Se eu ainda te encontrar sentado nessa calçada, escreve aí: vou te moer de porrada e levar essa mochila comigo…

Dito isso, ele saiu andando em direção ao Top Bar.

Assustadíssimo e a ponto de chorar, Deucimar se refugiou na casa da dona Noca, sua tia, ao lado da casa do Simas. Quando o Careca Selvagem chegou do balneário por volta das 15h, Deucimar, ainda fazendo força para não chorar, contou a presepada.

Com o cunhado a tiracolo, Simas foi encontrar o meliante fumando um beise no canto da Rua Parintins com a Carvalho Leal e jogou duro:

– Porra, Antônio Carlos, esse cara aqui é o Deucimar e ele é meu cunhado. Tu te manca pra ele, hein? Tu te manca pra ele…

Antônio Carlos olhou para o Deucimar com ar de desprezo:

– Pensei que ele fosse ladrão porque esse tipo de mochila de brim só quem usa é hippie e ladrão… E hippie eu sei que ele não é!

Aí, saiu caminhando tranquilamente para sua residência sem tirar o beise da boca. Além de marrento, o sujeito era muito folgado.

Em meados dos anos 80, Antônio Carlos foi morar em Itacoatiara, em companhia de seu irmão Mauro, que estava trabalhando na cidade.

Um belo dia, por volta das 13h, ele se lembrou de que havia guardado um morteiro de um tiro em cima do guarda roupa.

Era um dia comum de semana, sem qualquer fato extraordinário, e ele resolveu soltar o rojão só pra “zoar” com o silêncio de cemitério da pacata Pedra Pintada. Foi para o pátio da casa, acendeu a mecha do morteiro, levantou o foguete pra cima com a mão direita e cataplum!

Ele só se lembra que sentiu um líquido morno escorrendo pelo pulso. Devido a um possível defeito de fabricação, o morteiro havia explodido no modo reverso. Foi como se uma granada explodisse dentro de sua mão. Seus dedos estavam espalhados pelo pátio.

Antônio Carlos foi levado às pressas para o hospital da cidade e teve o resto da mão amputado na altura do pulso. Guardou os dedos como souvenir.

– Deve ter sido um recado do coisa ruim! – me explicou, quando encerrou sua narrativa.

– O diabo não manda recado! – ironizei, com bom humor. – E você ainda não ficou rico, porra, então o trato também não foi cumprido. Você tem tempo para renegociar com o cramunhão. De qualquer forma, se ele quiser mesmo possuir a tua alma, será apenas uma questão de tempo…

Alguns anos depois dessa conversa mezzo metafísica mezzo mefistofélica, Antônio Carlos estava jogando dominó em um boteco de terceira categoria no bairro do Coroado.

Depois de muita fisioterapia, a calosidade de seu pulso mutilado havia se transformado em uma arma semelhante a um bastão de beisebol. Sua “munheca de aço” era capaz de quebrar telhas e tijolos de barro. Ele estava mais marrento do que nunca.

Para se exibir para os presentes, Antônio Carlos resolveu dar um corretivo em um moleque de 14 anos, que estava olhando a partida de dominó sem dar um pio.

– Eu não já disse que não gosto de “peru” perto de mim?…

Aí, segurou o moleque com a mão esquerda e, com a direita, aplicou-lhe um violento “cascudo” no meio da cabeça, com o que sobrara de sua mão amputada.

Foi como se ele tivesse batido na cabeça do garoto com a parte grossa de um taco de bilhar. O moleque saiu chorando do boteco.

Antonio Carlos ainda estava escolhendo uma pedra para sentar na partida de dominó, quando o moleque retornou ao boteco portando um pontiagudo gargalo de garrafa.

Esgueirando-se por detrás dos presentes, ele se posicionou atrás do carateca e, na primeira oportunidade, enfiou o caco de garrafa na altura do pulmão direito de Antônio Carlos.

O moleque enfiou o gargalo com as duas mãos porque estava com muito ódio, com muita raiva, com muita mágoa por conta da humilhação sofrida.

Antônio Carlos ainda conseguiu se levantar da mesa com o gargalo enterrado nas costas e tentou dar dois passos em direção ao moleque assassino. Mas aí as forças sumiram, a visão ficou turva, o ar começou a faltar e ele desabou no chão feito um pacote bêbado.

Morreu ali mesmo, de hemorragia interna, no piso sujo de um boteco de terceira categoria no bairro do Coroado. O moleque assassino nunca foi encontrado.

O diabo não manda recado. Só digo isso.

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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