Por Isabel Lustosa
Nássara adorava comparações inusitadas. Falando do Jaguar, que figurava na galeria dos seus bem-quereres em local de destaque, assim o descreveu: “Ele não é um Jaguar riquíssimo e inatingível como aquele carro de luxo. É um jaguar calhambeque da vida. É um Ford bigode que vale mais que um Mercedes-Benz”. Fazendo o elogio de Orestes Barbosa, citou uma lista de gente nova que ele admirava (Rubem Braga, Sergio Porto, Millôr Fernandes, Francisco de Assis Barbosa…) mas esqueceu de Vinicius de Moraes, para lembrar logo em seguida dizendo: “Ah! Ia me esquecendo do Vinicius de Moraes – como se fosse possível esquecer que pão existe…”
Quando fez 70 anos, numa entrevista mal-humorada, e nem por isso menos divertida, declarou que estava pensando em, dali em diante, comemorar só os planos quinquenais, e que aquele seu aniversário nada tivera de especial. “Só foi especial porque choveu de cachorro beber água em pé…”
Uma vez escreveu este auto-retrato, cujo manuscrito consta de seus arquivos: “Eu me chamo Antônio Gabriel Nássara. Também me assino como Antônio Nássara. Mas me identifico melhor como Nássara. Há os que me chamam por psiu, meu chefe, alô, meu chapa, hei e etc. Na clareira aberta pela saudade recordo o querido e inesquecível Rubem Gil que só me chamava de Dôtor – a mim e a todos os outros amigos. Muitas vezes atendi por Nássara e Frazão devido à parceira que fiz com o velho Frazão. Até hoje, apesar de não podermos fazer música em parceira, resiste a rubrica para alguns retardatários.
Sou reservista, 2ª categoria, pela minha carteira sei o seguinte o meu respeito: tenho 1,68 de altura, sou de cor branca, tenho cabelos castanhos (ainda são), a boca regular, o rosto oval, nariz regular. Que leio – sim – que escrevo – sim – que conto – sim (até nove) – outros sinais: calço 38 no inverno – 39 no verão – o mesmo acontecendo com o colarinho. Nascido em São Cristóvão e criado em Vila Isabel, no ex Distrito Federal, hoje Guanabara, que sou vacinado e sabia nadar.”
Millôr, por ocasião do último aniversário de Nássara, em 11 de novembro de 1996, glosou essa descrição completando, com muita justiça: “Tem só um metro e setenta mas bem poucos estão à sua altura. E apenas 70 quilos, o que é uma contradição para um compositor de tanto peso. Muitos que o vêem assim tranquilo e lento, não sabem o carnaval que mora dentro dele”. Nássara, de fato, se considerava um ritmo de valsa lento para piano. Talvez por isso tenha deixado escrito no seu caderninho: “A ordem é essa: devagar. / Quem vai depressa /Pode não chegar.
A música do Nássara era feita na base da intuição, acompanhando o compasso na batida da caixa de fósforos. Dizia que aprendera a desenhar com a mão e que era, por convicção, compositor de caixa de fósforos. Em verso que certamente aqueceria o coração de Gilberto Freyre, ele brincava até com a famosa teoria das três raças tristes que conformam a nossa identidade nacional: “Três raças que convivem com a tristeza / conseguindo um resultado genial: / Transformar uma vida de dureza / na alegria infernal do carnaval. / Mulheres nuas, etecetera e tal…”
Nássara sempre foi o rapaz estouvado de Vila Isabel. Em 1976, quando padrinho da Banda de Ipanema, declarou: “Politicamente sou pela democracia, contra qualquer ditadura. Quero morrer democrata e livre-pensador”. O que não contradizia o seu ceticismo, manifesto na afirmação: “Não me sinto realizado porque nada é definitivo”. Daí também a sua inquietação… o estar sempre se renovando, daí o seu traço ter-se aprimorado ainda mais com o passar do tempo. Quando morreu, tranquilamente lendo o jornal em sua poltrona favorita, na manhã de 11 de dezembro de 1996, aos 86 anos, era ainda um artista atuante e atual: ao satirizar a política do Brasil de nossos dias, mantinha o mesmo apurado senso crítico que o inspirara nos tempos de Getúlio.
Nássara gostava de criar situações alegres nas quais, lá no céu, confraternizavam caricaturistas, boêmios e artistas (produziu uma linda quando Stanislaw morreu). Uma dessas cenas foi publicada na revista Senhor, possivelmente em 1977. Aparecem vários caricaturistas já desaparecidos: gente como Luís Peixoto, Raul Pederneiras, Kalixto, J. Carlos. Um trabalho cheio de cores, primoroso. No meio do desenho a pergunta: “Caricaturista quando morre vai pro céu”? Só Deus sabe, certamente. Mas o Nássara bem que merecia.
Falar de Nássara, contar sua história, é contar um pouco da história do Rio. Do ethos que conformou esse jeito moleque de cidade colorida e musical, com sua bossa e seu charme inconfundíveis. Nássara nasceu em São Cristóvão mas criou-se em Vila Isabel. Esse “criou-se em Vila Isabel” é que dá o tom do personagem. A Vila Isabel em que Antônio Gabriel Nássara se criou é a Vila dos anos 20 e 30. A Vila das serestas, do carnaval com batalhas de confete; das reuniões no Ponto Cem Réis; do bloco Faz Vergonha, enfim, a Vila imortalizada por Noel Rosa e tão bem descrita por seus biógrafos, João Máximo e Carlos Didier. Nascido um mês antes de Noel Rosa e criado ali, em meio àquela ebulição de musicalidade e boêmia, Nássara impregnou-se desse espírito para o resto da vida:
“Nós morávamos numa casa avarandada da Teodoro da Silva número 107, perto do campo do América Futebol Clube. No Ponto Cem Réis tinha um grande bloco, que era o Faz Vergonha. Vila Isabel foi, de fato, uma escola fantástica, que me deu o gosto por esse negócio de música. Quando chegava o carnaval, a gente fazia aqueles blocos, e cada esquina tinha um grupo, e eu sempre fazia parte deles. Me parece que foi isso que acendeu em mim este fósforo meio lusco-fusco de compositor: de tanto pular carnaval cantando a música dos outros, eu acabei tomando coragem. Também sempre tive extrema facilidade para memorizar músicas. Até hoje gosto de cantar: Rato, rato, rato, por que motivo tu roeste o meu baú? E aquela que dizia: Ó minha Carabú, olho de boi zebu…”
“O mais autêntico dos cariocas não tinha uma gota sequer de sangue brasileiro”, escreveu Francisco de Assis Barbosa. Ao se apresentar na entrevista do MIS, Nássara definiu sua identidade: “Meu pai, de descendência libanesa. Eu, carioca de São Cristóvão”. Das lembranças afetivas que guardava, o maior carinho do Nássara ia para Gabriel Jorge, o velho pai libanês, que chegara ao Rio por volta de 1890 e aqui seguira a sina de todo imigrante de origem árabe, invariavelmente chamados de turcos: primeiro, foi caixeiro-viajante, depois abriu um pequeno comércio. A mãe, D. Uahyba, também viera do Líbano muito menina. Quando se casou com Gabriel Jorge, que tinha 29 anos, D. Uahyba contava apenas 13 anos. Seu Gabriel Jorge era um homem bom, não tinha jeito para ganhar dinheiro e morreu pobre.
“Era o tipo da família simples. Imigrantes, mas sem muita ligação com a terra em que nasceram. Ficaram brasileiros rapidamente. Meu pai, por exemplo, tinha todas as qualidades de um bom brasileiro. Ele gostava muito de Vila Isabel, porque Vila Isabel sempre teve música. Era um homem bom. Eu tenho saudade dele por isso. Uma coisa eu também admiro em meu pai: apesar dele ter sido um homem muito simples, quis que todos nós estudássemos. Éramos oito filhos: eu, meu irmão Jorge e mais seis irmãs, todas se tornaram professoras.”
O casal morara de início numa casa de fundos, na esquina das ruas Abílio com Esperança, na parte pobre de São Cristóvão. Ali, depois de Mariana, que nascera em Poços de Caldas, onde o casal morara por um curto período, vieram Catarina, Jorge e Estela, e antes de Aglayde e Arteobela, nasceu Antônio Gabriel, em 11 de novembro de 1910. A família só mudou para Vila Isabel quando Nássara tinha uns 12 ou 13 anos.
Mas, por volta de 1920, Seu Gabriel tinha melhorado de vida e Nássara, que fizera seus primeiros estudos numa escola da rede pública, a Escola Municipal Nilo Peçanha (que ficava, como fica até hoje, atrás da Quinta da Boa Vista), passou a frequentar um colégio pago, o Pio Americano. Fez o Curso Superior de Preparatórios, na rua do Ouvidor e, segundo conta, foi naquela fase que aprendeu a conhecer a cidade. Diz ele que esta novidade teve um lado ruim: a vagabundagem que ele já ensaiava pelas esquinas de Vila Isabel mas que ganhou versão ampliada quando entrou em contato com a agitada vida do centro do Rio. Mesmo assim terminou os preparatórios no prazo regulamentar e entrou para a Faculdade.
“Ninguém sabe ao certo como é que você escolhe a profissão. Eu, por exemplo, ia ser arquiteto, dava para isso. Meu pai, não sei porquê, queria que me formasse em arquitetura. Sabe como é pai e mãe, não é? Queriam que eu casasse, que fizesse tudo certinho. Eu então, para fazer a vontade a meu pai, me matriculei na Escola de Belas-Artes em 1927. Ele não quis que eu fosse negociante, tivesse dinheiro, não. Ele tinha uma visão bem mais avançada. E tenho quase certeza de que foi por isso que eu abusei da liberalidade dele. Fiquei na ENBA até o quarto ano. Papai ficou triste quando eu abandonei. Olha, papai, não adianta – expliquei a ele. Mas também eu já estava desenhando. Quando eu comecei a levar meu dinheiro para casa e a não pedir dinheiro para comprar sapato… papai gostou muito, coitado, ficou todo satisfeito. E em 30 eu me afastei totalmente de preconceitos de futuro e tal – você vai ser brilhante nisso, vai ser brilhante naquilo – e deixei a Escola de Arquitetura, saí fora, pra me defender.”
A alma inquieta do filho de imigrantes libaneses, curtida por vários carnavais em Vila Isabel, não se acomodou aos bancos escolares. No quarto ano, Nássara abandonou os estudos para mergulhar de vez na vida indisciplinada das estações de rádio e das redações de jornal. Na Faculdade de Arquitetura, menos que na prancheta e no esquadro, aperfeiçoou-se no modo de ser boêmio que o acompanharia para o resto da vida.
Foi na Escola de Belas-Artes que o compositor popular Nássara se revelou. Ele, junto com J. Ruy, Barata Ribeiro (pai de Agildo Ribeiro), Jacy Rosas e Mário Henrique Xavier criaram o conjunto da ENBA. Mário Henrique Xavier era o pianista, Jacy Rosa tocava cavaquinho e Nássara batia pandeiro. O crooner, que nunca pensou em estudar arquitetura, viera de Vila Isabel pela mão do Nássara, e era Luís Barbosa. Diz o Nássara que nesse tempo já era muito metido a besta, frequentava gafieira e desse meio pescara o Luís Barbosa, por quem tinha a mais profunda e sincera admiração. Nássara considerava o hoje esquecido Luís Barbosa como maior intérprete do seu tempo. Só descobriu Mário Reis depois que este, junto com Francisco Alves, gravou, em 1933, “Formosa”, o primeiro sucesso de Nássara como compositor. Se a gente deixasse, o Nássaea só falava do Luís Barbosa, apesar dos muitos elogios que também tinha para Mário Reis.
“Luís Barbosa, na minha opinião, era o maior dos cantores de samba. Mas era um rapaz marcado pelo destino: boêmia demais e, praticamente, um pré-tuberculosos. Ele batia o que, naquele tempo, se chamava pandeiro de tarraxa. Que é esse pandeiro de hoje, tem aquele aro, mas era um aro de metal e pesava, no mínimo, de 5 a 6 quilos. O Luís Barbosa era um gênio nisso, pegava aquele pandeiro pesado, marcava o ritmo, mas ele já estava numa fase em que se cansava rápido. Era uma época em que todo mundo usava chapéu de palha, inclusive nós. Ele então, um dia, tirou o chapéu de palha e, num ensaio, começou a marcar o ritmo no chapéu de palha: Poxa! Se isso desse som no rádio. E fizemos uma experiência na Rádio Clube do Brasil. O som foi uma maravilha. Melhor até que o pandeiro. Ele nunca mais tocou pandeiro; e passou a usar o chapéu de palha como elemento rítmico. Mais tarde, ele ficou muito doente, mais fraco ainda, e batia na caixa de fósforos.
O Luís Barbosa era um compositor nato, porque você dava uma música a ele e ele cantava de uma forma que melhorava, abrilhantava o negócio, encaixando coisas nos vazios (como se dizia na época). Ele não cantava uma música duas vezes da mesma maneira. É como o Radamés diz: compositor é aquele que decora uma música e depois assobia e sai outra. Era um cantor curiosíssimo, com uma maneira própria de interpretar, foi o inventor mesmo do breque. Diferente do Moreira da Silva, que é outro gênero. Ele, não, ele era dentro do ritmo. Seu problema era que ele era tão grande boêmio quanto cantor. Era um homem essencialmente noturno. Acordava tarde, ainda meio zonzo. Sua voz, enquanto não escurecia, era encantarrada, pastosa. À medida que a noite ia avançando, a voz e o ritmo iam se aperfeiçoando cada vez mais. Por volta das duas da manhã, estava tudo perfeito. O problema é que ninguém gravava nessa hora. E não existe um disco que faça justiça ao extraordinário cantor que foi Luís Barbosa. Eu tenho uma saudade desse cara! Ele era um irresponsável…”
Luís dos Santos Barbosa, morreu cedo, de tuberculose, na casa de sua família, na Tijuca. Foi em 1938, e ele que nascera no mesmo ano que o Nássara, tinha 28 anos. Cumprira o destino romântico dos muitos boêmios nativos, desde Castro Alves. Era de uma família de artistas, irmão do compositor Paulo Barbosa, do humorista e cantor Barbosa Júnior, e do radialista Henrique Barbosa. Começara a carreira na Rádio Mayrink Veiga, no Esplêndido Programa, de Valdo Abreu, em 1931, de que vamos falar logo a seguir. Apesar do que disse o Nássara, Luís Barbosa teve um razoável sucesso em sua curta existência. Gravou cerca de vinte discos e participou de espetáculo no Teatro Carlos Gomes. Em janeiro de 1934, apresentou-se no palco do Cine Broadway, junto com Almirante, Francisco Alves e Ari Barroso. Na matéria publicada no Jornal do Commercio, do dia seguinte (23/1/34), os mais rasgados elogios foram para ele:
“Manda, porém, a verdade dizer que o grande êxito da noite obteve o Sr. Luís Barbosa, com seus sambas pitorescos e o seu famoso chapéu de palha. O público insistiu com as palmas, até fazer bisar todos os números, com exceção de um deles, que foi trisado.”
Sérgio Cabral garante que a opinião do Nássara sobre Luís Barbosa era compartilhada por muita gente. Lembra que Mário Reis falava dele com grande entusiasmo. Também confirma o que diz o Nássara sobre o critério que se deve dar a Luís Barbosa pela criação do samba de breque.
“Aquela frase improvisada nos intervalos da música foi criada por Luís Barbosa. Moreira, não. O que ele fez foi parar o samba para falar. (…) Luís Barbosa, como sabemos, não parava a música. Ele apressava ou diminuía a cantoria para encaixar frases absolutamente inesperadas, sempre dentro do ritmo, sem sair da rima e com muito espírito.” (CABRAL, pp. 119/120.)
O maior sucesso de Luís Barbosa foi a gravação de “No tabuleiro da baiana”, com Carmen Miranda. Diz, o Nássara, que foi Luís Barbosa quem marcou o ritmo e, com isso, modificou aquela música, para melhor. Porque a Carmen era muito alegre, jocosa, completa, e “No tabuleiro da baiana” pedia um pouco mais de bossa, matéria na qual Luís Barbosa era professor.