Caxuxa Blues

Os selvagens da noite

Luiz Mota e Luiz Lobão tirando onda em Manacapuru, algumas horas antes de nossa vida se transformar em um inferno
Postado por Simão Pessoa

Por Simão Pessoa

Março de 1973. O Petrônio Baixo havia passado no vestibular de Enfermagem e me convidou para comemorar a boa-nova em um baile de carnaval em Manacapuru. Iríamos no sábado-gordo, pernoitaríamos na cidade e regressaríamos no domingo.

Como eu tinha 17 anos e até então nunca havia saído de Manaus, topei na hora. Convidei o Mário Adolfo e o Sidney Ribeiro para irem juntos. Eles arregaram, com a desculpa esfarrapada de que não conheciam ninguém em Manacapuru. Convidei o Luiz Lobão e o Jorge Palheta, mas apenas o Luiz Lobão aceitou encarar o desafio. Luiz Lobão convidou o estabanado Kepler Evandro, o Kepelé, que topou participar da presepada.

Naquela época não havia balsas. A gente apanhava um barco regional na Escadaria dos Remédios, atravessava o Rio Negro e embarcava em um ônibus, no Cacau-Pirêra. A Rodovia Manuel Urbano era uma trilha de piçarra, que ficava intransitável nos dias de chuva. No Rio Ariaú havia uma balsa puxada à tração manual, praticamente no muque, e o balseiro, coitado, só conseguia rebocar um veículo de cada vez. Era uma viagem de quase quatro horas.

Usando apenas o nosso traje de guerra (macacão Lee e sandálias de pneu), nós quatro entramos no barco com a cara e a coragem por volta do meio-dia. Dois sujeitos que eu ainda não conhecia já estavam a bordo do mesmo jeito que a gente: apenas de macacão Lee e sandálias de pneu. Para o nosso quarteto se transformar em um sexteto foi conta de multiplicar. Os novos homeboys – Luiz Mota e Carlos Oliveira (aka “Carlinhos Pedra Noventa”) – moravam no bairro da Raiz e eram amigos do Luiz Lobão. Eles dois também estavam indo pra Manacapuru pela primeira vez. Começamos a encher a cara.

O ônibus nos deixou na Praça da Liberdade, em frente à sede da prefeitura de Manacapuru, por volta das 16h. O motorista avisou que o ônibus de retorno sairia do mesmo local às 10h da manhã de domingo. Quem perdesse o horário, só voltaria pra Manaus na segunda-feira. Entramos em um boteco, bebemos algumas cervejas e depois nos despedimos de Luiz Mota e Carlinhos, que iriam ficar hospedados na casa de um conhecido deles. Marcamos de nos encontrar às 10h da noite em frente ao clube Palmeirinha, onde iria rolar o único baile de carnaval da cidade. Nós quatro saímos batendo perna em busca de hotel.

Encontramos uma única hospedaria, nas proximidades do Mercado Municipal, que era também farmácia, restaurante, mercearia, armarinho e entreposto de secos e molhados. O dono do espaço multimídia explicou que os únicos seis quartos do hotel já estavam ocupados. Se quiséssemos utilizar o banheiro coletivo da espelunca, não haveria nenhum problema. Aí, percebendo a nossa aflição, deu uma dica pro Petrônio Baixo, entre a ironia e o sarcasmo:

– O único hotel da cidade é esse. Mas se o senhor tiver uma boa conversa arranje uma namoradinha, que é bem capaz de ela deixar o senhor dormir na casa dela. É por causa disso que a nossa cidade vive empestada de curumins… Essas meninas são danadas!

Perdido por um, perdido por mil. Resolvemos perambular pela cidade para conferir a qualidade da mercadoria feminina. A cidade era menor do que o bairro da Cachoeirinha. Em compensação, era uma autêntica terra de icamiabas: eu nunca havia visto tanta mulher bonita por metro quadrado quanto em Manacapuru. E todas elas extremamente atenciosas, graciosas, gentis. Marcamos encontro no Palmeirinha com uma dezena de garotas, cada uma mais fogosa do que a outra. Aquilo ia ser uma festa semelhante a pescar em balde.

Por volta das 8h da noite, jantamos no espaço multimídia e ficamos enchendo a cara pra passar o tempo. Meia hora depois, o Petrônio Baixo, que ainda estava no primeiro mês do curso de Enfermagem, deu uma de médico residente e aplicou uma injeção, que ele próprio receitara, em um hóspede que estava com pressão baixa. Se o sujeito morresse, no mínimo a gente ia ficar em cana pelo resto da vida. Felizmente, o sujeito sobreviveu e ficou tão agradecido que pagou a nossa despesa. Estava tudo dando certo.

Por volta das 10h da noite, a gente estava se dirigindo para o Palmeirinha ao encontro do nosso harém, quando vimos o Luiz Mota vir correndo em nossa direção, já descalço, trazendo as sandálias na mão:

– Se mandem daqui, se mandem daqui. O Carlinhos abriu um porradal na portaria do clube, deixou uns três caras arriados e agora tem uns trinta cabocos armados de estacas querendo guisar o sacana. Eles só sabem que o Carlinhos está de macacão Lee e de sandálias de pneu. Se virem vocês assim, vocês vão entrar na porrada…

– E a gente vai se esconder aonde? – perguntei ingenuamente.

– Me sigam, me sigam! – avisou Luiz Mota, nervosíssimo.

Dito isso, ele desembestou a correr. Nós quatro tiramos as sandálias e corremos atrás dele. Luiz Mota entrou numa viela, atalhou por um beco e, de repente, a gente estava abaixado ao lado do cemitério. Do outro lado da rua, passou uma multidão armada de facas, porretes e pedaços de pau, iluminando o caminho com uma lanterna (não havia iluminação pública na maior parte da cidade).

Eu estava resfolegando, a ponto de vomitar o jantar e as cervejas, quando fui surpreendido pelo Carlinhos, que vinha em uma nova carreira:

– Se mandem daí, se mandem daí, que está vindo outra turma atrás de nós…

Nós? Caraco, o cara fazia um apronto federal e depois nos colocava na fita?… Ele desembestou a correr no rumo do bairro Correnteza e nós cinco saímos correndo atrás dele. Nos escondemos em um terreno baldio. A nova horda de hunos passou, agora sendo capitaneada por um sujeito de motocicleta. Comecei a desconfiar que todos os machos da cidade estavam nos caçando.

Meia hora depois, saímos do esconderijo e começamos a caminhar. Um moleque, saído das sombras, deu o alarme:

– Lá estão eles! Lá estão eles!

Surgiu um novo destacamento de hunos a uns duzentos metros de distância. Saímos correndo em direção ao centro da cidade e conseguimos nos esconder atrás da prefeitura. Os hunos seguiram correndo em direção ao mercado. Carlinhos Pedra Noventa estava possesso, transtornado, irritadíssimo:

– Meu irmãozinho, isso é um bando de fuleiro – ele explicava. – Se viessem na mão, eu encarava eles no mano a mano, de um por um. Mas os fuleiros estão armados de faca, navalha, estacas e corrente… É um bando de fuleiro!

Aí, para extravasar a raiva, ele foi até uma espécie de chafariz existente no centro da pracinha da prefeitura, meteu a mão na água, retirou de dentro um pequeno jacaretinga e arremessou o bicho com violência no meio da rua. O réptil se fingiu de morto.

Indaguei o motivo de estarmos sendo caçados daquela maneira. Ele explicou:

– Eu estava na porta do Palmeiras conversando com uma mina jeitosinha que estava dando o maior mole pra mim, quando um gaiato encostou na gente exigindo que eu pagasse uma cerveja. Fiz que nem ouvi. Aí, ele tirou a latinha de cerveja da minha mão e começou a beber. Dei um murro, que quase que a lata entrava na boca dele. Ele já caiu no chão sem os quatro dentes da frente. Um parceiro dele me deu um murro pelas costas. Eu me virei e ajumentei. Espoquei o nariz do filho da égua. Um terceiro quis me dar uma baiana, eu pulei pra trás e chutei embaixo do queixo do otário. Ele ficou caído lá mesmo. Aí, uma porrada de caras avançou em cima de mim. Como eu não sou mané, só deu tempo de eu descalçar as sandálias e abrir no trecho…

Calculei mentalmente que já passava da meia-noite. Sugeri ao Luiz Lobão, Kepelé e Petrônio Baixo que a gente fosse se esconder lá no final da orla da cidade, que era um lugar meio desabitado. Eles toparam. Luiz Mota e Carlinhos foram atrás de um bar aberto pra comprar cachaça, lá pras bandas dos inferninhos flutuantes da Rua Beira-rio, na parte oposta do final da orla da cidade.

A gente estava sentado em um banco, embaixo de uma mangueira, observando o rio passar, na mais completa escuridão, quando avistamos na rua deserta o Luiz Mota vir correndo de novo em nossa direção.

– Se mandem daí, se mandem daí, que o Carlinhos está com o cão no couro. Ele acabou de deixar mais dois caras arriados lá na Beira-rio e agora até a polícia está atrás de nós…

Puta que pariu! Nós saímos correndo atrás do Luiz Mota até nos escondermos embaixo de uma palafita nas proximidades do igarapé da Liberdade. O fusca da polícia passou lentamente a uns 50 metros de onde a gente estava e seguiu de volta para o Centro. Suado, enlameado, cansado e puto da vida, eu decidi ficar ali até o dia clarear. Depois de meia hora, o Luiz Mota deu o fora para tentar localizar o imprevisível e estabanado Carlinhos.

Por volta das 5h da manhã, nós quatro saímos caminhando em direção à Igreja Nossa Senhora de Nazaré. A ideia era simular que íamos assistir a missa e aproveitar para tirar uma soneca nos bancos. Pra nosso azar, a primeira missa só seria celebrada às 6h da manhã. Ficamos sentados na porta da igreja esperando o dia amanhecer. Apagamos. Fomos acordados pelas primeiras beatas querendo entrar no local.

Deixamos a igreja e rumamos em direção ao mercado municipal. Na primeira banca de camelô, cada um comprou uma camisa de futebol e vestiu sobre o macacão Lee. Depois fomos tomar o café da manhã no espaço multimídia. Ao ver o nosso estado deplorável, o dono do hotel não perdoou:

– Pelo visto, vocês passaram a noite acordados, hein? A farra com as cachorras deve ter sido boa…

– Nem lhe conto, chefe, nem lhe conto… – devolveu Petrônio Baixo, mantendo as aparências. – O senhor tinha razão. As meninas daqui são danadas…

No horário determinado pelo motorista, nós embarcamos no ônibus e nem sombra dos nossos parceiros. Só fomos revê-los no Cacau-Pirêra, momentos antes de entrarmos no barco.

Depois da confusão no inferninho flutuante, o Carlinhos havia conseguido encontrar um velho amigo de Manaus, Pedro Paulo, que estava armado com uma pistola Mauser C96 e pilotava uma caminhonete D-10.

Eles ficaram rodando meia hora pela cidade à nossa procura e à procura dos hunos. Só encontraram o Luiz Mota.

Naquela mesma madrugada, o sujeito deixou os dois no Cacau-Pirêra, em Iranduba, e voltou pra Manacapuru.

Eu só voltaria a colocar os pés no município quinze anos depois, quando o engenheiro civil Angelus Figueira foi eleito prefeito pela primeira vez. E nunca mais na vida quis andar em companhia de Luiz Mota e Carlinhos Pedra Noventa.

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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