Por Simão Pessoa
Setembro de 1976. O nosso imbatível time Murrinhas do Egito vai estrear no campeonato do Penarol enfrentando o Ferroviário, de Petrópolis, e trazendo escondido na manga um reforço de respeito: o cabuloso centroavante Ailton Santa Fé, um crioulo baiano de 1,85 cm de altura, 80 kg bem distribuídos no seu corpo malhado, sorriso de moleque no rosto e jeitão de artilheiro consagrado.
Depois de equipado, Ailton Santa Fé, ainda na parte externa do campo, começa a mostrar suas habilidades com uma bola no pé: faz duzentas embaixadinhas com a perna esquerda, depois duzentas com a perna direita, cinquenta com a coxa esquerda, cinquenta com a coxa direita, cem com a cabeça e cento e cinquenta com os ombros, passando a bola de um para o outro. Fica todo mundo impressionado. Os zagueiros do Ferroviário encarregados de marcar o negão começam a ficar nervosos.
O nosso time entra em campo e começa a bater bola, antes do início da partida, numa espécie de aquecimento. Ailton Santa Fé levanta a bola com estilo, faz meia dúzia de embaixadas e, ali na intermediária, dá um chute de folha seca, em direção ao nosso gol. A bola entra na gaveta, indefensável. O goleiro Walter Doido, que não era disso, aplaude o gol de placa.
O lateral-direito Carlito Bezerra vai até as proximidades do escanteio e mete uma bola pelo alto, no estilo chuveirinho. Ailton Santa Fé dá um salto felino, domina no peito e, sem deixar a bola cair, chuta de pé trocado, numa cópia perfeita daquele gol do Pelé contra a seleção tcheca na Copa de 70. A bola entra no ângulo. O goleiro Walter Doido aplaude de novo.
Os zagueiros do Ferroviário, que estavam acompanhando a presepada do outro lado do campo, começam a se sentir desmoralizados antes mesmo de o jogo começar. Com aquele negão em campo, vai ocorrer um massacre.
O juiz chama os dois times para o grande círculo. A partida começa. Com cinco minutos de jogo, o armador Marco Aurélio dribla dois zagueiros e toca rasteiro para Santa Fé na altura da meia-lua. Estiloso no balde, Santa Fé tenta colocar a bola de curva na gaveta, mas a bola inexplicavelmente passa por cima de seu pé direito. O negão chuta o vazio, se desequilibra e cai no chão de cu trancado. A bola sobra para um zagueiro adversário, que despacha a pelota com um chutão para o meio de campo. O negão se levanta elegantemente e dá pequenos chutes de bico no chão como se quisesse culpar o campo esburacado pelo acidente.
Cinco minutos depois, o ponta-esquerda Bobô dribla o lateral-direito, avança pela linha de fundo e toca para trás. Santa Fé, que vinha numa correria medonha para meter um chute de três dedos, pisa em cima da bola e cai estrepitosamente no chão. Esfola os joelhos e os cotovelos. O nosso capitão de equipe, Almir Português, começa a ficar cabreiro.
Dez minutos depois, o ponta de lança Luiz Lobão arranca pela direita, ganha na corrida do quarto-zagueiro, o goleiro sai em sua direção, ele fica sem ângulo e toca para trás, buscando o centroavante, com o gol escancarado. O centroavante Santa Fé, que vinha correndo feito um velocista jamaicano acompanhando a jogada, passa pela linha da bola e tromba violentamente com o goleiro. Falta contra o nosso time.
Almir Português não pensou duas vezes. Foi na beira do gramado e gritou para o técnico (eu, evidentemente):
– Porra, meu irmão, tira esse negão e coloca o Kepelé. Ele não é jogador de futebol, é malabarista de circo…
Fiz o que o capitão de equipe havia solicitado. O endiabrado Kepelé entrou em campo, fez quatro gols e o Ferroviário tomou uma sonora goleada de 7 a zero.
Nunca mais Ailton Santa Fé entrou em campo para jogar pelo Murrinhas do Egito. Mas continuou se equipando e fazendo seus malabarismos com a bola no pé na beira do campo. Era uma maneira de a gente desmoralizar psicologicamente os zagueiros adversários.